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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Ruben A. Menino de Natal
(Leonora Carrington)
Menino no Liceu, calça comprida, já espigadote. Alto, quase cabeludo, a deitar já não o pião, jogar à barra no intervalo, saída das aulas, fumaças, por ali fora, a malta toda parada olhar pequena, olho que ficou, mesmo só uma nesgada pendurada no corpo de uma ela que ia ia sem ver rapaz atrás capataz falaz paz uma paz com plural de instrução primária. Acrescenta-se ES e a lição aprendida. Catita, ita, menino de liceu, convenceu, professor chamou com toda a atenção, perguntou se Natal já viu, aonde, com árvore ou presépio, em casa ou na rua, na cidade ou no campo, na montanha ou na planície, nos trópicos, ou debaixo e em cima da neve. Menino de liceu que tinha sido homem, andado na universidade, refilado, revoltado, sempre bem-humorado, menino de liceu que outrora na universidade fora perseguido, moderno, bem queria bem para todos, dava uma face quando a outra não chegava, menino que fora grande homem, morrera na casa dos trinta, por ser bom apanhara, fora denunciado, era agora menino do liceu, brincava, como não? E de vez em quando enquadrava-se, sumia, vivia longe, e sabem? O quê? Os professores mal "exaravam, nem marcavam falta, menino a mais, menino a menos, rira o caso tanto faz, desfaz, mordaz, antraz, vivaz, ui!, que substância de adjectivos, com lições decoradas, reformas necessitadas. Menino de liceu voltava a casa, ninguém sabia onde dizia adeus aos outros pedros de nome companheiros da bola rebola chuta ó pá tira põe caramba bela jogada — qual gemada? Uns peixes que deu para outros comerem e não morrerem. De fome. Menino de liceu estava mais novo, ainda jogava o pião, no segundo ano coitado, mal amanhado, a Mãe bem mãe era, o Pai uma fisga lhe fizeram, brincava aos pardais com os demais, nos recreios sabia a lição, falava com sabedoria e todos paravam naquela euforia de pontapé para ouvir em pé. Menino de liceu sofreu, quando da admissão para explicar a sua lição. Os Mestres desconfiados num jesus antónio qualquer talvez filho de josé maria pedro madalena paulo um jesus a exame queria provar à geografia que sabia de cor. As contas sabia, boas, certas, cheias de recados, na história pátria foi um saber menino falou do mundo falou com sabedoria de terras fora da instrução primária terras lá longe onde nascera e comera os primeiros milhos, sentou-se frente a frente de um júri que falava frente a frente tal estória nunca ouvira nem a carochinha nem a nau catrineta. E depois? E Depois, morreram as vacas e ficaram os bois, dizia de mansinho um menino na primeira carteira para, de mansinho ajudar o tal de jesus que fora falar de terras de além que rimava com belém a certeza não era bem uma Jerusalém, sim sim. Diga lá e o que mais? Existe lá um mar morto, tudo ressuscita, a vida continua. O Menino responda só às perguntas dos professores, com muita atenção. Quem era o Pai dos filhos de Zebedeu? Muito bem, muito bem, tanta sabedoria, alegria. Vamos ao mapa, diga lá se conhece neste bocado acidentado um galileia qualquer, assim mesmo de trazer por casa, menino sabe tudo, foi aos santeiros do Norte, agarrou as imagens e mostrou as habilidades já canonizadas. Todos aprovaram. Menino já não estava na instrução primária, menino de liceu que fora outrora da universidade menino que fizera exames e falara com doutores, menino que de jesus sabia tinha agora vizinhos para brincar, fraldiqueiro com o rabo de fora, menino certinho, quase pequenino, menino porcalhão, Mãe, sempre a lavar, Pai sempre a plainar, serrar, afagar, lenhar, menino não fuja, volte cedo, nem o bê-á-bá sabia, menino não andava, menino dava cuidados, menino pequenino, já sem fraldas, menino agora nascido, presépio à espera com animais de homens reis e bichinhos à volta. Uma estrela, muito estrela, pendurada no último andar, mostrava luz tão luz já entrando na eternidade.
(in Páginas (VI), Assírio & Alvim)
Jorge Silva Melo José Gomes Ferreira: Sacudir as palavras
É um passeio leve, divagação, uma despretensão sobre o fazer da poesia, este livro que li nas horas deixadas vagas por uma espera, Laboratórío de Cinzas, IV volume dos Dias Comuns de José Gomes Ferreira, diário que-é-como-quem-diz de Janeiro a Maio de 1968, fim do café Bocage, fim do Martinho, encontro de um verso, os cinquenta anos de vida literária, o renascer de "A Capital", o Raul Rego preso , malevolência, malícia, desconfiança, o Carlos de Oliveira e o seu sagaz humor, o Avejão de Raul Brandão na Faculdade de Letras (eu entrava e o Luis), as prisões políticas, a hesitação, o sobrolho de Mário Dionísio partido no aeroporto ao despedir-se de Soares, que ia para o exílio de São Tomé, este verso sim, aquele não, estarei amanhã convicto disto que escrevi, vai-vem irónico, auto-irónico, auto-complacente e exigente de quem vai anotando passagens pela vida, olhares, lampejos, sombras, o fio do pensamento no seu fazer-se.
