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Jardim das Delícias


Terça-feira, 03.04.18

A marcha pelas nossas vidas em Gaza - Alexandra Lucas Coelho

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Alexandra Lucas Coelho  A marcha pelas nossas vidas em Gaza

 

SAPO24, 30 de Março de 2018

 

O mundo viu a cara de Emma Gonzalez. No mesmo exacto dia, estudantes revoltavam-se em Gaza. Saem de casa para a escola a cada dia, marcham pela sua vida todos os dias. Espero o dia em que a América, e o mundo, também se possam ver na cara deles.

1. A América em luto viu-se na cara de Emma Gonzalez. A América em choque desde a eleição de Trump viu-se na cara de Emma Gonzalez durante seis minutos e vinte segundos, o tempo que o atirador da Florida levou a matar 17 pessoas. Essa América respirou com ela, sofreu com dela, chorou com ela, lágrimas rolando em silêncio, perante meio milhão de pessoas ali em Washington, perante o mundo. Quando Emma Gonzalez saiu do palco, a América tinha um ícone para o futuro, um perfil do Monte Rushmore. A nova estrela da América, ou a estrela da nova América era mulher, bissexual, 18 anos, cabelo rapado, cara lavada, a pele escura dos latino-americanos, o apelido de quem descende de outra América, mais abaixo (no caso dela, Cuba). Go Emma, we love you, tinham gritado jovens na assistência, ao todo dois milhões de americanos nas ruas de várias cidades contra a violência das armas, pelas suas vidas. Emma Gonzalez era o épico de um tempo, este tempo, a coisa mais poderosa que acontecia na América desde a eleição de Donald Trump. Seis minutos e vinte segundos de cinema, feito na América, pela América, essa utopia de uma só palavra na voz de Walt Whitman (America // Centre of equal daughters, equal sons…)

 

Aconteceu sábado, em directo dos Estados Unidos da América.

 

2. Por assombrosa coincidência, nesse mesmo dia, nesse mesmo sábado, houve uma revolta de estudantes na Faixa de Gaza. Um sit-in disperso à bastonada pela polícia local. Não soube disso em tempo real, como em tempo real soubemos de Emma em Washington, e todos os seus colegas que iniciaram o movimento #neveragain, propulsionando a histórica March For Our Lives de 24 de Março. Soube por um email quatro dias depois, do Palestinian Center of Human Rights (PCHR), um centro baseado em Gaza que conheço há bastantes anos, e regularmente envia relatórios da situação na Faixa para os seus contactos em todo o mundo. Há pouquíssimas notícias de Gaza, há muitos poucos jornalistas em Gaza a reportar para fora, então os relatórios do PCHR são pelo menos um vislumbre regular.

Esse email contava:

“De acordo com informação obtida pelo PCHR, a administração da Universidade al-Azhar anunciou dia 21 Março de 2018 a decisão de impedir qualquer estudante masculino ou feminino de entrar nas salas de exame sem pagar as propinas. Centenas de estudantes recusaram a decisão por as famílias não terem meios de fazer o pagamento, dada a deterioração das condições económicas e sociais [na Faixa de Gaza]. Na manhã de sábado, 24 de Março 2018, centenas de estudantes protestaram dentro do campus da universidade contra a decisão, causando altercações entre os estudantes e os empregados. A Segurança da Universidade interveio para dispersar o sit-in. Os acontecimentos precipitaram-se e agentes do Serviço de Polícia Palestiniana intervieram, chamados pela Administração da Universidade. Os agentes dispersaram o sit-in, e dezenas de estudantes ficaram feridos, depois de serem espancados com bastões. A polícia deteve também vários estudantes e um fotojornalista, Mahmoud Zo'abor, que trabalha para a al-Hadaf News, após um homem, que se identificou como sendo do Ministério do Interior, confiscar a câmara e o telemóvel do jornalista [foram mais tarde libertados].” Cheguei entretanto a outras, breves, notícias que confirmam a tensão estudantil em Gaza nas últimas semanas.

E pensei nos rapazes e nas raparigas da universidade al-Azhar com quem estive em Maio passado, lá em Gaza. Valerá a pena algum contexto, para perceber melhor o que está a acontecer agora.

 

3. O pedacinho de orla que é Gaza (40 quilómetros de comprimento por seis a dez de largura) tem dois milhões de pessoas lá dentro, literalmente presas há décadas, como o mundo sabe. Literalmente presas quer dizer: impedidas de sair. Não há metáfora. E não há nada, mas nada, que se compare a isto em todo o planeta

Desses dois milhões de pessoas 66 por cento têm menos de 25 anos. Ou seja, dois terços dos habitantes daquela prisão única são jovens. Pensem em todos os jovens que viram pela TV nas ruas dos EUA, sábado passado. Em Gaza são mais. E o desemprego, que em Gaza está em 50 por cento, é mais alto ainda entre os jovens. Centenas de milhares de rapazes e raparigas que literalmente, sem metáfora, não têm saída. E, além de não terem forma de sair, fisicamente, nem terem trabalho quando acabam de estudar, não têm um único cinema, já quase não têm música ao vivo, não têm água potável nas torneiras, não têm electricidade 20 horas por dia, nem podem ser bissexuais, gays, trans, intersexo, sob risco, real, de serem mortos (no ano anterior, o Hamas executara um seu comandante, alegadamente condenado por roubo e “sexo homossexual”).

