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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Diário de Notícias, 27 de Janeiro de 2016
Um tipo com uma rodilha branca na cabeça, e em cima dela nem uma canastra de fanecas, um quase ayatollah mas um total presidente iraniano - enfim, Hassan Rohani - podia talvez ofender-se com uma estátua romana feita há dois mil anos, que era uma cópia duma estátua grega feita há 2300 anos... A Vénus Capitolina sai do banho, é certo, mas tenta esconder, embora em vão, os seios com a mão direita e a região genital com a mão esquerda. Dir-me-ão, a senhora é tão bela, antiga e de mármore, que não podia ofender ninguém. Mas, lá está, como se pode garantir o que vai na cabeça de alguém que leva na cabeça uma rodilha sem canastra? Fica, pelo menos, um talvez... E a dúvida transforma-se em certeza quando o da rodilha leva um cheque de 17 mil milhões para negócios vários: tape-se a estátua! Calma, não foi tão simbólico assim, não foi com uma burca, foi com uma caixa do IKEA. Quatro tábuas à volta, um tampo e dois mil anos de história apagados. Uf!, Roma ainda não é o Estado Islâmico, não dinamita, só esconde. E não foi por extremismo religioso, mas só por miserabilismo moral. Uma pequena caixa para a Vénus Capitolina, um grande salto à retaguarda para a Humanidade. Ora, nisto de recuar, o problema é o gosto que se entranha. Matteo Renzi, desde ontem o pobre diabo que governa a Itália, levou Roahni para uma sala onde havia a estátua equestre de Marco Aurélio. Olhem o terror nos olhos de Renzi: e pila de cavalo à mostra, ofende?
D.R.
Ella Lingens era admirada nos cafés de Viena pelas suas convicções sociais-democratas, andar emancipado e provocante, e fascinantes olhos azuis. Quando escondeu, no andar onde morava, judeus perseguidos pelos nacionais-socialistas e os ajudou a sair do país, não sabia que uma cadeia de infortúnios e denúncias a levaria ao pior pesadelo da sua vida.
Como prisioneira em Auschwitz, teve de trabalhar sob as ordens do "Anjo da Morte", Josef Mengele, um médico tão brilhante como diabólico, que distribuía chocolates pelas crianças judias e ciganas, antes de as submeter a experiências e torturas atrozes ou de as conduzir pessoalmente para as câmaras de gás, no seu descapotável verde.
Agora, aos 87 anos, meio século depois da libertação de Auschwitz, Ella conserva ainda a determinação e a vontade de viver que a salvaram da morte. A sua figura frágil, encolhida num enorme cadeirão, domina suavemente o ambiente da casa rústica onde mora, nos arredores de Viena.
Ella Lingens foi obrigada a escolher entre a vida e a morte dos seus doentes, "como se fosse Deus", pois não podia desperdiçar medicamentos escassos, em casos que pareciam irreversíveis. "A quem dar os medicamentos, a uma mãe com muitos filhos ou a uma rapariga nova?" - tinha de perguntar a si mesma. "A quem administrar uma injecção, a um velho que, em qualquer caso, vai morrer, ou dividi-la por dois jovens?"
Ella Lingens era catalogada pelos burocratas do Terceiro Reich como "uma ariana de raça pura", o que lhe permitiu esconder os seus amigos judeus sem que desconfiassem dela. Na "Noite de Cristal", em Novembro de 1938, quando os judeus foram espancados nas ruas, as suas casas e lojas destruídas e os seus livros queimados, alguém tocou à porta do andar onde moravam os Lingens. Era o engenheiro Wiesenfeld, que chegou de pijama, a tremer, para se refugiar em casa deles, trazendo na mão uma escova de dentes.
