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Jardim das Delícias


Sábado, 29.07.17

Em defesa da Venezuela - Boaventura Sousa Santos

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Boaventura Sousa Santos  Em defesa da Venezuela

 

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Público, 29 de Julho de 2017

 

Estou chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela.

 

   A Venezuela vive um dos momentos mais críticos da sua história. Acompanho crítica e solidariamente a revolução bolivariana desde o início. As conquistas sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis. Para o provar basta consultar o relatório da ONU de 2016 sobre a evolução do índice de desenvolvimento humano. Diz o relatório: “O índice de desenvolvimento humano (IDH) da Venezuela em 2015 foi de 0.767 — o que colocou o país na categoria de elevado desenvolvimento humano —, posicionando-o em 71.º de entre 188 países e territórios. Tal classificação é partilhada com a Turquia.” De 1990 a 2015, o IDH da Venezuela aumentou de 0.634 para 0.767, um aumento de 20.9%. Entre 1990 e 2015, a esperança de vida ao nascer subiu 4,6 anos, o período médio de escolaridade aumentou 4,8 anos e os anos de escolaridade média geral aumentaram 3,8 anos. O rendimento nacional bruto (RNB) per capita aumentou cerca de 5,4% entre 1990 e 2015. De notar que estes progressos foram obtidos em democracia, apenas momentaneamente interrompida pela tentativa de golpe de Estado em 2002 protagonizada pela oposição com o apoio ativo dos EUA.

A morte prematura de Hugo Chávez em 2013 e a queda do preço do petróleo em 2014 causou um abalo profundo nos processos de transformação social então em curso. A liderança carismática de Chávez não tinha sucessor, a vitória de Nicolás Maduro nas eleições que se seguiram foi por escassa margem, o novo Presidente não estava preparado para tão complexas tarefas de governo e a oposição (internamente muito dividida) sentiu que o seu momento tinha chegado, no que foi, mais uma vez, apoiada pelos EUA, sobretudo quando em 2015 e de novo em 2017 o Presidente Obama considerou a Venezuela como uma "ameaça à segurança nacional dos EUA", uma declaração que muita gente considerou exagerada, se não mesmo ridícula, mas que, como explico adiante, tinha toda a lógica (do ponto de vista dos EUA, claro). A situação foi-se deteriorando até que, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional. O Tribunal Supremo suspendeu quatro deputados por alegada fraude eleitoral, a Assembleia Nacional desobedeceu, e a partir daí a confrontação institucional agravou-se e foi progressivamente alastrando para a rua, alimentada também pela grave crise económica e de abastecimentos que entretanto explodiu. Mais de cem mortos, uma situação caótica. Entretanto, o Presidente Maduro tomou a iniciativa de convocar uma Assembleia Constituinte (AC) para o dia 30 de Julho e os EUA ameaçam com mais sanções se as eleições ocorrerem. É sabido que esta iniciativa visa ultrapassar a obstrução da Assembleia Nacional dominada pela oposição.

Em 26 de maio passado assinei um manifesto elaborado por intelectuais e políticos venezuelanos de várias tendências políticas, apelando aos partidos e grupos sociais em confronto para parar a violência nas ruas e iniciar um debate que permitisse uma saída não violenta, democrática e sem ingerência dos EUA. Decidi então não voltar a pronunciar-me sobre a crise venezuelana. Por que o faço hoje? Porque estou chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela, um enviesamento que recorre a todos os meios para demonizar um governo legitimamente eleito, atiçar o incêndio social e político e legitimar uma intervenção estrangeira de consequências incalculáveis. A imprensa espanhola vai ao ponto de embarcar na pós-verdade, difundindo notícias falsas a respeito da posição do Governo português. Pronuncio-me animado pelo bom senso e equilíbrio que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, tem revelado sobre este tema. A história recente diz-nos que as sanções económicas afetam mais os cidadãos inocentes que os governos. Basta recordar as mais de 500.000 crianças que, segundo o relatório da ONU de 1995, morreram no Iraque em resultado das sanções impostas depois da guerra do Golfo Pérsico. Lembremos também que vive na Venezuela meio milhão de portugueses ou lusodescendentes. A história recente também nos diz que nenhuma democracia sai fortalecida de uma intervenção estrangeira.