Em Maio, conversei com mais de uma dezenas destes estudantes junto à universidade da Cidade de Gaza onde agora os protestos aconteceram. Não dentro do campus, porque isso os podia pôr em risco, chamar a atenção dos empregados, mas nas imediações. Primeiro, com um grupo de rapazes, depois com um gupo de raparigas. Todos usavam as redes sociais: Facebook, Instagram, Snapchat, Twitter. Essa era a janela, o único oxigénio do mundo. Nas três ou quatro horas de electricidade, que são as que restam diariamente, carregavam os telemóveis, e muitas vezes usavam os ecrãs como lanterna para estudar à noite.

E, vendo agora Emma Gonzalez, lembrei-me sobretudo de Rozan, a Rozan de 18 anos que estava ao centro do grupo de universitárias com quem falei, depois dos rapazes. Emma e Rozan têm a mesma idade, um carisma natural, uma força que sabe-se lá de onde vem. Rozan, cuja cara o mundo não conhece, falou-me como uma líder nata. “Somos muçulmanas mas não apoiamos o Hamas”, disse, rodeada pelas colegas, todas de cabelo coberto, todas de telemóvel na mão. “O Hamas passou dez anos no poder aqui, e como estamos? Não há electricidade, não há salários, não há gasolina. Três guerras! Eu tenho 18 anos e vivi uma intifada e três guerras. E ainda uma guerra civil entre Fatah e Hamas. Isto não é vida, é morte. E temos a certeza de que nos vamos licenciar e não encontraremos trabalho.”
Como a esmagadora maioria das pessoas que encontrei em Gaza nessa estadia de 2017 (em reportagem para a “Visão História”), Rozan e os seus contemporâneos sentiam-se duplamente reféns. Primeiro, reféns de Israel, a potência que controla Gaza por terra, mar e ar, a bombardeia regularmente, a sujeita ao mais longo e desumano bloqueio do planeta. Depois, reféns do Hamas, porque os últimos dez anos de poder em Gaza, os dez anos de divisão interna palestiniana são o fruto dramático do cerco israelita. Conheci Gaza em 2002, e fui visitando a faixa ao longo dos anos. Em Maio de 2017, a atmosfera era não só literalmente pútrida, como toda a gente parecia à beira de enlouquecer, e disparara a desconfiança sobre quem serve o quê, quem espia para quem. A gaiola onde Israel fechou os palestinianos chegava ao ponto a que chega uma gaiola nestas circunstâncias. Só que à vista do mundo, e com dois milhões de pessoas lá dentro, em vez de ratinhos.

 

4. Este é o contexto. O mais espantoso, porém, é que estas centenas de milhares de jovens em Gaza não estão a matar ninguém, nem a fazerem-se explodir, apesar de conhecerem na carne a violência das armas, e das bombas, desde que nasceram. Estão a ir às aulas, estão a lutar pelos seus exames. Estão a marchar todos os dias pelas suas vidas, na verdade, de casa para as aulas, das aulas para casa, de vez em quando para a praia, onde já nem se pode tomar banho sem risco de adoecer, porque é um mar de fezes, porque os esgotos não são tratados, proque não há condições para os tratar, porque o contexto é este. Há décadas. À vista de todos.

Em Outubro, Hamas e Fatah assinaram um acordo de reconciliação, que mal saiu do papel até agora. Não houve eleições, Abbas ainda é aquele presidente da Palestina lá em Ramallah, com quem o mundo fala porque acha que é o único que há, mas em quem os palestinianos não se revêm. O Hamas deu sinais de ter percebido que alguma coisa tinha de mudar, porque a situação em Gaza era insustentável, e a popularidade interna dos islamistas estava em queda, mas o mundo continuou a ter mais em que pensar. Há dias, o primeiro-ministro de Ramallah foi a Gaza inaugurar uma coisa e rebentou um explosivo que atingiu dois carros da sua caravana. Fatah e Hamas puniram-se mutamente, mostrando como é utópica a reconciliação neste contexto.

A partir de hoje, sexta-feira, e até 15 de Maio, quando Israel celebra o aniversário da sua fundação, o Hamas tem cinco acampamentos montados ao longo da fronteira de Gaza com Israel e incentivou a população a manifestar-se, como forma de lembrar o direito de retorno, de assinalar os 70 anos desse 15 de Maio, que para os palestinianos é a Naqba, ou Catástrofe. Israel está a responder com um aparato militar ao longo da fronteira, incluindo atiradores de elite. No momento em que escrevo, sete palestinianos já morreram e há dezenas de feridos.

Isto é Gaza, 30 de março de 2018.

