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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Herberto Helder
(Alexandre Bastos)
nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora
(in Servidões, Assírio & Alvim)
Al Berto Mar
(Adão Cruz)
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no Zanzi-Bar, julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar — fechado, calmo — propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: onde te vi despir regresso agora /para adormecer ou chorar... e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar.
Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar -esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
(in O Anjo Mudo, Assírio & Alvim)
Carlos Esperança A Europa e a sua desintegração
Acredito na Europa, de Lisboa aos Urais, apesar das deceções e dos interesses que não mudam. Guardo a esperança legada por De Gaulle e continuada por Helmut Kohl, dois gigantes da política cuja distância ideológica não me afastou dos objetivos comuns em relação à Europa.
Teria votado sempre a favor da integração europeia e do seu aprofundamento, na moeda comum e num projeto federalista onde a democracia tivesse conteúdo económico, social e pol...ítico, ainda que a miopia de quem nos governava tivesse impedido os portugueses de se pronunciarem. Agora é tarde para sair do comboio em andamento, com a máquina desgovernada e a velocidade imprevisível.
A queda do muro de Berlim foi uma epopeia recebida em apoteose no país onde voltam a surgir velhos demónios. Foi, aliás, Kohl, que continuo a admirar, que cometeu o crime de apoiar, com o Vaticano, a independência da Croácia, levando a Europa a reboque na demonização da Sérvia e na destruição da Jugoslávia. Quem apoiasse a Sérvia era logo acusado de inveterado comunista e de antieuropeu. Os que previram a tragédia e se lhe quiseram opor foram enxovalhados e perseguidos. Os politicamente corretos destruíram um país e criaram a ficção chamada Kosovo, um entreposto da droga e do islamismo.
Agora faltava a Ucrânia. A germanofilia encontrou eco em toda a extrema direita que na Hungria, Áustria e Polónia reeditam a vocação suicida e fascista que germinou antes da Guerra de 1939/45. Os mesmos atores, as mesmas religiões e os mesmos fascistas têm o apoio dos mesmos, de há 20 anos, na Jugoslávia. Dolorosamente, os mesmos que há 75 anos, Ucrânia incluída, lançaram o mundo na mais devastadora tragédia de sempre, sem pensarem que a próxima pode ser a última. Até o antissemitismo criminoso ressuscitou.
Para desdita da Ucrânia e da Europa, o último dirigente ucraniano era um ladrão eleito. O fugitivo biltre, Viktor Yanukovich, só acelerou os apetites germânicos e deu ensejo à exibição fascista na praça da Independência em Kiev. O Parlamento da Crimeia aprovou hoje, quinta-feira, a realização de um referendo sobre autonomia, agendado para 25 de maio. A Ucrânia divide-se e a Europa rompe-se num demente confronto com a Rússia.
Já ninguém sai bem desta tragédia em que a Rússia deu proteção a um gatuno e Merkel e Barroso admitiram a agitação de nazis que exibiram suásticas na roupa e no coração.
Ontem foi a Jugoslávia, hoje é a Ucrânia e, com elas, é a Europa que se desintegra ou se torna um protetorado alemão, de costas viradas para a Rússia.
Sophia de Mello Breyner Andresen Divaga entre a folhagem
(George Iness)
Divaga entre a folhagem perfumada
E adormece nas brisas embalada.
Aos lagos mostra a sua face nua,
E vai dançar nos palcos vazios da Lua.
Pálida, de reflexo em reflexo desliza.
Não se curvam sequer as ervas que ela pisa.
É ela quem baloiça os lânguidos pinheiros,
Quem enrola em luar as suas mãos
E depois as espalha brancas nos canteiros.
(in Obra Poética, I, Caminho)
Adão Cruz A mulher que amanha o peixe
(Adão Cruz, pormenor de quadro)
Sempre que a vejo no supermercado onde vou reconheço que não é por acaso.
Muito bonita a mulher que amanha o peixe não sei se amanha se amanhece.
Rosto combatido dorido olhar sofrido e manso não sei o que faz desta mulher um poema se os olhos negros e fundos se o desenho rasgado da face se um gesto brusco da natureza revoltada de cansaço.
Um vale profundo entre o cá e o lá banca de peixe mar imenso mar morto do outro lado um peixe vivo no céu tocando o mar estripando com mãos invisíveis entre lágrimas e sangues as entranhas da vida nas elegâncias difíceis dos plásticos cobertos de escamas.