Os desacertos de um governo democrático resolvem-se por via democrática, e ela será tanto mais consistente quanto menos interferência externa sofrer. O governo da revolução bolivariana é democraticamente legítimo e ao longo de muitas eleições nos últimos 20 anos nunca deu sinais de não respeitar os resultados destas. Perdeu várias e pode perder a próxima, e só será de criticar se não respeitar os resultados. Mas não se pode negar que o Presidente Maduro tem legitimidade constitucional para convocar a Assembleia Constituinte. Claro que os venezuelanos (incluindo muitos chavistas críticos) podem legitimamente questionar a sua oportunidade, sobretudo tendo em mente que dispõem da Constituição de 1999, promovida pelo Presidente Chávez, e têm meios democráticos para manifestar esse questionamento no próximo domingo. Mas nada disso justifica o clima insurrecional que a oposição radicalizou nas últimas semanas e que tem por objetivo, não corrigir os erros da revolução bolivariana, mas sim pôr-lhe fim e impor as receitas neoliberais (como está a acontecer no Brasil e na Argentina), com tudo o que isso significará para as maiorias pobres da Venezuela. O que deve preocupar os democratas, embora tal não preocupe os media globais que já tomaram partido pela oposição, é o modo como estão a ser selecionados os candidatos. Se, como se suspeita, os aparelhos burocráticos do partido do governo sequestrarem o impulso participativo das classes populares, o objetivo da AC de ampliar democraticamente a força política da base social de apoio à revolução terá sido frustrado.

Para compreendermos por que provavelmente não haverá saída não violenta para a crise da Venezuela temos de saber o que está em causa no plano geoestratégico global. O que está em causa são as maiores reservas de petróleo do mundo existentes na Venezuela. Para os EUA, é crucial para o seu domínio global manter o controlo das reservas de petróleo do mundo. Qualquer país, por mais democrático, que tenha este recurso estratégico e não o torne acessível às multinacionais petrolíferas, na maioria, norte-americanas, põe-se na mira de uma intervenção imperial. A ameaça à segurança nacional, de que fala o Presidente dos EUA, não está sequer apenas no acesso ao petróleo, está sobretudo no facto de o comércio mundial do petróleo ser denominado em dólares, o verdadeiro núcleo do poder dos EUA, já que nenhum outro país tem o privilégio de imprimir as notas que bem entender sem isso afetar significativamente o seu valor monetário. Foi por esta razão que o Iraque foi invadido e o Médio Oriente e a Líbia arrasados (neste último caso, com a cumplicidade ativa da França de Sarkozy). Pela mesma razão, houve ingerência, hoje documentada, na crise brasileira, pois a exploração do petróleo do pré-sal estava nas mãos dos brasileiros. Pela mesma razão, o Irão voltou a estar em perigo. Pela mesma razão, a revolução bolivariana tem de cair sem ter tido a oportunidade de corrigir democraticamente os graves erros que os seus dirigentes cometeram nos últimos anos. Sem ingerência externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática. Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os pobres contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os que mais beneficiaram com ela. E, concomitantemente com isso, provocar uma ruptura nas Forças Armadas e um consequente golpe militar que deponha Maduro. A política externa da Europa (se de tal se pode falar) podia ser uma força moderadora se, entretanto, não tivesse perdido a alma.

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por Augusta Clara às 17:27

Sexta-feira, 24.07.15

A Alemanha como problema - Boaventura Sousa Santos

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Boaventura Sousa Santos  A Alemanha como problema

 

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Público, 23 de Julho de 2015

 

O maior problema da Europa não é Grécia. É a Alemanha. Há pouco mais de dois anos (5 de Maio de 2013) publiquei um texto neste jornal intitulado O Diktat Alemão no qual descrevia as justificações dadas pela Alemanha no início da Primeira Guerra Mundial para as atrocidades que cometeu contra um pequeno país, a Bélgica, que se recusara a colaborar com os seus desígnios bélicos.

 

   O modo destemperadamente cruel como a Alemanha se está a vingar de um acto de desobediência de um outro pequeno país, a Grécia, obriga-nos a rever a história recente da Europa e, a partir dela, a pensar o nosso futuro comum. Não se trata de ressuscitar fantasmas há muito enterrados e muito menos de supostos sentimentos anti-germanistas que só poderiam accionar, por oposição, sentimentos filogermanistas. Isso aconteceu há setenta anos e as discussões havidas de pouco valeram aos povos europeus (e não europeus) massacrados por uma guerra cruenta. Trata-se apenas de rever as soluções que foram dadas ao problema alemão depois da Segunda Guerra Mundial, de analisar os seus limites e imaginar outras possíveis soluções.

O problema alemão sempre foi o de ser grande de mais para a Europa e pequeno de mais para o mundo. De um lado, o expansionismo dos impérios alemão e austro-húngaro, do outro, uma das mais pequenas potências coloniais europeias, com um curto período colonialista (1884-1919), e sem sequer deixar a língua alemã entre os colonizados, ao contrário do que aconteceu com as outras potências europeias. Para não falar da guerra franco-prussiana (1870-1871), dominada pelo desejo de Bismarck de unificar a Alemanha sob a égide da Prússia e pelo temor da França de que daí adviesse um excessivo domínio alemão sobre a Europa, a arrogância bélica da Alemanha nas duas guerras mundiais do século XX causou uma devastação sem precedentes. Só na Segunda Grande Guerra morreram 60 milhões de pessoas, 3% da então população mundial. Em 1945, a solução encontrada para conter o problema alemão foi a divisão da Alemanha, uma parte sob controle soviético e outra, sob controle ocidental. Esta solução foi eficaz enquanto durou a guerra fria. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e a subsequente reunificação da Alemanha houve que encontrar outra solução.