 

5. Em Fevereiro estive nos EUA, parti no dia em que o atirador da Florida matou os colegas de Emma. Esse dia fez um clique que nenhum outro massacre tinha feito. Dos dois milhões que terão saído à rua no dia 24, quase um terço nunca se manifestara, e havia muita gente que não era adolescente. Outro dado interessante: 70 por cento de mulheres. É bom acreditar que uma nova geração esteja em pé. É bom ver Emma Gonzalez, com tudo o que ela é, arrebatar o mundo. E sim, ser bissexual não é um detalhe sem importância, foi nessa luta que ela se fez também, activista da Gay-Straight Alliance na sua escola. Emma é a primeira a dizer que, para ela, o activismo pelos direitos gay e o activismo contra as armas estão ligados. É a vida dela, com tudo o que ela é, e sem ter percebido quem era não estaria agora ali, dando a cara ao mundo.

Vejo a cara de Emma e penso até que ponto os estudantes que conheci em Gaza a acompanharam, desde o massacre na Florida, eles que seguem tudo pelas redes sociais. Penso como terão olhado para o movimento que se estava a formar, eles que mais do que nunca viram o inimigo sentar-se na Casa Branca, com a eleição de Trump. Eles que estão assistir à construção da nova embaixada dos EUA em Jerusalém, contra todas as resoluções internacionais. E que viram Trump cortar fundos para a UNRWA, a agência das Nações Unidas responsável pelos seis milhões de refugiados palestinianos. A maioria da população em Gaza tem esse estatuto, refugiada, e depende da UNRWA. Se tem algum abrigo, alguma comida, alguma educação, algum cuidado de saúde, é devido à UNRWA. Faca de dois gumes, porque isso também permite que Israel, e o mundo, continuem a assobiar para o ar.
E não tenho forma de a contactar, mas gostava muito de saber o que Rozan, aquela estudante de Gaza, pensa de tudo isto. Ela não tem uma cabeleira loura descoberta como Ahed Tamimi, a brava adolescente da Cisjordânia que se tornou recentemente um símbolo da luta pró-palestiniana, condenada a oito meses de pisão por ter esbofeteado um soldado isrealita. Rozan não é a cara com que uma plateia não-muçulmana se identifica mais facilmente, nem usa as roupas casuais de Ahed. Tal como Gaza não é a Cisjordânia, nem os forasteiros podem entrar em Gaza como entram na Cisjordânia. É mesmo muito difícil uma rapariga de Gaza não cobrir o cabelo, ainda que não seja essa a sua escolha. E é em Gaza que Rozan, como todos os outros, marcha pela vida todos os dias. Espero o dia em que a América, e o mundo, também se possam ver na cara dela.

 

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por Augusta Clara às 08:00

Quarta-feira, 03.06.15

Cristãos desde sempre no Iraque agora em fuga ao “Estado Islâmico” - Alexandra Lucas Coelho (em Erbil)

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Alexandra Lucas Coelho (em Erbil)  Cristãos desde sempre no Iraque agora em fuga ao “Estado Islâmico”

 

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 Refugiados cristãos em Erbil  SAFIN HAMED/AFP

 

 

Público, 30 de Maio de 2015

 

Entre os cristãos que fugiram de Mossul, há quem não pense voltar mesmo que o “Estado Islâmico” saia. Porque os vizinhos, árabes sunitas, ajudaram a expansão jihadista. Segundo retrato de uma região desfeita por todos os erros.

 

   Na porta do contentor, um autocolante em inglês diz: “Salvem os cristãos do Iraque”. Lá dentro há uma família, e à volta outros contentores, outras famílias, uma pequena parte das dezenas de milhares de cristãos iraquianos que fugiram do “Estado Islâmico”, a parte que se acha a salvo e com sorte, porque um contentor é melhor do que uma tenda.

No pátio desta igreja, em Erbil, capital do Curdistão Iraquiano, contentores funcionam até como sala de música, de computadores, de brincar, o que alegra o tempo mas não reverte a história. Vizinhas por baixo de um calendário com a Virgem, adolescentes numa mesa de pinguepongue ou meninos com Legos: refugiados como milhões de iraquianos no seu próprio país, a maior parte dos quais em acampamentos onde a chuva entra, o sol queima.

É assim desde o Verão de 2014, quando o “Estado Islâmico” mudou o mapa oriental ao desfazer a fronteira entre a Síria e o Iraque. Os domínios do auto-proclamado Califado são hoje maiores do que, por exemplo, a Grã-Bretanha, e Erbil já esteve cercada, vai-não-vai para cair. Ainda há um mês a cidade tremeu quando um carro-bomba explodiu a algumas ruas daqui, junto ao Consulado Americano. Militantes do “Estado Islâmico” conseguiram atravessar o Curdistão, território que lhes é hostil, estacionar o carro em Ankawa, o bairro mais cosmopolita de Erbil, e fazê-lo explodir, matando três pessoas e ferindo 14. Atingiram assim, em simultâneo, um alvo americano e o bairro cristão, cheio de refugiados.

