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Jardim das Delícias



Sexta-feira, 31.01.14

La Flor De Estambul (música da 1ª.Gnossiana de Erik Satie), por Javier Ruibal

 

Javier Ruibal  La Flor De Estambul

 

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por Augusta Clara às 21:00

Sexta-feira, 31.01.14

O tempo fora do tempo - Adão Cruz

 

Adão Cruz  O tempo fora do tempo

 

 

(Adão Cruz)

 

 

   O verão entra hoje, lembrou a velha a comer um pedaço de pão. à porta da padaria.

Meio triste por vir tão cedo, meio contente por vir tão tarde, já que a primavera o deixa de mãos a abanar com este tempo sem tempo. Ainda agora caiu um aguaceiro que fez as gaivotas encolherem-se e o rio cobrir-se de um espesso véu.

O verão está à porta como a velha na padaria. Nem entra nem sai.

Também à porta passa o eléctrico na sua lenta e gemida marcha de outros tempos, que nada tem a ver com as velocidades de hoje. O tempo fora do tempo.

O homem do lado de lá da rua, sentado num monte de redes ainda com algas, sacudiu o casaco molhado e praguejou. Um menino brincava a seu lado, com uma laranja espetada num pau.

As gaivotas espanejaram as asas quando a chuva parou, como fazem no inverno.

Pelo retrovisor, não me apercebi de que alguém fora atropelado, mas pareceu-me ver um gato a espernear na valeta.

O verão entra hoje mas não parece verão, lamentou a mulher de preto à porta da padaria, a comer um pedaço de pão. É mesmo um tempo fora do tempo.

Já o eléctrico dava a curva, quando um homem saltou, bem inclinado para trás, como se fazia no tempo dos eléctricos. Trazia na mão um vaso com manjerico, este sim, deste e de outros tempos.

Não havia vento. Se vento houvesse, os barcos baloiçavam, mas os barcos mantinham-se serenos e dolentes. Apenas uma brisa quente e salgada cheirava a peixe.

O homem sentado nas redes procurava atiçar as teimosas brasas de um fogareiro, ainda sem tempo de serem brasas de assar.

Balões de muitas cores pendiam das árvores a pingar, lembrando o S. João seco de outros tempos, ou apenas orvalhado.

A velha que comia um pedaço de pão gritava de longe ao velho do fogareiro para que cobrisse as sardinhas por causa dos gatos. Pouca sorte a do gatito escorraçado, assim morrendo fora do tempo.

As nuvens teimavam em gotejar e o homem das sardinhas praguejou de novo, cobrindo as brasas com as mãos e com palavrões mais assanhados, deste e de outros tempos.

Uma pequena lufada de vento errante fez os balões brincar, e um deles rebentou, para nunca mais ser balão de S. João. Outro desprendeu-se e voou, subindo quase até ao avião que atravessava o rio. O menino com a laranja espetada num pau correu, correu atrás dele e caiu.

A velha de negro, achando que era o tempo de sair da porta da padaria, atravessou a rua ao jeito das artroses, numa corrida fora de tempo, e foi levantar o menino que chorava. Deu-lhe um beijo de avó e levou-o ao velho do fogareiro. O pescador largou as brasas que já faziam chiar meia dúzia de sardinhas e pegou nele ao colo. Uma gaivota atrevida e cansada do tempo achou que era tempo de pifar uma sardinha.

Apareceram mais dois, dentro do tempo, um vermelho e corcunda e outro pálido e esguio como vela de cera, falando “dos” diabetes e deitando o rabo do olho a um rabito de sardinha.

Podem ficar. O meu genro está a chegar do mar com mais e bem fresquinhas, disse a velha fora de tempo, dado que o cérebro de cada um já impusera, uns segundos antes, o tempo de se sentarem no caixote mais á mão.

Entra hoje o verão. Mas que verão! Não há nada mais triste do que o tempo fora do tempo.

Deixe lá que estas sardinhinhas vieram mesmo a tempo.