Passos molhados encharcados pesados cheirando a algas ondas de tempestade no lindo rosto marcadas pela ânsia de voar.
Com tantos apetrechos de borracha botas altas luvas e avental não sou capaz de adivinhar o corpo que tem por baixo nem quero que tal aconteça.
A mulher é segredo a mulher é sonho de si mesma no olhar dos outros sonho de ventre liso crescente de imensidão fonte de pão e de leite eternidade e sorriso dança de movimento para além das formas e da imaginação.
Trepadeira de vida e de morte olhos que se abrem no céu e repousam no mar mãos de todas as direcções ainda que vestidas de plástico amanhando o peixe.
Não sei se é casada ou mãe se é tudo ou nada no reduto escasso do dia-a-dia nem me interessa.
Bastam-me os olhos infinitos a boca seca de beijos a dor-desenho dos lábios a doçura-criança que não cresceu por falta de uso tempo e espaço.
O corpo desta mulher está na face oculta e sedenta na ânsia fervente do impulso na mais íntima agitação do mundo e da dimensão que pode caber numa banca de peixe.
Difícil acertar ideias e olhares quando só olhares fazem ideias...enfeita-se a beleza desta forma estranha criando beleza no amanhar do peixe.
Cruel seria descobri-la a dançar pesadamente etérea e volátil nos salões de púrpura da mulher vulgar entre rendas e espumas que não são espuma do mar.
Como sempre tenho de dizer até amanhã sou forçado a serenar as ondas a desnavegar meu barco.
Muito obrigado.
Não tem de quê.
Você é das mulheres mais lindas que já vi.
Muito amável um exagero...faça o senhor o resto das compras e depois passe por cá.
Buscar o peixe...ou voltar a vê-la?
Sei lá!
.
Fernando Pessoa
(Henri Matisse)
Servo sem dor de um desolado intuito,
De nada creias ou descreias muito.
O mesmo faz que penses ou não penses.
Tudo é irreal, anónimo e fortuito.
Não sejas curioso do amplo mundo.
Ele é menos extenso do que fundo.
E o que não sabes nem saberás nunca
É isso o mais real e o mais profundo.
Troca por vinho o amor que não terás.
O que 'speras, perene o 'sperarás.
O que bebes, tu bebes. Olha as rosas.
Morto, que rosas é que cheirarás?
Vendo o tumulto inconsciente em que anda
A humanidade de uma a outra banda,
Não te nasce a vontade de dormir?
Não te cresce o desprezo de quem manda?
Duas vezes no ano, diz quem sabe,
Em Nishapor, onde me o mundo cabe,
Florem as rosas. Sobre mim sepulto
Essa dupla anuidade não acabe!
Traze o vinho, que o vinho, dizem, é
O que alegra a aIma e o que, em perfeita fé,
Traz o sangue de um Deus ao corpo e à alma.
Mas, seja como for, bebe e não sê.
Com seus cavalos imperiais calcando
Os campos que o labor 'steve lavrando,
Passa o César de aqui. Mais tarde, morto,
Renasce a erva, nos campos alastrando.
Goza o Sultão de amor em quantidade.
Goza o Vizir amor em qualidade.
Não gozo amor nenhum. Tragam-me vinho
E gozo de ser nada em liberdade.
(in Novas Poesias Inéditas, Edições Ática)
Manuel Alegre
(Adão Cruz)
Como em Agosto, na Ria, quando chegas da Barra e te lanças à água, finges de afogada, eu corro a salvar-te, trago-te ao colo e nado sem esforço, tu não pesas, somos os dois um só, uma só forma. Alquimia, conjunção astral, o que quiserem.
Sempre que vou à Barra vejo ainda a tua casa apesar de demolida, procuro-te nas águas, agora negras, no cheiro às ervas das areias, na maresia e na salsugem, procuro-te na luz, a luz branca das salinas, estás ainda na ponte de madeira que já não há, passa um barco da Capitania, quem sabe se não te leva para a Torreira ou S. Jacinto, procuro-te na maré cheia e na maré baixa, nas gaivinas, nos patos reais, nos maçaricos, nas rolas que passam no fim de Agosto. Há uma gaivota que voa em direcção ao sol.
— Aquela gaivota enlouqueceu, diz Afonso Furtado, meu pai, que é tu cá tu lá com as aves da Ria.
(in A Terceira Rosa, Dom Quixote)
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...