Pela janela chegava um ruído insuportável, de vidros a estilhaçarem-se, bramidos e gritos das hordas nazis, e o engenheiro Wiesenfeld disse-lhes: "Invejo-vos." "Porquê?" - perguntou Ella. "Porque vocês não são judeus". O refugiado ficou três semanas e foram chegando "mais e mais". Finalmente, o andar estava tão cheio, conta Ella, "que o meu marido e eu fomos morar para o hotel".
Foram meses de tensão trágica, e por vezes absurda. Erika, uma jovem de 19 anos, a última judia que esconderam, fê-los passar o susto de vida deles, quando, farta da rotina da vida clandestina, de estar fechada e de apanhar calor, resolveu tomar banho de sol nua, no parapeito da janela do "atelier" onde moravam os Lingens. Os alunos de um liceu que ficava em frente do edifício pensaram que se tratava de uma louca suicida e chamaram a polícia. "Não nos descobriram por milagre" conta Lingens. Antes que os homens de uniforme forçassem a porta do andar, chegou uma amiga da família, "completamente ariana", que convenceu a polícia de que fora ela que estivera a tomar banho de sol.
Mas Ella confiou demais na sorte e continuou a arranjar documentos falsos para que os perseguidos pudessem partir para o exílio, acabando por ser denunciada à Gestapo.
Chegou a Auschwitz no fim do Inverno de 1942. Aí começou, pela primeira vez, a praticar medicina, no barracão das prisioneiras alemãs e austríacas doentes. Trabalhou às ordens de vários médicos, o último dos quais foi Mengele. Recorda o Dr. Rohde, um SS, que, para suportar as escolhas de vítimas para as câmaras de gás, no pavilhão dos doentes ou no cais da estação de caminho-de-ferro, "se embebedava até quase ficar inconsciente".
Não havia camas suficientes e os doentes dormiam aos três e aos quatro nos beliches. Havia piolhos, epidemias de febre tifóide e grassava uma doença contagiosa causada pela desnutrição, que perfurava a pele até aos ossos. "A minha vida lá era como se me tivesse oferecido hoje como voluntária para combater uma epidemia no Bangladesh ou no Ruanda, um trabalho esgotante, para ajudar as pessoas, sem saber o que acontecia ao lado", diz Lingens.
Na pior época da epidemia de febre tifóide, Lingens tinha a seu cargo 750 doentes. "Foi justamente Mengele, que dividia o seu tempo entre as experiências brutais com gémeos e anões e o trabalho de organização sanitária, que travou a epidemia." Evacuou os 1500 doentes de um barracão e mandou-os para as câmaras de gás. Desinfectou a sala vazia, mandou mudar os lençóis e outros doentes, desinfectados e despiolhados, foram transferidos para o barracão. Depois desinfectaram o pavilhão vazio e assim sucessivamente. "Realmente travou a epidemia, mas não lhe passou pela ideia chegar ao mesmo resultado sem assassinar 1500 pessoas", comenta Lingens.
Nos pavilhões de judeus e ciganos, as pessoas não chegavam a morrer das epidemias. Eram assassinadas. As mulheres grávidas eram enviadas para as câmaras de gás, assim como os doentes e os sem forças para os trabalhos forçados. Foram muitas as mães que preferiram asfixiar os seus bebés, para os poupar à morte em mãos alheias, porque a maioria dos recém-nascidos eram afogados pelos guardas SS.
Auschwitz foi a experiência central da vida de Lingens, e os fantasmas das pessoas que conheceu na fábrica da morte acompanhá-la-ão até ao fim dos seus dias. Havia médicos pouco escrupulosos que exigiam que os doentes com malária lhes dessem a sua porção de pão, a troco de quinino. E houve mulheres que se transformaram em prostitutas no bordel de Auschwitz, porque assim tinham direito a uma melhor ração alimentar, a um duche diário e a uma habitação mais confortável.