 

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por Augusta Clara às 15:00

Sexta-feira, 31.01.14

O irreformável "cultural".- António Pinho Vargas

 

António Pinho Vargas  O irreformável "cultural"

 

 

   Sabemos que o país é mais ou menos irreformável; que há numerosas instituições igualmente irreformáveis. Mas que tudo seja como que neutralizado pelas ideias gerais correntes é já demais. 
Hoje li  no Público sobre um manifesto que foi apresentado na Gulbenkian "Contra a cultura da crise, a cultura da resistência".
À primeira vista não tenho nenhuma razão para não estar de acordo, como parece óbvio. Mas olhando melhor para os signatários e os termos usados, verifico que tenho umas pequenas, e outras grandes, divergências. As pequenas prendem-se com o facto de, praticamente nunca, ser convocado pelos promotores de tais manifestos. Porque será? Um compositor não faz parte nem de uma coisa (cultura) nem de outra (ciência)? Verifico igualmente que não sou apenas eu: são praticamente todos os compositores desta área que pratico. Nunca estão presentes de forma geral. Esta é por isso a pequena divergência: a constatação de que uma determinada zona das práticas artísticas não é considerada relevante para assinar tais manifestos. Mas daqui não vem grande mal ao mundo, no meu caso, de tal modo tantas são as petições que já assinei sobre outras matérias - por exemplo, auditoria cidadã à dívida pública, entre muitas. Mas a exclusão de alguns artistas de algumas áreas revela que a questão está longe de ser linear e acaba por ir parar à irrelevância social de que tenho falado, sendo que neste caso são os próprios "resistentes-auto-denominados" que a (re)produzem do interior dos seus grupos. Como se houvesse uma espécie de corte transversal que nos dissesse onde se situa a linha abissal que preside à coisa dividida. Certamente que não será a linha "high-low culture". Não sendo, então não é clara e provoca dúvidas. Sendo já habitual não será demasiado grave.
A segunda é da ordem do discurso. Tenho há muito uma pequena embirração contra o uso corrente do conceito de "cultura" nas querras civis de muitos anos sobre o assunto. Sou um artista. Por isso prefiro usar o termo artes. O termo cultura tem pelo menos dois significados distintos, em primeiro lugar (a "cultura" dos aborígenes versus a actividade "cultural" de um país europeu, por exemplo, designam coisas diferentes). Em segundo lugar pude afirmar num colóquio organizado pelo Bloco de Esquerda em Coimbra há uns dois ou três anos, que tinha as maiores dificuldades em considerar o "ministro da cultura" (ou o SE, é igual neste aspecto e fosse qual fosse) como "grande educador da classe operária" (ironizando com a designação auto-atribuída em tempos ao secretário geral do MRPP). Na verdade os ministros da cultura são o topo de uma complexa máquina pública administrativa e contabilística e segue-se uma hierarquia enorme com muitos outros agentes do campo. Ao mesmo tempo Jacques Lang já foi há uns largos anos e se continua a servir de referência imaginária, algo está errado, porque o mundo mudou muito e, sobretudo, o mundo não é apenas a França e as suas estruturas centralistas como existem em poucos mais países.
Finalmente para terminar este post que irá ser mal compreendido com toda a certeza uma vez que o conceito (de cultura) circula sem grande questionamento há anos  - como um adquirido que toda a gente sabe o que é, "naturalizado" - que justamente a questão da "resistência", aplicável naturalmente à Resistência francesa durante a II Guerra, não designa a meu ver de forma suficientemente clara ou eloquente de que "cultura" se está a falar. O termo foi usado em Portugal durante a ditadura, percebe-se, num quadro mundial marcado pela guerra fria e a divisão em blocos. Na actual circunstância trata-se de "resistir" contra o capital ou mais simplesmente de resistir contra os cortes deste governo? É que mesmo no tempo de Carrilho, havia cortes de ano para ano, lembro-me bem, e daí para diante, sempre continuaram. Então conviria em lugar de usar expressões que de tão usadas já perderam eficácia e sobretudo clareza tentar tornar claro aquilo que se defende e deste modo é um pouco obscuro. A única coisa que não é obscura é a política quasi-terrorista do ultra-governo, agora numa fase discursiva de operação-plástica-apressada-eleitoral. Isto é um tal sucesso que até me apetece imigrar do país onde vivo (Portugal) e ir para o Portugal desse sucesso. A esquizofrenia destina-se a produzir "realidade" discursiva contra a realidade real. Espero que a manobra falhe mas deve-se levá-la a sério. 
Os artistas trabalham e sabem que os objectos que produzem vão parar ao mercado das artes, ao mundo das artes, onde vigoram os mecanismos internos que Bourdieu e Becker nos ensinaram a olhar: instâncias de consagração, agentes, mediadores, responsáveis culturais, intermediários de toda a ordem que, no seu conjunto e na sua articulação, constituem os "mundos da arte". Há ainda um outro aspecto problemático: é quando um qualquer conceito de arte - até talvez visto como de "resistência" - se torna hegemónico e nesse sentido dominante ou mesmo opressivo contra o seu próprio discurso legitimador.  Mas deixemos isso, demasiado complexo e controverso para aqui poder tratar. 
Revestir esta complexa teia com um vago véu diáfano da "cultura" - ainda por cima de "resistência" - apaga tudo isto e não esclarece nada em relação aos discursos velhos de décadas sobre o mesmo assunto. Ora sendo este governo particular, movido por uma ideologia particular, talvez fosse uma boa ideia arranjar algumas palavras de ordem menos antigas, menos carregadas de significados erráticos ou mesmo já históricos.
APV