“As pessoas foram chegando desde 7 de Agosto de 2014, quando o ‘Estado Islâmico’ começou a atacar os cristãos em Qaraqosh”, conta Daniel Al Khoury, o jovem padre de 25 anos que recebe o PÚBLICO. Estamos apenas a 80 quilómetros de Mossul, a maior cidade do Iraque controlada pelo “Estado Islâmico”, e Qaraqosh fica a meio caminho. Os jihadistas dominaram Mossul a 10 de Junho, foram avançando na direcção de Erbil, até que a 7 de Agosto se deu a debandada de Qaraqosh, 60 mil cristãos, segundo o padre Daniel, mais outros 60 mil em diferentes regiões. “Os peshmerga [combatentes curdos] tinham prometido proteger aquelas povoações mas no último momento avisaram que já não seria possível. Então as igrejas começaram a tocar os sinos.” Era de noite, os cristãos juntaram-se para fugir em carros, autocarros, umas poucas dezenas ficaram para trás, por não terem acordado ou sido localizadas. “Ainda falámos com eles durante dois meses mas agora não sabemos o que lhes aconteceu, se estão vivos ou mortos.” O fluxo de refugiados dividiu-se pelas cidades do Curdistão, Duhok, a norte, Suleymaniah, a sul, Erbil a leste.

Só nesta igreja, Mar Elia, são 118 famílias, ao todo 546 pessoas. “No começo eram 1600. Chegaram sem nada, dormiram no jardim, a igreja começou a distribuí-los por outros espaços.” Ficou cerca de um terço. “A ONU trouxe tendas, mas era demasiado quente, e havia recém-nascidos.” Há fotografias desses dias, aulas a serem dadas dentro de tendas. “Depois outras organizações trouxeram tendas à prova de água, e há dois meses chegaram os contentores.”

 

 

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por Augusta Clara às 08:00

Quarta-feira, 27.05.15

Palmyra - Alexandra Lucas Coelho

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Alexandra Lucas Coelho  Palmyra

 

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 (Templo de Bel)

 

   No Verão de 2009 passei férias na Síria, um mês, de Norte a Sul. Em país nenhum encontrei tantos mundos de pé, sumérios e assírios, gregos e romanos, pagãos, cristãos, judeus, islâmicos. Passei uma noite em Palmira, dentro de uma tenda, e isso é só parte do que já não será possível.

"No Verão, com sol alto, Palmira é uma insolação, um chapão de luz. É preciso acordar às cinco, antes do amanhecer, para ir até ao cimo da cidadela e aí ver o sol aparecer, iluminando lentamente as ruínas como se também elas estivessem a aparecer. Vale mesmo a pena ficar uma noite, porque é antes e depois dela que se faz a melhor luz.
Petra é um esplendor esculpido na rocha, mas Palmira é o esplendor erguido do nada, em pleno deserto. Nenhuma cidade antiga será ao mesmo tempo tão remota e majestosa. Colunas e templos de um levíssimo dourado, que ao anoitecer há-de parecer rosa, e à noite, iluminado por holofotes, será fantasmático, atravessado pelo rugido de motocicletas. São guias de ocasião e vendedores ambulantes com os braços cheios de colares. De dia enrolam panos árabes à volta da cara, por causa do calor, e enfrentam a concorrência de guias a camelo, à cata de turistas.
Mas está longe de ser como nas pirâmides do Egipto. O viajante pode andar horas em Palmira sem ver ao perto ninguém, sobretudo antes das oito da manhã.
E depois, a partir das nove, abre o templo de Bel, o maior e mais intacto. E a seguir as torres funerárias, onde os nobres e as nobres de Palmira repousavam para sempre, com as suas sedas e os seus toucados. Esta é a cidade da lendária Zenóbia, a rainha que Aureliano levou a Roma como um troféu."

(Público, 2009)

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por Augusta Clara às 14:00

Segunda-feira, 19.01.15

Paris-Srebernica - Alexandra Lucas Coelho

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Alexandra Lucas Coelho  Paris-Srebernica

 

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 atlântico-sul, 18 de Janeiro de 2015