Deve notar-se que a reunificação da Alemanha não foi desenhada como um novo Estado (como muitos democratas da Alemanha Oriental queriam) mas sim como uma ampliação da Alemanha Ocidental. Isso levou a pensar que a solução estava afinal encontrada desde que em 1957 se criara a Comunidade Económica Europeia (mais tarde União Europeia), com a participação da Alemanha Ocidental e com o objectivo, entre outros, de conter o extremo nacionalismo alemão. A verdade é que esta solução funcionava “automaticamente” enquanto a Alemanha estivesse dividida. Depois da reunificação, ela dependeria da autocontenção da Alemanha. Esta autocontenção foi durante os últimos vinte e cinco anos o terceiro pilar da construção europeia, sendo os outros dois o consenso nas decisões e a progressiva convergência entre os países europeus. O modo como foi sendo “aprofundada” a UE foi revelando que os dois primeiros pilares estavam a ceder e a criação do euro deu um golpe final no pilar da convergência. A importância transcendente da crise grega é a de revelar que o terceiro pilar também ruiu. Devemos aos gregos o trágico mérito de mostrar aos povos europeus que a Alemanha não é capaz de se autoconter. A nova oportunidade dada à Alemanha em 1957 acaba de ser desperdiçada. O problema alemão está de volta e não augura nada de bom. E se a Alemanha não é capaz de se autoconter, os países europeus têm rapidamente de a conter. O antigo chanceler alemão, Helmut Schmitt, viu este perigo com ímpar lucidez ao afirmar há muitos anos que, para seu próprio bem e o bem da Europa, a Alemanha não devia sequer tentar ser o primeiro entre iguais. Mal podia ele imaginar que a Alemanha se converteria em poucos anos no primeiro entre desiguais. E não nos sossega pensar que a Alemanha de hoje é uma democracia, se essa democracia for über alles. Não nos esqueçamos de que a terapia da imposição violenta exercida contra a Grécia foi praticada antes contra uma região derrotada da Alemanha, a Alemanha Oriental, durante o processo de reunificação e, de facto, praticada pela mesma personagem, Wolfgang Schäuble, então ministro do Chanceler Helmut Kohl. A diferença crucial foi que, nesse caso, a fúria financeira de Schäuble teve de ser politicamente contida por se tratar do mesmo povo alemão. Os gregos e, daqui em diante, todos os europeus pagarão caro por não serem alemães. Isto, a menos que a Alemanha seja democraticamente contida pelos países europeus. Não vejo muitas vantagens em reagir defensivamente com o regresso ao soberanismo. Em verdade, o soberanismo está já instalado na Europa, só que sob duas formas: o soberanismo ofensivo dos fortes (encabeçado pela Alemanha) e o soberanismo defensivo dos fracos (tentado pelos países do sul, a que se junta, ainda meio atordoada, a própria França). No contexto europeu, o soberanismo ou o nacionalismo entre desiguais é um convite à guerra. Daí que, por mais ténue que seja a possibilidade de êxito, há que tentar reconstruir a União Europeia sobre bases democráticas, uma Europa dos povos onde deixem de dominar burocratas cinzentos e não eleitos ao serviço dos clientes mais fortes ante a distração fácil de representantes democraticamente eleitos mas politicamente desarmados.

Estas soluções não resolverão tudo pois o problema alemão tem outras dimensões, nomeadamente culturais e identitárias, que se revelam com particular virulência em relação aos países europeus do sul. Em carta dirigida ao seu amigo Franz Overbeck, em 14 de Setembro de 1884, Friedrich Nietzsche zurzia “o medíocre espírito burguês alemão” pelo seu preconceito contra os países do sul da Europa: “frente a tudo o que vem dos países meridionais assume uma atitude entre a suspeita e a irritação e só vê frivolidade… É a mesma resistência que experimenta em relação à minha filosofia… O que detesta em mim é o céu claro”. E concluía: “um italiano disse-me há pouco: ’em comparação com o que nós chamamos céu, o céu alemão é uma caricatura'”. Traduzido para os tempos de hoje, é crucial que os europeus do sul convençam os alemães de que o céu claro do sul não está apenas nas praias e no turismo. Está também na aspiração do respeito pela diversidade como condição da paz, da dignidade e da convivência democrática.

Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

 

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por Augusta Clara às 08:00

Sexta-feira, 07.02.14

Politicamente incorrecto - Boaventura de Sousa Santos

 

 

Boaventura de Sousa Santos  Politicamente incorrecto

 

 

Publicado na Visão em 6 de Fevereiro de 2014

 

   Estou de partida para Ásia, envolvido num projeto científico em que coordeno dezenas de jovens cientistas sociais de diferentes países, todos apostados em defender o património científico que o actual governo quer desbaratar. Parto com um nó na garganta, ao pensar que neste ano em que celebramos os quarenta anos do 25 de Abril talvez estejamos a regressar ao 24 de Abril. Não ao tempo, mas à imaginação política sufocada a que o 25 de Abril devolveu a respiração. O brutalismo político que desabou sobre nós actua, ora com punhos de aço (quando corta salários e pensões e esmaga com impostos os mais pequenos), ora com luvas de veludo (quando destrói o Serviço Nacional de Saúde, sem que ninguém dê conta: sabia o leitor que fica mais barato ao beneficiário da ADSE ir aos privados do que ao seu centro de saúde, para que amanhã ninguém defenda este último e os preços privados possam então subir sem restrições?). É por isso que hoje decidi escrever uma crónica politicamente incorrecta, pois só ela me pode permitir expressar o que me vai na alma.

Em democracia há sempre alternativas, diz a teoria. Se na nossa não parece haver alternativa, é porque algo está errado com ela. Admitamos que está errado que os portugueses não se decidam a vir para a rua defender pacificamente os direitos que os constitucionalistas da vergonha dizem ser precários (refiro-me, por exemplo, às pensões). Mas se a realidade é esta, poderão os partidos da oposição ser um sinal de esperança? O problema é que aqui também está tudo errado. Está errado o PS, por não ter um líder à altura, e o BE, por estar minado por sectarismos cruzados que continuam a invocar princípios e identidades como se estivéssemos a brincar ao 25 de Abril quando, de facto, é o 24 de Abril quem guarda o recreio. Um líder que não tem ego por onde se lhe pegue proclama em letras garrafais nas paredes do Largo do Rato: "Eu quero o Novo Rumo". Não é o PS ou os portugueses que querem, é o "Eu", uma dramatização populista que, colada à personagem, parece um ventriloquismo ridiculamente amador. Que esperar deste “quero” cujo eu só tem a força do papel pintado? O BE, por sua vez, está minado pelo medo de deixar de existir e por isso não quer deixar existir qualquer vontade política convergente pelo temor de ser comido por ela. O PCP é o menos errado: não toma iniciativas para além da sua história, mas não deixará escapar uma alternativa democrática real quando ela surgir.

A alternativa seria simples se o PS e o BE mudassem. Eis o road map. O BE e o Manifesto 3D associam-se para uma plataforma comum nas eleições europeias. Fica claro que há só um partido em jogo: BE. A cabeça de lista é a figura política mais notável da nova geração: Marisa Matias. O segundo nome é Manuel Carvalho da Silva, um dos políticos mais dignos e a quem mais devemos nestes últimos quarenta anos. Uma lista forte, munida de uma alternativa que devolva a dignidade aos portugueses, pode atrair parte do eleitorado do PS. Perante um resultado medíocre nestas eleições, o PS agita-se internamente e elege um novo secretário-geral, António Costa. Costa abandona, por agora, o refúgio-armadilha a que o PS o quer condenar (a Presidência da República) e lança-se numa campanha forte e decidida que arrasa o PSD-CDS nas legislativas. Se não tiver maioria absoluta, estará disponível para uma aliança com o BE, que finalmente terá dado uma prova de maturidade política, ao agregar em vez de desagregar nas eleições europeias. Começa assim um novo ciclo político. As condições iniciais serão difíceis. As agências de rating, a Comissão Europeia, e o FMI farão chantagem (o papão do risco político) mas uma liderança forte saberá construir alianças, convencida de que, ante os sinais cada vez mais perturbadores de desagregação (agora na França e logo depois na Itália), a Europa, ou se reinventa com coesão, ou desaparece como entidade política. Para as eleições presidenciais abundam nomes, tanto à direita como à esquerda, e qualquer deles brilhará depois da desertificação cavaquista. À luz da nossa história recente, tudo isto é sonho. Por isso, tantos portugueses vivem num pesadelo. 

 

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por Augusta Clara às 08:00

Terça-feira, 14.01.14

Alternativas em busca de autor - Boaventura de Sousa Santos

 

Boaventura de Sousa Santos   Alternativas em busca de autor

 

 

 

   Publicado no jornal Público em 14 de Dezembro de 2013

   Comecemos pela ideia tão difundida que não há alternativa à politica de austeridade. Significa isto que não há uma conceção alternativa de austeridade? Convido-vos a recuar 38 anos e a consultar um dos documentos mais notáveis do ciclo politico que se iniciou em 25 de Abril 1974. Refiro-me ao documento que ficou conhecido como Documento Melo Antunes (Fevereiro de 1975), elaborado por um grupo de reflexão chefiado por Melo Antunes e que integrou, alem de outros membros do III Governo provisório, o ministro da economia Rui Vilar, o ministro das finanças Silva Lopes e a ministra dos assuntos sociais Maria de Lourdes Pintasilgo. A sua leitura hoje causa arrepios quando se contrasta a seriedade, o sentido de estado, a competência e o patriotismo daquele grupo da classe política num momento difícil do país com a mediocridade, a leviandade e a falência moral dos que hoje, num momento igualmente difícil, ainda que por razões bem diferentes, nos desgovernam.

