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Jardim das Delícias



Sexta-feira, 05.04.13

Tarantella calabrese - L'Arpegiatta - Christina Pluhar

 

Christina Pluhar  L'Arpegiatta

  

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por Augusta Clara às 21:00

Sexta-feira, 05.04.13

Ruído de passos - Clarice Lispector

 

Clarice Lispector  Ruído de passos

 

 

(Adão Cruz)

 

 

   Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentua­va quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das ár­vores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepia­va toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

- Quando é que passa?

- Passa o quê, minha senhora?

- A coisa.

- Que coisa?

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.

Olhou-o espantada.

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!

- Não importa, minha senhora. É até morrer.

- Mas isso é o inferno!

- É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? essa falta de vergonha?

- E o que é que eu faço? ninguém me quer mais…

O médico olhou-a com piedade.

- Não há remédio, minha senhora.

- E se eu pagasse?

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.

- E… e se eu me arranjasse sozinha? o senhor entende o que eu quero dizer?

- É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a em baixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Ti­nha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser ado­rado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até à bênção da morte.

A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido An­tenor Raposo.

 

(in Contos de Clarice Lispector, Relógio d’Água)

 

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por Augusta Clara às 18:00

Sexta-feira, 05.04.13

Na Foz do Douro – Adão Cruz

Adão Cruz  Na Foz do Douro

 

 

(José Magalhães)

 

 

Generoso abraço verdade solitária o mar infindo onde colhes as palavras e o pequeno gesto da areia fina riscada dos pés das gaivotas

Entra‑me nos olhos o mar como em ti como tu tenho os olhos inundados de mar mas fogem‑me as sílabas férteis que ele te põe nos lábios e nos versos

A vibração das palavras de água salva‑me da paz sacrificial das rochas erectas e firmes quase me sinto futuro aqui a lembrar que o passado só existe para enganar o presente

Sinto‑me bem aqui ao lado do possível e do impossível na orla do silêncio das tuas palmeiras saboreando o Sal da

Língua como fruto roubado que me liberta da longa noite acumulada na boca

Arde em mim a luz de fogo que abre o mar e o peito quando o sol se derrama e vai dormir aqui eu sinto bem dentro dos sentidos o esplendor da água fervente e dos corpos entontecidos que só podem amar‑se no ventre do mar

Um vento leve com cheiro a maçãs acaricia‑me a face trazendo pela mão a paz da tarde e quase me adormece

Perdi a página já não sei onde ia também o sol se foi e com ele o dia

Bate agora a noite com estrondo no casco frágil da solidão penso que tudo se vai desmoronar talvez morrer mas de

novo retomados teus versos dizem‑me que não

 

(in Adão Cruz, Vai o Rio no Estuário. Poemas de braços abertos, ediçõesengenho)

 

 

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por Augusta Clara às 14:00



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