  1. Há um ruí­do extremo a que só responde a mudez. Seria como falar num funeral onde gente que nunca conviveu com o morto disputa o luto com gente que atira mortos para debaixo do tapete. O horror do que acaba de acontecer, do que acontece em contí­nuo e do que se anuncia confluem num silêncio. Foi o que se passou comigo depois do ataque ao "Charlie Hebdo".
  1. Quando o ataque aconteceu eu estava fechada em Belgrado a escrever. Tinha vindo de Sarajevo há dias e ia para Srebrenica dentro de dias, dois símbolos da guerra na Bósnia. Passavam vinte e oito anos desde que a minha carteira de jornalista fora emitida. O último livro que publiquei não teria saí­do na ditadura. Liberdade de expressão não é este mês de Janeiro, nem um emprego, é a vida.
  1. As capas do "Charlie Hebdo" nunca me fizeram rir, nada daquilo me interessa e há tanta coisa interessante para ler, como haverá gente que gosta de ler o "Charlie": tudo isso é irrelevante para o horror de 12 pessoas executadas numa redacção porque fazem um jornal satí­rico. Então, curvo a cabeça perante a sepultura de cada uma, minha camarada de vida. O horror destas mortes existe autónomo, estanque. Não é atenuado por nada e não exclui nada. Horror puro.
  1. Os assassinos da equipa do "CH" (e, depois, do ataque à  mercearia "kosher"), sim, têm passado, contexto, tal como a França, a Europa ou aqueles chefes-de-estado unidos na compaixão global, uma frente tão inclusiva que não excluiu assassinos de estado. Charlie realmente não merecia que Netanyahu fosse Charlie. Fora essa frente, e mercenários em geral, bom ver tanta gente junta pela liberdade. A liberdade de expressão sai mais forte de tudo isto, quero crer, a começar pelo "CH" pós-matança ter saí­do com um Maomé a dizer "Je suis Charlie".
  1. Escrevo esta crónica de Srebrenica onde em Julho de 1995 a Europa deixou que 8372 homens fossem separados das mulheres e crianças e sistematicamente mortos apenas por serem muçulmanos. Aliás, "8372..." diz a pedra do memorial, porque 8372 era o número de corpos identificados no momento em que a pedra foi lá posta. Entretanto, dezenas de outros corpos continuam a sair do puzzle da antropologia forense. Em Janeiro de 2015, em Srebrenica, vejo muitas sepulturas provisórias posteriormente acrescentadas, placas de plástico verde à espera dos marcos em mármore que compõem esta floresta única. Foi o maior massacre europeu desde o Holocausto, genocídio, decidiu finalmente o Tribunal de Haia. Aconteceu há dezanove anos e meio, no sudeste da Europa, perante europeus: os holandeses capacetes azuis da ONU, que a ONU entendeu não reforçar, quando era evidente que não seriam capazes de conter as tropas sérvias de Ratko Mladic, neste momento ainda réu em Haia por crimes contra a humanidade e genocí­dio.
  1. Perante europeus e entre europeus, porque "o mundo muçulmano" não é um lugar fora da Europa. Se mundo muçulmano é onde houver um muçulmano, a Bósnia tem uma maioria muçulmana há séculos. A Europa integra o mundo muçulmano, o mundo muçulmano integra a Europa. Os polí­ticos podiam começar por aí­, quando falam de "integração" nos "valores europeus". É que segundo esses tais valores, um muçulmano da Bósnia não é menos europeu do que a senhora Merkel.
  1. Não fui eu que falei da matança de Paris, foi ele, o jovem imã da mesquita central de Srebrenica. Também não tí­nhamos combinado nada. Eu descera a colina com um amigo, entre todas aquelas casas de tijolo em bruto que são a paisagem semi-reconstruí­da da cidade, uma beleza de encostas alpinas habitada por quem não tem dinheiro para acabamentos. Chegámos à mesquita, mesmo ao lado da igreja ortodoxa, num largo coberto de neve, pouco antes do pôr-do-sol. Mas quando pressionei a maçaneta, o portão abriu. E daí­ a nada apareceu um rapaz muito alto de gorro, como todos aqui no Inverno. Era o imã, vinha para a oração, convidou-nos a tirar as botas, entrar. Depois chegou um pequeno ancião, fisicamente o oposto do imã. Ali ficámos sentados, a assistir à oração na mesquita principal de Srebrenica: o jovem imã e o velho fiel, voltados para Meca, cercados pelo vazio.
  1. Mas à sexta-feira a mesquita enche, ressalva o imã, que se chama Ahmed Hrustanovic e tem 28 anos. Em 1995 estava a salvo com a mãe a dezenas de quilómetros daqui, era criança. Já os homens da famí­lia, foram todos executados pelas tropas de Ratko Mladic: pai, quatro tios, dois avós. Perfaz sete parentes Hrustanovic gravados na grande floresta funerária de Srebrenica. Não é um apelido raro.
  1. Entre os que fugiram, os que foram deportados e os que morreram, não sobraram muitos muçulmanos em Srebrenica, em 1995. Depois dos acordos de paz, a Bósnia foi dividida em duas entidades, Federação da Bósnia e Herzegovina e República Srpska, onde existe uma maioria sérrvia. É nessa metade que está Srebrenica, muito perto da fronteira com a Sérvia. Ainda assim, apesar do massacre, e da firme presença sérvia, muitos muçulmanos foram regressando ao seu pedaço de terra, e hoje Srebrenica tem uns 3500 muçulmanos e uns 3500 sérvios. A relação é cordial, diz o jovem imã, ele faz compras em lojas sérvias, só não consegue esquecer que são sérvios. Mas há um mês um amigo casou, ele muçulmano, ela sérvia, como acontecia tanto antes da guerra, e hoje acontece tão menos. Hoje é pior, claro, e depois de Paris talvez pior. É o jovem imã quem fala de Paris, quem chama loucos aos assassinos, quem teme o efeito disto na vida dos muçulmanos.
  1. Depois de quem perdeu a vida, ninguém perdeu tanto com Paris como os muçulmanos. A vida de cada um vai ficar um pouco mais difí­cil. Em compensação a vida da famí­lia Le Pen ficará melhor, e com ela a dos xenófabos em geral. Sobretudo a vida das milí­cias recrutadoras estilo Boko Haram-ISIS-Al Qaeda, a quem só interessa que a vida dos muçulmanos na Europa se torne cada vez mais difí­cil. Carne para canhão. Este é o horror que se anuncia, acrescentado ao horror contínuo.
  1. Antes do genocí­dio, a ONU garantira aos muçulmanos que nada lhes aconteceria, aprovara até uma resolução declarando Srebrenica Zona Segura. Foi fazer companhia na gaveta a todas aquelas resoluções que o governo de Israel ignora, e o que é que a Europa, por acaso ex-colonizadora (França, Inglaterra) de todo aquele território israelo-palestiniano & vizinhanças tem feito por isso nas últimas décadas? Enquanto a liberdade de expressão é um bem oficial em Israel (não contando com os obstáculos à liberdade de movimento e circulação de jornalistas), uns milhões de palestinianos nunca tiveram liberdade de circulação e movimento no seu tempo de vida, dos pais ou dos avós. Este é o horror antes e além da compaixão global, até porque ninguém aguenta emocionar-se durante tanto tempo.
  1. Apesar de tudo, o jovem imã de Srebrenica continua a deixar a porta aberta. No fim da conversa, já bem caí­ra a noite, aliás, voltou à  roupa de Inverno, ao gorro de lã, e despediu-se, deixando-nos ainda descalços, com a mesquita toda por nossa conta.