Este documento dedica uma secção à austeridade. Passo a citar: “A recuperação e relançamento da economia deve passar necessariamente por opções muito nítidas quanto aos 'padrões de consumo'. A regra geral a seguir, nesta matéria, terá forçosamente de ser a da 'austeridade'. Austeridade significará, antes de mais, uma muito maior sobriedade em consumos de luxo ou supérfluos. As camadas da população mais atingidas por medidas que venham a impor uma muito maior rigidez no acesso aos bens não essenciais ou pouco importantes serão as que até ao presente gozavam de privilégios ou benefícios inacessíveis à maioria da população. Significará, ainda, uma maior contenção na distribuição dos lucros das empresas e um esforço muito mais claro da iniciativa privada para a mobilização dos recursos financeiros disponíveis ou a obter para o investimento produtivo e a criação de empregos. Mas as necessidades de recuperação da economia portuguesa impõem, certamente, um alargamento das restrições a certos tipos de bens de consumo largamente generalizados. Isto exigirá uma grande compreensão e uma vontade muito clara de aderir ao projeto coletivo de reconstrução nacional. Com o termo austeridade quer-se significar também, e essencialmente, a predominância do desenvolvimento dos consumos coletivos face aos consumos individuais. Uma política de consumos que privilegie os equipamentos sociais (transportes coletivos, escolas, hospitais, habitação social, esquemas de segurança social, etc.) compensará em grande medida as classes trabalhadoras das carências sentidas no plano individual".

Naquela época era imperioso o relançamento da economia e era necessário fazer sacrifícios. Logicamente a austeridade devia ser pedida a quem a podia sofrer com menos sacrifício, e esses eram em primeiro lugar as classes sociais mais abastadas. Claro que a austeridade tocava a todos e para que se realizassem poupanças imperiosas, os consumos individuais deveriam dar lugar aos consumos coletivos. Estavam aqui em embrião as políticas sociais que se viriam a concretizar nas décadas seguintes e com elas o padrão de sociabilidade democrática que nos trouxe até aqui. As condições políticas de então não permitiram que o documento tivesse qualquer eficácia no curto prazo. Veio, porém, a tê-la mais tarde e acabou por conformar os fundamentos do pacto constitucional que então selou a convivência pacífica entre portugueses nos últimos quarenta anos. Tal como o documento Melo Antunes visou travar o radicalismo de esquerda, precisamos hoje de um documento que trave o radicalismo de direita.

Parto do Documento Melo Antunes e da conceção alternativa da austeridade que propõe. Estamos no euro, qualquer saída só é previsível em cenário de catástrofe e, no entanto, nada nos será oferecido no curto prazo pela UE que permita o relançamento da economia com justiça social. Na constância das políticas atuais é tão dramático continuar no euro como sair do euro. As alternativas têm de ser encontradas a nível nacional. Se bem executadas, serão estas que amanhã poderão forçar a EU a fazer o que nunca fará de motu próprio. Portugal tem de dar sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer preço. Por exemplo, se como pretende o tratado orçamental, a dívida tiver de ser reduzida até 60% do PIB nos próximos vinte anos, isso significa que, se não houver corte ou redução da dívida, o nosso sistema nacional de saúde e da educação pública terão de ser  totalmente desmantelados, algo que os portugueses consideram inaceitável e devem proclamá-lo alto e bom som.

Segundo os princípios do Documento Melo Antunes, adaptados ao tempo atual, a austeridade significa apertar o cinto a quem menos dói, ao capital financeiro e aos titulares de riqueza, sobretudo àqueles cujo rendimento e poupança serve, não para investir produtivamente, mas para aplicar em riqueza financeira. Assim:

1-É lançada uma sobretaxa temporária sobre a riqueza financeira dos super-ricos e sobre os lucros do sector bancário destinada a reduzir o esforço do serviço da dívida, libertando fundos para investimento público e privado. Sendo única, esta sobretaxa, justificada como emergência causada pela dívida, não alterará de forma dramática o comportamento dos investidores nem causará a fuga de capitais desde que o governo torne claro ser uma medida irrepetível.

2- É adotado o sistema de tributação fortemente progressiva. Nos EUA nos anos 1940 e 1950 a taxa marginal de tributação do rendimento rondou os 90% para os rendimentos mais altos. A redução progressiva dessa taxa nas décadas seguintes teve apenas o efeito de concentrar a riqueza do país e em nada contribuiu para o crescimento económico, antes pelo contrário. Não precisamos de chegar a tanto. Basta que volte a ser claro que viver em democracia obriga a partilha tanto dos benefícios como dos sacrifícios.  Em Portugal esta medida pode revelar-se menos eficaz devido à fuga ao fisco por parte dos titulares de rendimentos mais altos, uma das grandes causas da injustiça fiscal do nosso país.