 

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por Augusta Clara às 13:00

Sexta-feira, 31.01.14

Lançamento do livro "O Assassino do Aqueduto" de Anabela Natário

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por Augusta Clara às 11:00

Sexta-feira, 31.01.14

Jamal Juma: Primavera Árabe não ajudou Palestina. Situação é insustentável - Marco Aurélio Weissheimer

 

 

Marco Aurélio Weissheimer  Jamal Juma: Primavera Árabe não ajudou Palestina. Situação é insustentável

 

 

 

(foto de Marco Aurélio Weissheimer)   

 

Publicado em Carta Maior em 26 de Janeiro de 2014

 

Em entrevista à Carta Maior, o ativista palestino Jamal Juma fala sobre a situação de seu povo e sobre a realidade política na região pós-Primavera Árabe.

 

 

Porto Alegre - A situação na Palestina está chegando a um ponto insustentável. O processo de negociação capitaneado pelo secretário de Estado dos EUA, John Kerry, não visa a oferecer uma solução de justiça e paz para os palestinos, mas sim dar a Israel a possibilidade de continuar a construir mais assentamentos. Desde a retomada das negociações, 42 palestinos foram mortos pelo exército israelense, quatro comunidades palestinas foram despejadas no Vale do Jordão e aumentou o processo de judaização de Jerusalém. A chamada Primavera Árabe, para o povo palestino, teve apenas o efeito de desviar a atenção de sua luta e diminuir a possibilidade de apoio de outros países árabes. A avaliação é de Jamal Juma, coordenador da Campanha Popular Palestina contra o Muro do Apartheid, Stop the Wall.
Jamal esteve em Porto Alegre na última semana participando do Fórum Social Temático 2014. Em entrevista à Carta Maior, ele fala sobre a situação de seu povo e sobre a mensagem que trouxe nesta visita ao Brasil: “Nós estamos aqui para trazer uma mensagem para nossos amigos da América Latina e, em particular, do Brasil, que é um grande país e tem uma longa história de luta contra o colonialismo e a opressão. Estamos pedindo ao Brasil e aos demais países da América Latina que cortem as relações econômicas e militares com Israel”.
Qual é a situação vivida pela Palestina neste momento? Qual a sua avaliação sobre a retomada do processo de negociações com Israel, capitaneado pelos Estados Unidos?
Jamal Juma: 2014 é um ano muito importante para a Palestina. Foi retomado um processo de negociação, mas essa negociação não visa chegar a uma solução com justiça, mas sim dar a Israel a possibilidade de continuar a construir mais assentamentos. Essas negociações não vão levar a nenhum lugar bom para os palestinos. Elas começaram em agosto (de 2013) e, de lá para cá, 9.500 novas unidades habitacionais começaram a ser construídas em assentamentos em diferentes áreas da Palestina. Isso significa que Israel prossegue sua política de colonização e de construção de fatos consumados para inviabilizar na prática a existência de um Estado palestino.
Desde a retomada das negociações, 42 palestinos foram mortos pelo exército israelense, quatro comunidades palestinas foram despejadas no Vale do Jordão. Neste período, também ocorreram ataques praticamente diários na zona da mesquita de Al Aqsa contra a comunidade muçulmana, criando uma situação muito explosiva em Jerusalém. Os colonos israelenses continuam atacando os palestinos em suas aldeias, fazendo incursões noturnas para queimar mesquitas e casas e para atacar pessoas nas ruas. A judaização de Jerusalém também prossegue, visando aniquilar qualquer sinal das culturas muçulmana e cristã e construir uma identidade unicamente judaica na cidade. Essa política se traduz, por exemplo, na mudança de nomes de rua ou na criação de colônias no centro de Jerusalém.
Ao mesmo tempo, como parte dessas negociações, os palestinos são proibidos de pedir reconhecimento como Estado membro junto à Organização das Nações Unidas e a outras organizações internacionais. Então, podemos esperar que essa retomada das negociações pode trazer paz para a Palestina? É claro que não. O que ocorre é uma forte pressão internacional para convencer os palestinos a se render e a aceitar a atual situação. É isso que Israel, os Estados Unidos e seus aliados querem.
Qual é a posição das forças políticas palestinas em relação a essas negociações?