(Público, 18-1-2015)

 

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por Augusta Clara às 08:00

Sexta-feira, 11.04.14

Discurso de Alexandra Lucas Coelho na entrega do Prémio APE

 

Discurso de Alexandra Lucas Coelho

 

 

 

  

Quero agradecer em primeiro lugar à equipa da tinta-da-china, minha casa,Bárbara BulhosaInês Hugon, Vera Tavares, Madalena Alfaia, Rute Dias,Pedro Serpa.

Agradeço em seguida ao júri que atribuiu este prémio: Manuel Gusmão, Luís Mourão, Clara Rocha, Ana Marques Gastão e Isabel Cristina Rodrigues, a quem coube hoje ser porta-voz, com uma apresentação cuidada e surpreendente de “E a Noite Roda”. Não conheço pessoalmente a maioria dos jurados. Ter-me ei cruzado um par de vezes com Ana Marques Gastão e entrevistei há uns 13 anos Manuel Gusmão. Sendo uma honra a decisão deste júri, a presença nele de um poeta que tanto admiro, e trago comigo, é uma alegria. Isto, para usar a palavra que mais associo a Manuel Gusmão, num daqueles versos que se tornam língua geral, lugar comum a todos, contra todas as evidências em contrário.

Não chega dizer que foi uma surpresa a atribuição do prémio. Começou por ser uma grande surpresa a nomeação, que aconteceu pouco depois de outra: para o prémio do PEN. “E a Noite Roda” não tinha sido dos meus livros mais bem recebidos pela crítica, nem mais vendidos. Passara um ano e meio sobre a publicação, já nem se encontrava nas livrarias. Eu estava ocupada com a saída de um novo livro, “Vai Brasil”, e a organizar-me para retomar a escrita de um novo romance, situado no Rio de Janeiro. Se a nomeação para o PEN já me espantara, a do APE pareceu-me quase inverosímil. Para mais, o naipe de finalistas era não menos que excelente: um dos grandes prosadores da língua portuguesa, Mário de Carvalho; dois autores próximos da minha geração que sigo com respeito, Patrícia Portela e Afonso Cruz; e um poeta, dramaturgo e novelista que é dos meus mais queridos amigos, Jaime Rocha. Fico muito contente por ele estar aqui hoje. Fosse eu a decidir, o prémio seria dele, e da sua novela “A Rapariga Sem Carne”. Foi isso que senti ao saber da nomeação.  Semanas depois, estava eu sentada no carro da minha editora, Bárbara Bulhosa, quando me ligam da APE a anunciar a decisão do júri. Pânico, seguido de alerta: está a brincar comigo, certo?, perguntei ao cavalheiro do outro lado da linha, que se apresentara como José Correia Tavares, presidente do júri sem direito a voto. Ele assegurava que não e dava detalhes, que o júri se reunira três vezes, que a decisão fora por unanimidade, e por aí fora até que eu já não estava a ouvir porque só pensava que aquilo não podia ser a sério. E nos momentos em que acreditava que era, voltava o pânico: aquilo não me podia estar a acontecer. Como assim o prémio APE para este romance: um primeiro romance e este romance?  Antes que eu começasse a explicar ao interlocutor que estava enganado, a Bárbara decidiu intervir, dando-me ordens em surdina: que aceitasse, que agradecesse, muito obrigada. E subimos para um consultório, que era ao que íamos, acabando com a paz da recepcionista, porta-dentro, porta-fora, mal começaram os telefonemas.

Recentemente, a tinta-da-china fez uma edição de bolso de “E a Noite Roda”, de que gosto mais do que a primeira, como objecto. Gosto do tamanho, dos cantos redondos, da capa mole. É maneira, como dizem os brasileiros. Mas nem a folheei, custa-me olhar para o texto. Na tinta-da-china, a Inês Hugon e a Madalena Alfaia, que com uma paciência oriental asseguram as revisões, sabem como por mim ficava a cortar provas até à décima, porque mal entrego o livro já não o posso ver, tudo me parece mal, as bengalas, os tiques, o excesso.  Sendo a minha primeira experiência de romance, sinto essa distância de hoje em relação ao texto de “E a Noite Roda” mais do que em relação a qualquer outro livro meu, talvez porque nos outros a linguagem esteja mais estabilizada num território com regras.