3- Caixa Geral de Depósitos não é privatizada e deve transformar-se no que há muito devia ser, não um banco comercial como qualquer outro, mas um banco de investimento para pequenas e médias empresas.  Convergente com este objetivo, tem-se vindo a falar da criação de um Banco de Fomento com fundos do QREN.

4- Como são as classes mais baixas quem mais depende dos serviços públicos, são suspensas todas as políticas de transferência do sector público para o sector privado na educação e na saúde. E é revertida a legislação laboral que acabou com a contratação coletiva. O sistema norte-americano que se está a implantar entre nós não tem outro objetivo senão enfraquecer os sindicatos, um objetivo que consta dos documentos da ALEC (American Legislative Exchange Council), uma iniciativa do grande capital norteamericano para liquidar todos os obstáculos à acumulação capitalista, sejam eles os sindicatos ou a proteção ambiental. Nesses documentos, a medida central para a privatização da educação é o cheque-ensino.

5-É recusada  a introdução do sistema do plafonamento no sistema de pensões, o que para além de muito arriscado financeiramente, não é necessário se o sistema de contribuições for alterado e se todo o sistema de segurança social  deixar de estar sob pressão de altas taxas de desemprego.

6- A banca nacional, que tão beneficiada tem sido tanto em tempos de bonança como em tempos de crise, deve ser obrigada a financiar a baixo custo a dívida pública,  permitindo assim que a poupança interna seja posta mais diretamente ao serviço do relançamento da economia e do país. Esta medida deve  ser proposta, consoante a conjuntura, em alternativa ou em conjunção, com a solicitação do corte ou redução da dívida.

Estas medidas criam uma tensão com a nossa permanência no euro e devem ser assumidas como tal, ou seja, como condições para a nossa permanência no euro sem suicidar o país. Portugal só pode afirmar com consistência as suas condições para continuar no euro se tornar claro quais as medidas que tomará para garantir a continuidade do país com dignidade, o bem supremo, se tais condições não existirem.

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por Augusta Clara às 08:00

Segunda-feira, 13.01.14

As doces vinhas da ira - Boaventura de Sousa Santos

 

Boaventura de Sousa Santos  As doces vinhas da ira

 

 

 

   Publicado em Carta Maior, 8 de Janeiro de 2014

As sondagens que têm vindo a público recentemente revelam uma das facetas mais insidiosas da tragédia que se abateu sobre a sociedade portuguesa: o aceitar-se a tragédia como uma fatalidade e o que ela comporta, como a nova normalidade que, aliás, com o tempo deixará de ser nova para ser apenas normalidade. É normal que a esmagadora maioria dos portugueses esteja a empobrecer, mesmo que simultaneamente um punhado de super-ricos nunca tenha enriquecido tanto. É normal que emigre toda uma geração altamente qualificada com o esforço de todos nós, mesmo que com isso se esfume a possibilidade de deixarmos de ser uma economia subdesenvolvida ao sabor das trocas desiguais com as mais desenvolvidas.

É normal que os pensionistas pobres e remediados tenham de ser extraordinariamente solidários para com todos os portugueses,  ainda que o mesmo não possa ser exigido aos mais altos rendimentos, boa parte deles protegidos em offshores, e muito menos aos bancos que, pelo contrário, exigem a nossa solidariedade para continuarem a ter lucros fabulosos. É normal que os casais mais jovens não possam dar-se ao luxo de ter um filho, ou mais de um filho, e que nem lhes passe pela cabeça ter um aumento de salário (no caso improvável de os dois estarem empregados). É normal que tudo isto aconteça normalmente, que o pessimismo seja igual ao otimismo, que tanto a satisfação como a insatisfação sejam médias, que não haja  eleições antecipadas, que, quando formos a votos, ganhe o PS apenas com maioria relativa e que, nesse caso, seja tão provável quanto improvável que o PS faça uma coligação com o partido que tem presidido à administração da tragédia.

O limite das sondagens é que não se podem sondar a si mesmas, ou seja, nada nos podem dizer sobre o que está a montante ou a jusante delas. Saber isso é crucial e, apesar de insondável, é quase óbvio. Senão vejamos. A montante das sondagens está a destruição da alternativa ao atual estado de coisas. Trata-se de uma ideologia que foi meticulosamente construída ao longo dos últimos trinta anos pelo pensamento neoliberal que avassalou as universidades, sobretudo os departamentos de economia, e o comentário político dos grandes meios de comunicação social. Não apenas cá mas em toda a Europa e América do Norte. 

Como qualquer ideologia, é um conjunto de ideias em que são levados a acreditar os sectores da população mais prejudicados e punidos por elas. Por exemplo, a crítica do Estado social passa a ser convincente, mesmo para aqueles sectores da população que mais dependem dele, os trabalhadores e as classes médias. A ideia de que os portugueses têm vivido acima das suas posses passa a ser verosímil, mesmo para os portugueses em risco iminente de pobreza. Passa despercebido que este argumento preside a toda a gestão do atual governo e muito para além do que se diz. Dois exemplos. Tivemos um bom sistema de educação pública e isso prova-se com os resultados dos nossos jovens no ranking dos estudos da OCDE sobre excelência escolar.