Jamal Juma: Há um consenso entre todas as forças políticas e entre o povo palestino contra essas negociações. Nas ruas, percebe-se também uma raiva muito forte contra esse processo. Estamos aguentando esse processo para evitar que digam ao mundo que os palestinos são os responsáveis pelo fracasso das negociações. John Kerry tentou obter algumas concessões de Israel como o reconhecimento do Vale do Jordão como território palestino, a definição de um status compartilhado em Jerusalém ou algum outro reconhecimento dos direitos dos palestinos. Obviamente, não conseguiu nada disso. Neste momento, Kerry trabalha somente para conseguir um marco geral para continuar as negociações pela eternidade afora.
O secretário de Estado dos EUA está fazendo isso somente para não ter que admitir um fracasso completo, mas ninguém vai dar ele o mandato para prosseguir essas negociações indefinidamente. Então, em abril, quando terminar o período de nove meses de negociação, a situação tende a se deteriorar. Ou a Autoridade Palestina aceita as condições impostas, o que seria um suicídio político, ou parte para criar um consenso entre as forças políticas palestinas e abrir uma batalha legal contra Israel usando as leis e o direito internacional em todos os organismos internacionais, inclusive o Tribunal Penal Internacional, buscando conseguir o isolamento de Israel como um poder colonial e de apartheid.
Como está o movimento internacional de boicote a Israel? Parece que ele conseguiu ampliar sua força, principalmente em alguns países europeus.
Jamal Juma: Sim. Na Europa, diversos governos começaram a fazer pressão sobre suas empresas para que não invistam nos assentamentos israelenses localizados em territórios ocupados. É muito importante que no Brasil e na América Latina também se adotem essas diretrizes para cortar relações com empresas e instituições israelenses em vários níveis. Para citar um exemplo de relações comerciais, temos o caso da Mekorot, empresa de águas israelense que rouba água dos palestinos e a revende aos próprios palestinos pelo dobro do preço, e que está expandindo muito fortemente seus negócios na América Latina, em cidades como Buenos Aires e São Paulo, entre outras.
Nós estamos aqui para trazer uma mensagem para nossos amigos da América Latina e, em particular, do Brasil, que é um grande país e tem uma longa história de luta contra o colonialismo e a opressão. Estamos pedindo ao Brasil e aos demais países da América Latina que cortem as relações econômicas e militares com Israel. Até porque, historicamente, Israel apoiou as ditaduras nesta região e foi cúmplice das violações de direitos humanos. Queremos discutir esse tema. Não é possível que o Brasil seja o segundo maior importador de armas israelenses. É preciso revisar os acordos militares e econômicos firmados com Israel.
Como os recentes acontecimentos políticos em países como Egito e Síria estão afetando a luta dos palestinos? A chamada Primavera Árabe trouxe efeitos positivos ou negativos para a causa palestina?
Jamal Juma: O impacto que houve foi ter retirado atenção da luta palestina e desviar a atenção dos países da região para o que está acontecendo na Síria e no Egito. Como consequência disso também a possibilidade de ter mais apoio no mundo árabe ficou menor neste momento. Neste sentido o impacto foi negativo. A situação nestes países é muito incerta. Mas creio que temos todas as condições para a chegada de uma primavera palestina. A situação atual é insustentável. É uma situação de contínua humilhação e ocupação. Aceitar a negociação nos termos em que estão sendo colocados significa render-se a uma situação de apartheid e de escravidão.
Qual é a situação econômica do povo palestino hoje? Como são as condições de trabalho? Qual o cotidiano econômico?
Jamal Juma: Em realidade, não se pode sequer falar de uma economia palestina, pois ela se resume hoje praticamente às doações que chegam de fora. Uma vez que se corte essas doações não há mais economia palestina. Há algumas fábricas, mas a maior parte de quem está empregado depende diretamente dessas doações internacionais. Nossos recursos naturais, nossa terra e nossa água estão sob controle israelense. Nossas fronteiras estão sob controle israelense. Para exportarmos algo precisamos passar pelo controle israelense. Não há como construir uma economia sob tais condições de ocupação e controle.