O que me interessa no romance não é o género, mas a ausência de género. Não é poesia e pode ser poesia, não é reportagem e pode ser reportagem, não é viagem e pode ser viagem, não é teatro, cinema, música, arquitectura, agricultura, cosmogonia, correspondência, folhetim, banda desenhada, arquivo, e pode ser tudo isso. Um romance é a liberdade em extensão. Um território de experimentação com um fôlego considerável, que ninguém conseguiu ainda circunscrever além disto: prosa, criativa, de extensão longa, escrita para ser lida.

Uso a palavra romance, não uso a palavra ficção. Tenho dito e repetido — porque a um jornalista que escreva romances pergunta-se isso continuamente — que o que distingue o jornalismo e a literatura não é um ser real e a outra ficção, mas sim um ser um campo sujeito a regras estabelecidas e a outra, idealmente, inventar as suas próprias regras. Uso a palavra romance, não uso a palavra ficção. Tenho dito e repetido — porque a um jornalista que escreva romances pergunta-se isso continuamente — que o que distingue o jornalismo e a literatura não é um ser real e a outra ficção, mas sim um ser um campo sujeito a regras estabelecidas e a outra, idealmente, inventar as suas próprias regras. Por isso, interessa-me pouco o debate sobre o que neste romance ainda é jornalismo ou já é romance, ainda é real ou já é ficção, como se houvesse uma espécie de grau de pureza, que é sempre o princípio de um pensamento autoritário. Ninguém ainda se tornou dono do que é, ou não chega a ser, um romance, e é por isso que continua a ser interessante fazer romances, e que cada um faça o seu. Na verdade, neste campo, quanto à criação, não há outro lema em que me reconheça tanto: que cada um faça a sua coisa. Faça o que tem a fazer, contra tudo, contra todos: crime e castigo, doença e cura, transmigração da alma ou biografia derradeira. O que me levou a fazer este romance? O que o distinguia dos livros anteriores? A possibilidade de um território sem regras para o qual eu transportasse vários materiais biográficos: amorosos, políticos, sociais, profissionais. O texto agora entregue a si mesmo, inventando as suas regras, é que estabeleceria a transição para o romance. Um não-género fazendo uso de vários géneros, incluindo a reportagem. Jerusalém era uma coisa minha, Gaza era uma coisa minha, a experiência de cobrir o conflito israelo-palestiniano era uma coisa minha, eu queria transportá-los para o campo literário porque me interessa transportar para o campo literário tudo o que a experiência tenha tornado coisa minha. Dito de outra forma, aquilo que é a identidade em movimento.  Não é diferente do que fará um médico que escreva romances (ou um arquitecto, um historiador de arte, um diplomata, um advogado, um professor, um burocrata), sempre com menos explicações do que as que são cobradas a um jornalista. Nunca começarei a entender porque se estranha que alguém cujo trabalho é escrever decida escrever outras coisas. “E a Noite Roda” não é sequer o melhor romance que eu podia ter escrito entre 2010 e 2011, os meus últimos meses em Portugal e o meu primeiro ano no Brasil. Não foi, certamente, o que muita gente achava que eu devia ter feito. É apenas o que eu precisava de fazer naquele momento para sair do ponto em que estava. O importante não será fazer o melhor que sabemos, mas o que precisamos de fazer, mesmo não sabendo, para sair do nosso limite. Aquilo que nos desloca se estamos fixos, que nos fixa se estamos deslocados.

Recentemente, numa entrevista, perguntaram-me quem gostaria eu que escrevesse a minha biografia. É uma daquelas perguntas a que só podemos responder desabridamente. Respondi que esperava que as personagens tratassem do assunto e não sobrasse nada. Penso nisso como uma espécie de teia de Penélope em que o autor se vai construindo nos livros ao mesmo tempo que desaparece na vida.

Tudo o que faço é biografia, idealmente cada vez mais real, independentemente de as personagens tomarem as minhas circunstâncias, como acontece em “E a Noite Roda”, ou não tomarem de todo, como acontece no romance que estou a escrever. Ninguém pergunta a um poeta se o que está no poema é real ou ficção. Aquilo é o que é, é dentro da cabeça dele.

O que cada um vive é seu património inalienável, seu único real património, e é seu direito fazer disso o que quiser, na intersecção com os outros e o mundo, tendo como único limite, para mim, não devassar o património de um outro, de forma reconhecível publicamente.

De resto, o criador não deve conhecer limites e quanto mais escuro, mais difícil e mais indevassado melhor. Aquilo que não se pode escrever é o que há a escrever, é o que falta. Não estamos cá para nos repetirmos nem para nos pouparmos. Pouparmo-nos para quê? Não acredito na vida além da vida.