Pois bem, tais resultados mostram que temos um nível de educação acima das nossas posses e, por isso, objetivamente, a política do atual Ministério da Educação visa baixar o nosso ranking, e é isso que muito provavelmente vai acontecer. Por sua vez, o Sistema Nacional de Saúde permitiu-nos atingir níveis de saúde coletiva, de esperança de vida e de prevenção de doenças evitáveis internacionalmente invejáveis. Isto significa que temos níveis de saúde acima das nossas posses.

Objetivamente, a atual política do Ministério da Saúde visa baixar esses níveis, e é isso que muito provavelmente vai acontecer. A névoa da ideologia não permite ao cidadão comum fazer estas ligações e, se as fizer, não permite que as conceba como um crime cometido contra ele e ela e seus filhos.

A jusante das sondagens está a alternativa da destruição. A normalidade, por mais anormal ou dolorosa, é o que é, uma fatalidade. Quem a recusa é irracional e auto-destroi-se. Pode  revoltar-se, mas corre o risco de ir para  prisão, o que implica um custo para o Estado enquanto as prisões não forem privatizadas. Pode pedir ajuda médica, mas tende a ficar dependente de anti-depressivos e a sua irracionalidade obriga o Estado a responder racionalmente, deixando de comparticipar o custo dos remédios. Pode suicidar-se, mas com isso perde a vida, um dano irreparável que, quando muito, trará uma poupança mínima ao Estado.

O círculo infernal da destruição da alternativa e da alternativa da destruição tem uma saída? Tem, mas essa não se pergunta aos indivíduos em sondagens porque não reside em respostas individuais.

 

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por Augusta Clara às 11:00

Terça-feira, 17.12.13

A reflexão, as instituições e a rua - Boaventura de Sousa Santos



Boaventura de Sousa Santos  A reflexão, as instituições e a rua

 

   Publicado na VISÃO, em 12 de Dezembro de 2013

   Durante a última semana fui várias vezes interpelado por jornalistas sobre as razões pelas quais a reflexão que várias instituições, «personalidades» e iniciativas têm vindo a fazer sobre a situação do País e as alterna­tivas «realistas» ao abismo suicidário em que estamos não suscita a indignação dos cidadãos e não motiva as classes populares a vir para a rua gritar Basta! Insistem em saber por que é que as manifestações das forças de segurança, que muitos julgaram significar uma radicalização da contestação social, não tiveram seguimento. Ora, os recentes protestos sociais noutros países aconselham algum cuidado na resposta a tais perguntas, pois esses protestos por vezes surgiram em contextos que os torna­vam à partida pouco previsíveis, seja devido à repressão política, caso da Tunísia, seja devido à relativa bonança social do período antecedente, caso do Brasil.

Em todo o caso, atrevo-me a dar algu­mas pistas. Antes de tudo, deixemos de lado o mito dos brandos costumes. Não são causa de nada; são, quando muito, a consequência de muita coisa. Por exem­plo: da pouca tradição democrática; de uma promiscuidade endémica entre uma elite económica fechada (feita de poucas famílias) e o poder político autoritário, hoje selada com o poder dos media; da falta de uma revolução burguesa que instalasse em toda a sociedade o valor da liberdade para que, sobre ele, as classes trabalhadoras pudessem construir as suas lutas pelo valor da igualdade; e ainda do conservadorismo da Igreja Católica, que trocou a luta dos pobres pela luta da assistência aos pobres, convertendo-se na instituição mais subsídio-dependente do País, cúmplice com o pior para poder sobreviver melhor.

PARA QUE DA REFLEXÃO SE PASSE à ação coletiva é necessário que haja forças políticas e organizações da sociedade civil capa­zes de amplificar o que na reflexão há de indignação e de alternativa, e de a enqua­drar em ações políticas que pressionem as instituições. Se estas não derem respostas adequadas, devem ser capazes de recorrer ao espaço público da rua, mas só o podem fazer se souberem mobilizar as maiorias que não são ativas politicamente.

Entre nós, porque os cidadãos indepen­dentes e os mecanismos de democracia participativa foram proscritos do sistema político, as únicas forças políticas são os partidos. Ora os partidos da oposição não são sequer capazes de pressionar forte­mente as instituições, nomeadamente a Presidência da República. Estão unidos à sua desunião num pacto de suicídio. Muito menos são capazes de enquadrar o salto das instituições para a rua. O PCP parece nunca ter recuperado do medo de ser ilegalizado no 25 de Novembro de 1975, como queriam as forças reacionárias que Melo Antunes e companheiros souberam neutralizar. O BE já terá perdido para a emi­gração as suas bases mais esclarecidas. O PS é atualmente dominado pelos «bons socialistas» de Manuel Alegre e, por isso, a sigla quer dizer partido da situação, quer esteja no poder ou na oposição.