Créditos da foto: Marco Aurélio Weissheimer

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por Augusta Clara às 08:00

Quinta-feira, 30.01.14

Romance para piano e violino, Op.11 - Dvorak

 

Dvorak  Romance para piano e violino, Op.11

 

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por Augusta Clara às 21:00

Quinta-feira, 30.01.14

Com respeito às palavras - Hélia Correia

 

Hélia Correia  Com respeito às palavras

 

 

Publicado no Público em 17 de Janeiro de 2014

 

   No rigor do latim, “indignado” é o que é tornado indigno. E eis, porém, que a palavra não se aceita a ela própria, empreende uma singular rebelião. Nega a humilhação que cai sobre ela. Vejam o quanto esta palavra é poderosa. Como deitou ao chão a sua origem. Como tomou nas mãos a sua vida.

 

I


Não tenho competência para escrever sobre os eventos da realidade. Começa a falha pelo léxico: nem sei se o termo “evento” pode usar-se aqui. Não aprendi o bom vocabulário. E quanto à organização para o discurso, saber onde ele começa e como acaba, mais o que pelo meio se vai pondo, tão pouco faço a mais pequena ideia. 
Eu, quando tenho de falar com alguém do género bancário ou fiscalista, aviso logo que sou das “Humanidades”, isto é, completamente ignorante. E peço caridade lexical, paciência: essas virtudes superiores. Nunca se fica muito esclarecido, mas trata-se de não incomodar. Um resto de amor-próprio determina que escapemos depressa do cenário. A humilhação chama pela maldade e eu resplandeço quando ocasionalmente alguém me diz uma palavra cara que posso decifrar rapidamente, emudecendo o interlocutor: “Sei o que significa, vem do grego”, disparo. E já não é uma conversa. É uma espécie mitigada de motim. O anedotário da revolução francesa regista que os motins não causam dano, são como uma pequena bebedeira. Não vale a pena perder tempo com motins. Não vale, aliás, a pena perder tempo. Estrebuchamos no vazio e alguém ri.
Parece, às vezes, que o cenário da ficção científica assentou no planeta actual: que criaturas mais ou menos humanóides nos conquistaram pelo interior e desapoderaram-nos de tudo, esperança, dignidade e alegria. Vimos tanto clamor nas praças gregas, cólera e fogo com nenhuma consequência. É como se entre os protestantes e o poder não houvesse trajecto, não houvesse natureza contínua. Duvido até que conseguissem procriar se a carne de uns e de outros se encontrasse. Respiram ares diferentes e não faz sentido algum que certa retórica da esquerda os desafie a que experimentem a pobreza, a que tentem viver com o salário que destinaram para os indefesos. Provavelmente viveriam bem porque não se alimentam como nós. Nem dormem como nós. Talvez nem morram. A verdade é que pouco pensamento nós conseguimos produzir sobre eles. A desumanidade é um mistério.


II


Vejo como anda gente a reclamar que se dê espaço à imaginação. É uma herança daquele Maio de 68 que a queria no poder e fez com isso uma bonita frase. Aliás, não houve muito muito mais que herdar. Mas enquanto os filósofos confiam nos benefícios do receituário, longe deles e do fumo dos Gauloises está à espera a serpente,latet anguis. Os Le Pen crescem sem filosofia. E a imaginação, que faz? Distrai. Melhor será dizer que nos engana. A alegoria cibernética que eu acima explorei trouxe um sorriso a este texto enquanto texto. E mais além não vai. Fornece uma dinâmica de jogo e entretém vagamente até cansar. 

 

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por Augusta Clara às 15:00

Quinta-feira, 30.01.14

Conversas na Bulhosa Entrecampos, 30 Janeiro às 18h

 

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por Augusta Clara às 12:33

Quinta-feira, 30.01.14

Um grito de revolta - Eva Cruz

 

 

Eva Cruz  Um grito de revolta

 

 

 

Eva Cruz nasceu em Vale de Cambra, é licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra, fez formação em Portugal, na Alemanha e na Suíça (num cantão de língua alemã). Foi correspondente/tradutora numa empresa portuguesa e, depois, numa empresa suíça. Foi professora do Liceu durante trinta e seis anos. No Ensino, ocupou cargos de direcção e cargos pedagógicos. Esteve ligada à formação de professores durante doze anos. Foi dirigente sindical.

Escreveu para jornais e publicou em 2004 o seu primeiro livro “Era uma vez Future Kids”, em 2006 o segundo “Aurora Adormecida”, ”Era uma vez em Outubro”, o terceiro livro, em 2010 e o último "Corconte" em 2012.