E ganha luz particular este volume, agora que a excelente revista "Relâmpago" dedica o seu número 14 a "Como se faz um poema?", com depoimentos de muita gente e as respostas frontais, tão honestas de poetas tão poetas corno Armando da Silva Carvalho, Luís Quintais, Manuel Gusmão (foram as que mais gostei, mãos tão limpas no verso e na consciência).
Leio Gomes Ferreira e cruzo-o com todos estes que me chegam da 'Relâmpago", hesitação entre a vida vivida, Donizetti ouvido na rádio. uma cama, Heinz Holliger, amor perdido, uma viagem e as palavras que provisoriamente se encontram, se retomam, a praça Carlos Aberto em Turim, as palavras que se apagam e se vão.
E agora que voltámos a ler tantos pedaços das várias Artes Poéticas de Sophia, é bom rever este gesto inicial, perguntarmo-nos como se faz um poema ("um verso", dizia Sophia), como se vai vivendo o permanente recomeço, sempre inacabado acrescentar de palavras ao vento, estranha maneira de nos erguermos, neste imprevisível cruzamento do diário com o trabalho poético.
E paro na nota luminosa de 24 de Maio do livro de Gomes Ferreira: "O Redol, numa entrevista à "Capital": "há dois sítios que considero os mais importantes da minha vida: o sítio onde escrevo e o sítio onde amo." Preferia que ele dissesse: "a mesa onde escrevo e a cama". "Exibicionismo".
Haverá melhor exemplo do que é escolher palavras, rasurar para escrever, limpar os óculos, afirmar, escolher? Não é neste "a mesa e a cama" que se define o escritor, talvez o poeta, o legislador, o amigo? E, do dia 3 de Maio: "Palavras a mais... Embora esteja num dia pouco abreviador vou tentar sacudir algumas..." Tentar sacudir as palavras, algumas palavras, senti-las a mais, deixá-las cair no esquecimento: esse o trabalho da poesia, ficar só com o necessário, limpar a casa como na Páscoa e nas leis?
Fecho os livros e regresso à burocracia, tentando responder a um formulário do Ministério da Cultura. E logo se me cai o coração ao ler, assim e tal e qual, que me é solicitada, lá numa das intermináveis alíneas, uma "breve resenha de percursos subjacentes à candidatura em ópticas diversas, nomeadamente em termos cronológicos, colectivos e individuais, mostrando como nos últimos cinco anos a qualidade técnica, artística e a experiência tiveram reconhecimento público".
Poça!
Público, Mil folhas, 17 de Julho de 2004
(in Jorge Silva Melo, Século Passado, Cotovia)
Carlos Esperança A mulher, a eterna ameaça e vítima ancestral
Há dias publiquei uma foto de Annette Kellerman (1886/1975) a promover o Direito das mulheres ao uso do maiô, em 1907. Era um fato de banho que apenas deixava o pescoço e os braços à mostra. Valeu-lhe a prisão.
A nadadora australiana, atriz e escritora, foi presa por atentado ao pudor. Não podia ser o que descobria a causa de tão cruel punição, era o medo da emancipação, da igualdade de género que, durante milénios, justificou a violência das instituições contra a mulher, como se a humanidade pudesse existir sem ela, como se cada um de nós pudesse nascer, sem ser asfixiado, de pernas atadas, como os homens a queriam.
No Concílio de Niceia (séc. IV), discutiu-se com “seriedade” e “pureza de intenções” a questão de saber se as mulheres tinham alma, e hoje, quando cada vez menos pessoas se interessam pela existência da alma, a mesma Igreja discute a alma do zigoto.
Almas do diabo!
Maria Montessori (1870/1952), pedagogista e pedagoga, mulher que estudei por dever profissional, foi das primeiras educadoras de crianças deficientes e a primeira médica italiana. As dificuldades que teve de vencer, as provocações e o assédio de que foi alvo!
A frequência de classes com homens, na presença de um corpo nu, era inadequada. Foi obrigada a realizar as dissecações de cadáveres sozinha, depois do horário dos colegas. Aos 18 anos, esta mulher era a minha heroína. O seu currículo na pedagogia científica e na filosofia educacional rivalizam com a coragem cívica. A sua biografia e bibliografia equivalem-se.
Na ditadura clerical-fascista de Salazar a mulher só podia ausentar-se para o estrangeiro com autorização do marido. Este administrava-lhe os bens, abria-lhe a correspondência, exercia um direito. A violação não era crime.
Quem tem medo da mulher não tem confiança em si. Quem quer aprisionar-lhe a alma não sabe ser livre. Ninguém é livre se exercer a escravatura. Temos sido um mundo de escravos na ilusão de que a violência é uma forma de liberdade e uma manifestação de poder, desconhecendo que na desigualdade de géneros se encontram as amarras que nos tolhem, a desonra que nos diminui, o opróbrio que nos envenena.
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...