Ainda hoje é assombrada pelo fantasma da fome, ou pelo da jovem que não pôde ajudar, porque recebera 25 chicotadas e fora obrigada a ficar de pé durante três dias e três noites, com água fria até à cintura. Era o castigo para os que se atreviam a fazer amor em Auschwitz e eram surpreendidos. Como também não consegue esquecer o grito colectivo de 100 pessoas encerradas nas câmaras de gás e, "após 15 minutos", o silêncio absoluto. "Outra vez os gritos, depois o silêncio, uma, duas, três vezes."
Numa noite, Ella Lingens e as suas companheiras contaram 60 viagens de um camião carregado de cadáveres, das câmaras de gás até aos crematórios. Depois começava a sair fumo pelas chaminés e o cheiro inconfundível dos corpos queimados espalhava-se por todo o campo de Auschwitz.
Enquanto centenas de milhares de pessoas se transformavam em cinzas, Mengele continuava as experiências como um possesso,no seu pavilhão de horrores, uma antecâmara da morte. Sessenta pares de gémeos foram abertos pelo seu bisturi e, de todos eles, só sobreviveram sete pares.
O "Anjo da Morte" era para Lingens "um cínico incrível", com uma inteligência superior à do resto dos médicos SS, que tinha a preocupação de fazer com que os irmãos morressem à mesma hora, pela mesma causa. Assim podia comparar os órgãos, que enviava depois, conservados, para o Instituto de Biologia Genética de Berlim, em pacotes com a inscrição "Urgente, Material de Guerra".
Mengele achava que as condições do campo eram más e introduziu, inclusive, algumas melhorias, mas "assassinava a sangue-frio, sem nenhuns problemas de consciência". Olhava com orgulho os "dossiers" com os resultados das suas investigações e só lamentava que, no futuro, pudessem cair"nas mãos dos bolchevistas".
Ella Lingens teve a sorte de não ser colocada no Pavilhão das Experiências, porque não teria resistido. Para experimentar métodos de reanimação em pessoas congeladas, Mengele baixava a temperatura do corpo das vítimas até aos limites da paragem cardíaca, e depois tentava aquecê-las com cobertores ou cobrindo-as com mulheres nuas.
Dava só água do mar a beber aos prisioneiros, até morrerem de sede, para comprovar a resistência do ser humano em caso de naufrágio. Os esqueletos das pessoas com anomalias eram enviados como troféus para a colecção da Reichsuniversitât, em Berlim. Ligava o peito das mulheres que tinham acabado de parir, proibindo-as de amamentar os filhos, para determinar quanto tempo os recém-nascidos podiam viver sem se alimentarem.
Um dia, Mengele chamou Ella Lingens o seu gabinete e disse-lhe que tinha uma informação decerto surpreendente para ela. "Sabia que no seu pavilhão há relações entre lésbicas?" perguntou. "Claro que eu sabia", lembra a prisioneira. "E não faz nada para o impedir?" insistiu. "Era uma situação impossível, fechavam mulheres jovens durante anos num ambiente onde não havia nada que pudessem amar, uma criança, um animal, um flor, era tudo tão asqueroso que qualquer ser humano se degradava", lembra Lingens.
Noutra ocasião, o carniceiro de luvas brancas e botas de cabedal perguntou-lhe as razões por que a tinham enviado para Auschwitz. Lingens respondeu que fora denunciada por ter ajudado a tirar judeus do país. "Como é que se pode ser tão imbecil ao ponto de pensar que isso é possível?" Ella atreveu-se a responder que havia casos em que tinham conseguido, com dinheiro. "Naturalmente que vendemos judeus", respondeu Mengele. "Seríamos estúpidos se o não fizéssemos."