 

   Tenho andado para aí a escrevinhar sobre assuntos de entreter, não tanto por falta de revolta, mas mais pela paz mole da alienação. Na minha idade já restam poucas esperanças de ver algum dia o sol a brilhar.

Hoje não resisto ao desafio da indignação.

Vivemos num país de pobres, cada vez mais pobres e de remediados que passaram a pouco mais que pobres.

Pobres que mal têm para comer o indispensável à sobrevivência. Pobres que nada têm para se lavar, para se aquecer, para dar ao corpo e ao espírito algum mimo ou alívio  nesta árdua passagem pela Terra.

A limpeza e o asseio custam dinheiro, a água e a energia são caras. Não admira que haja gente que se deite e levante com a mesma roupa dia e noite para não arrefecer. Nas aldeias a fogueira não é barata. É custosa e cara a lenha para acender uma lareira. Nas cidades nem se fala, ao preço a que está a energia para um simples aquecedor.

Na realidade, a higiene e o aquecimento são luxos de classe média, no entender do  nosso governo,  nosso, não, porque não votei em nenhum deles, mas tenho de o aguentar dolorosamente, contra  minha vontade.

O meu país, o país que Abril construiu, onde o cravo vermelho restituiu a dignidade a um povo, é hoje um país pobre e triste. Um povo com fome e andrajoso, sem direito ao pão e à higiene, sem direito ao respeito por si próprio e ao mínimo arranjo, um povo de gente doente, desdentada, gente que cada vez mais abandona a escola porque não há dinheiro para comer, quanto mais para livros. Gente cada vez mais ignorante, mais afastada da arte e da cultura, o único caminho que ainda pode salvar a humanidade.

Ter trabalho, uma casa, um carro, fazer férias uma vez por ano, comprar uns livros de vez em quando, ler o jornal, ir a um restaurante em dia de festa, a um cinema ou a um concerto são luxos de uma classe média gastadora, a viver acima das possibilidades, no entender de quem nos governa.

Como podem hoje dar-se a esses “luxos”? Uma casa, um carro exigem pagamento de prestações. Além disso há a luz, a água, seguros, gasolina, pneus, revisões, selos, manutenção, contribuições de toda a ordem que nem os menos pobres da classe média já podem aguentar.

Desempregados? Aos montes, a depender dos parentes mais velhos a quem tanto o governo roubou e continua a roubar. Precariedade de vida é o que mais há, onde só um dos cônjuges trabalha, com dois e mais filhos, gerados numa altura em que a vida e as economias mais generosas permitiam a generosidade de combater uma população em declínio.

E os milhares que emigram levando com eles a dor, a tristeza, a saudade, e o melhor que temos em saber e conhecimento?

Que país é este? Interrogo-me eu todos os dias.

Um país onde todos os discursos se centralizam no défice, na dívida, nos juros, onde nada mais parece merecer a atenção de quem nos desgoverna. Um país em que a esquizofrenia da Bolsa, das Finanças, das corridas ao Mercado, enche a cabeça das pessoas com números e académicos inglesismos ou americanismos que ninguém entende.

Ah! Um país de corruptos que matam, esfolam, cavam constantemente profundos buracos no frágil corpo do país, que se riem da justiça e da prisão, sendo muitas vezes escandalosamente promovidos a pessoas de bem e distinção.

E o fosso cada vez mais intransponível entre ricos e pobres!

Que país é este? Interrogo-me eu todos os dias.

E há um senhor em Belém que articula mal as palavras e outro em S. Bento que as articula bem de mais, arenga suficiente para manobrar e manipular um povo, que de braços ainda soltos não tem a coragem de tocar os sinos a rebate!

É assim, meu querido Zeca Afonso. Eles comem tudo, eles comem tudo, e não deixam nada. Faltam homens como tu. Onde está a força da tua geração?!

 

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Quarta-feira, 29.01.14

Abbado Para Sempre

 

Desde a morte de Arturo Toscanini, o Teatro de La Scala de Milão, sempre que morre um director, realiza um concerto com a sua obra preferida. Assim, anteontem, dia 27, com a sala vazia e as portas abertas, o teatro e o povo de Milão prestaram homenagem a Claudio Abbado (a gravação do som foi feita só no teatro, daí a sua ausência no início do vídeo)

 

O maestro Daniel Baremboim dirigiu a orquestra na marcha fúnebre da 3ª. Sinfonia de Beethoven "Eroica"

 

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por Augusta Clara às 21:00

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