Sempre quis escrever, desde que me lembro. Os livros tinham todas as vidas. Passei a adolescência a ler romances. Lia os portugueses, os franceses, os ingleses, os russos, os alemães, mais tarde os americanos, os japoneseses, os levantinos. O mundo não acabava, eu lia e queria sair pelo mundo. O jornalismo era a possibilidade disso, uma bela possibilidade quando eu tinha 17 anos e as rádios piratas explodiam, ainda nem havia TSF, nem Público, nem telemóveis, nem computadores pessoais. A minha geração viveu essa promessa de aventura no trabalho, que hoje parece arqueológica.

Só fui ler poesia compulsivamente depois dos 20. E a poesia, como a rádio, mudou, moldou, a minha relação com a escrita. Questão de som, de ritmo, mas também de montagem, de elipse. Não que escrever poemas fosse a minha coisa, tentei, não era. Ler poemas, sim, seria parte do que eu tinha para escrever.

Sempre achei que seria uma questão de tempo começar a fazer livros, e acabei por publicar o primeiro aos 39 anos. Como seria uma questão de tempo o romance chegar. Não há abandono de uma coisa por outra, não deixei de ter na cabeça livros de viagem, reportagem ou crónica, entre os vários romances que quero fazer. É o jardim dos caminhos que se bifurcam, para citar um daqueles autores que sempre admirei à distância, porque Borges é de outra galáxia, de um mundo, digamos, não-carnal. Sou mais do lado Moby Dick, até ao trespassar da última carne, a do caçador. Moby Dick agora sem género, ou transgénero. Moby Dick-Orlando, homem e mulher, humano e animal, deus e demónio. Um Moby Dick antropofágico, depois de ter morado no Brasil. Não me interessa a fuga, interessa-me o confronto, o embate, o arpão no corpo que sempre fugirá. Chamemos-lhe Moby Dick — ou amor — ou real. A vida verdadeira que é estar aqui a desejar além. A pulsão da guerra, qualquer espécie de guerra, é a sobrevida: vida conquistada à morte.

Nenhuma arte é panfleto, se é panfleto não era arte. Ao mesmo tempo, toda a arte é política, no sentido em que não existe sem um outro, que pode ser apenas um. O determinante não é que sejam muitos mas que exista uma relação. Que algo actue entre um e outro.

Este livro é político, como todos os que fiz, como tudo o que faço, pelo simples facto de me pôr em relação com outros. Estar aqui hoje é político, falar em público é político. Onde há um colectivo há política.

O meu feitio seria mais não estar, mas encaro isto como parte de um trabalho que aceitei fazer desde que comecei a publicar, por acreditar que podia, devia, contribuir para os livros chegarem a mais alguém, respeitando eu tanto quem se recusa a fazer isso como quem o faz, por razões que são de cada um e de mais ninguém.

A minha opção é política, digamos. Uma forma de participação, de agir além da militância partidária. A militância não é a minha coisa, ainda bem que é a coisa de pessoas que admiro, entre os quais conto amigos. A minha coisa é escrever, falar dos livros, conseguir fazer disso uma acção.

Estou a voltar de três anos e meio a morar no Brasil. Um dia, a meio dessa estadia brasileira, pediram-me que gravasse um excerto de um conto de Clarice Lispector para o site do Instituto Moreira Salles. Era um conto em que a protagonista era portuguesa, daí o pedido, que a voz coincidisse com o sotaque. Como detestei aquela portuguesa do conto da Clarice. Tudo na boca dela era inho e ito. Era o Portugal dos Pequenitos com a nostalgia das grandezas. Aquele que diz “cá vamos andando com a cabeça entre as orelhas” mas sofre de ressentimento. O Portugal que durante 40 anos Salazar achou que era seu, pobre mas honesto-limpo-obediante, como agora o governo no poder quer Portugal, porque acha que Portugal é seu.

Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes de se tornar progressivamente criminosa.

Entre as razões porque quis morar no Brasil houve isso: querer experimentar a herança do colonialismo português depois de ter passado tantos anos a cobrir as heranças do colonialismo dos outros, otomanos, ingleses, franceses, espanhóis ou russos.

E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a nada serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e do Alentejo ter sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.

Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.

E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.

Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo, Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a morte, que somos, que somos.

Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho porque só a perda é certa.

O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.

Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”.  Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.  Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa. Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil, do que qualquer discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.  Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11º andar, que era o que dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual presidente da República.  E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o governo no poder estava a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dividas à segurança social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.  Não devo nada ao governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.

Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso. Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos, Mas enquanto isso estamos vivos, não somos sobreviventes.

Este romance também é sobre Gaza. Quando me falam no terrorismo palestiniano confundindo tudo, Al Qaeda e Resistência pela nossa casa, pela terra dos nossos antepassados, pelo direito a estarmos vivos, eu pergunto o que faria se tivesse filhos e vivesse em 40 km por seis a dez de largura, e antes de mim os meus antecedentes, e depois mim os meus filhos, sem fim à vista. Partilhei com os meus amigos em Gaza bombardeamentos, faltas de água, de luz, de provisões, os pesadelos das meninas à noite. Depois de eu partir a vida deles continuou. E continua enquanto aqui estamos. Mais um dia roubado à morte.

 

 

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