"Não tinha razões para ter medo de Mengele", diz Lingens. Para ele havia duas categorias de pessoas, "os médicos e os outros". Mengele representava as duas caras de Mefistófeles. No meio dos corpos raquíticos e humilhados dos prisioneiros, era um homem bem parecido, elegante, impecável, de uma cortesia imperturbável para com as suas vítimas. Tão depressa salvava um judeu, porque era médico, como atirava um recém-nascido para o lume, porque chorava demais, com a mesma indiferença. Lingens não conseguia suportar Auschwitz, e pediu para ser transferida para o campo de concentração de Dachau, outro inferno; mas se algum dia a libertassem, ficaria mais perto de casa, para regressar. Mengele não queria que ela saísse de Auschwitz, mas perante os rogos da prisioneira, aprovou o pedido com indiferença. "Não quero entravar o seu caminho para a felicidade", disse-lhe, como se Dachau fosse um paraíso.
Em Auschwitz, Ella Lingens perdeu a dignidade, passou fome e frio. Regressou a Viena com o cabelo todo branco e foi um dos momentos mais duros da sua vida. "Soube que o meu marido, julgando-me morta, tinha casado com outra, o meu irmão tinha morrido, combatendo ao lado da Resistência, na Jugoslávia, a casa dos meus pais fora bombardeada. O meu filho não me reconheceu e os meus vestidos...", diz com um olhar fixo e um suspiro, "...estavam comidos pelas traças".
Eva Cruz O S. Joãozinho de marfim
(Adão Cruz)
É uma imagem com cerca de dez centímetros de altura, esculpida no marfim com toda a perfeição. Sentado num tronco de uma árvore, de pernas cruzadas, o S. João parece deliciar-se com a frescura do lugar. Provavelmente à beira de um riacho, numa tarde quente de Verão, a contemplar as águas cristalinas e a verdura em seu redor.
As suas vestes são leves e frescas. Traz na ponta de um cajado uma cabacinha daquelas que apertam o bojo em forma de gargalo. Lá dentro, talvez a água refrescante da fonte que lhe apaga a sede.
A cara tem o viço de menino e a cabecita é adornada por tufos de caracóis loiros esculpidos num anelado que sobressai em alto-relevo.
Tem mais de cem anos. É muito valioso. Só é pena ter um pé partido. Ouvi isto desde a minha meninice.
Realmente, a pontinha dos dedos de um pé está partida. Sempre pensei que ali estaria uma fortuna, e na minha mente de criança era uma espécie de tesouro a bem guardar.
Recordo que um dia alguém levara a escultura a uma casa de velharias para ser avaliada. Grande foi a desilusão pois o valor não correspondia a nada do que era esperado.
Aquela imagem pueril para ali ficou esquecida. Sempre que a vejo, tenho uma sensação de paz e tranquilidade, ao olhar a cara deliciada do S. João que hoje terá mais de duzentos anos.
Quem sabe!
Pensei levá-la para ser novamente avaliada. Mas o valor rondou o mesmo que outrora. Nem sequer cobria a inflação, a não ser que tivesse havido algum default ou spinn off.
Na cabecinha anelada do S. João não havia lugar para negócios ou derivagens. Tudo passava ao lado como as águas do rio.
Fiquei muito contente porque podia ter tido a malfadada ideia de passar o S. Joãozinho a patacos.
Ainda bem que não foi assim.
Se o tivesse vendido, nunca mais teria esta sensação de paz e tranquilidade, que me inspira o sorriso de ternura daquela imagem com pouco mais de dez centímetros.
A propósito da eleição de Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro: parabéns a Marcelo. Quis e conseguiu. Foi premiado. Segundo: parabéns aos portugueses: quiseram e tiveram o que quiseram. Terceiro, parabéns à democracia que permitiu a Marcelo ser eleito e aos portugueses elegerem quem quiseram. Estamos todos de parabéns. Assim é que é bonito!
Sou, desde que me conheço, adepto e praticante do princípio (herança materna) de que, em boa parte, temos o que merecemos e somos capazes de alcançar.
Como povo fomos tendo ao longo da História o que conseguimos. Temos uma História que nos diz que somos mais assim - como a primeira ilustração: obedientes e servis e só raramente como os da segunda ilustração, os assado que se revoltam. O resultado desta eleição é apenas mais um acto de mansidão. Venham a mim os mansos, poderia Marcelo dizer.
Hoje, mais uma vez, fomos mais assim e digo-o sem qualquer azedume, nem tristeza, do que assado.
Guterres, aquele que poderia ser o presidente em vez de Marcelo, também pensa assim como os portugueses: não lhe agrada muito pertencer ao rebanho dos servos, dos assim, mas ainda lhe agrada menos meter-se em assados de revolta e contestação. Prefere um trono de dar bons conselhos sem consequências, como o da ONU. É o melhor exemplar de português que refila mas amouxa.
É fácil, neste quadro de assim, contra assado(S), perceber a ausência de jovens da política nacional e a sua fuga para o emprego no estrangeiro. Nem são assim, dispostos a serem servos, nem querem ser obrigados aos assados de uma revolta. Os pais e os avós já se queimaram por isso e até as pensões lhes levaram.
Marcelo escolheu para palco da sua proclamação aos súbitos a Faculdade de Direito, o local que forma os guardiões da lei, da ordem, da conservação. A sede do império dos desafectos, que todas as faculdades de direito são. Escolheu o local da impostura em que assentamos a nossa vida colectiva: a de que a de que a lei promove a justiça, quando de facto promove a ordem e defende o poder.
Para ser coerente, Marcelo deveria ir a Fátima agradecer e tomar posse em Mafra. Os locais em que os portugueses celebram a fé e a crença no divino para a realização dos seus desejos e derrota dos seus temores. É essa política que Marcelo nos promete: ordem e fé, O mesmo que prometeu o seu padrinho e homónimo Caetano aos portugueses ao tomar posse: fé no futuro porque temos um passado abençoado. Funcionou até à revolta dos descamisados…
Assim e assado
António Lobo Antunes As mulheres têm fios desligados
(Adão Cruz)
Há uns tempos a Joana,
- Pai, acabei um namoro à homem.
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
- Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim.
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
- Já não gosto de ti
de
- Não quero mais
chegam com discursos vagos, circulares
- Preciso de tempo para pensar
- Não é que não te amo, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
ou declarações do género de
- Tu mereces melhor do que eu
- Estive a reflectir e acho que não te faço feliz
- Necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
e aos amigos
- Dá-me os parabéns que lá me consegui livrar da chata
- Custou-me mas foi
- Amandei-lhe daquelas lérias do costume e a gaja engoliu
- Chora um dia ou dois e passa-lhe
e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar o estore)
ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas,
pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarradas à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
- O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é saber que durante uma semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
- As mulheres têm fios desligados
e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez. Meu Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
- Já não gosto de ti
se informam
- Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-gagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, com o Che Guevara ou eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhe caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
- O problema não está em ti, está em mim
a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Shubert. De Ovídio. De Horácio, de Virgílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca.
Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa-se de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti, está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
- Mereces melhor que eu
levou como resposta
- Pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua
- O que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
- Manda-lhas. Pode ser que lhe façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
- E depois de ele se ir embora?
- Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me.
Teolinda Gersão História do quotidiano
(Alphonse Mucha)
Ele amou aquela mulher, porque ela tinha um riso fresco, uma contagiante alegria de viver, e sobretudo não era quotidiana. Mas depois de casar exerceu sobre ela um longo trabalho de domesticação, porque inconscientemente não podia aceitar que uma mulher casada não fosse igual a determinada imagem que se impunha. Forçou, lutou, e aos poucos, recalcitrante, ela foi cedendo. Quando a viu o dia inteiro ocupada na casa, banal, cinzenta, áspera e um pouco gorda, ele deixou-a entregue aos afazeres domésticos e foi procurar outra mulher que tinha um riso fresco, uma contagiante alegria de viver, e sobretudo não era quotidiana.
(in Os guarda-chuvas cintilantes, o jornal)
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...