Nas organizações da sociedade civil, domi­nam os sindicatos. Estes têm dificuldade em enquadrar muitos dos indignados, sejam eles precários, desempregados, bolseiros, pensionistas. A CGTP sofre da obsessão de ser bem-comportada, o que a obriga a fazer tudo para não parecer o que talvez não seja, comunista. A UGT nasceu para travar e não para acelerar o sindicalis­mo. Hoje, ela e a CGTP procuram, mais que os partidos de esquerda, caminhos de con­vergência, mas estes são necessariamente traçados por quem vai mais devagar.

E AS ASSOCIAÇÕES DE ESTUDANTES? O meu colega, sociólogo, José Manuel Mendes, fez um estudo sobre os protestos entre 1992 e 2002 e verificou que 56% dos protestos eram protagonizados por estudantes so­bretudo universitários. Por que estão agora ausentes dos protestos, atascados em praxes retrógradas e bebedeiras de quinta a sábado, deixando para os reitores a radicalidade dos protestos? Porque, entretanto, a praga-mor da democracia portuguesa, as juventudes partidárias (as jotas), tomaram conta do movimento estudantil e puseram-no ao serviço das estratégias partidárias. Nada disto impede que a rua expluda ama­nhã. Mas ninguém de boa-fé pode dizer que o previu com razões que eram convincen­tes ao tempo em que as formulou.


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por Augusta Clara às 10:00

Sábado, 30.11.13

Décima carta às esquerdas: Democracia ou Capitalismo? - Boaventura de Sousa Santos

 

 

Boaventura de Sousa Santos  Décima carta às esquerdas: Democracia ou Capitalismo?

 

 

 

Depois de um século de lutas que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro grave desperdiçar essa experiência.

 

   Publicado em Carta Maior em 26 de Novembro de 2013 

   No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado  Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo  o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referencia ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.

O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.

 

 

 

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por Augusta Clara às 08:00

Segunda-feira, 23.09.13

Os deveres dos cidadãos - Boaventura de Sousa Santos

 

Boaventura de Sousa Santos  Os deveres dos cidadãos

 

 

 

Os cidadãos têm o dever de vir para a rua e dar voz à sua aspiração de uma democracia diferente para uma vida decente. E o dever de ficar na rua até que os políticos os venham ouvir

 

 

 Publicado na Visão em 19 de Setembro de 2013

   A defesa dos direitos de cidadania nunca foi tão urgente como hoje, num contexto em que os direitos mais básicos estão a ser violados de forma brutal e hipócrita. O «bem-estar» coletivo «concedido» aos portugueses pelos aventureiros no Governo não é mais que a soma do mal-estar que infligem a 99% da população. Em face disso, talvez cause estranheza que eu me dedique a salientar os deveres dos cidadãos. Somos parte de uma cultura que privilegia direitos em detrimento de deveres, o que parece insensato, pois é evidente a simetria entre direitos e deveres: qualquer direito é uma miragem, se lhe não corresponder o dever de alguém assegurar que o direito seja exercido.

Uma das razões para tendermos a falar mais de direitos do que de deveres reside em que nas democracias se assume que o dever de garantir a vigência dos direitos pertence ao Estado e que cabe aos cida­dãos apenas fruir e defender os seus direi­tos. E o que ocorre quando o Estado deixa de cumprir esse dever, como acontece agora? Cabe aos cidadãos o dever coletivo de defender os direitos por todos os meios pacíficos ao seu alcance.

Longe de ser um dever abstrato, é um dever concreto e situacional. O seu exercício acarreta riscos porque, quan­do o Estado se demite do seu dever, as instituições são vítimas de uma patologia insidiosa: estão vigentes mas dedicam-se a realizar a missão contrária àquela para que foram criadas. É assim que o Estado social se converte em Estado antissocial e a segurança social em insegurança social. Por esta razão, o dever dos cidadãos tem muitas vezes de ser exercido fora das ins­tituições e, quando exercido dentro delas, assume um caráter de contracorrente que exige coragem e determinação. Passo a exemplificar situações e deveres específi­cos de grupos de cidadãos.

 

OS CIDADÃOS JUÍZES e magistrados do MP têm o dever de fazer cumprir os direitos até ao máximo da sua jurisdição. Num Esta­do democrático, o tipo de destruição dos direitos atualmente em curso só foi possível no passado mediante a instauração da ditadura, como, por exemplo, no Chile há 40 anos. Só cumprindo este dever não terá um dia o poder judicial de pedir desculpa aos portugueses por ter faltado ao seu dever, como aconteceu recentemente com os magistrados do Chile e da Argentina.

Os cidadãos militantes do PS têm o dever de se revoltarem contra uma liderança incapaz de projetar uma visão do país e da Europa para além do inferno neoliberal, pusilânime ao ponto de parecer só querer o poder se lho derem e de não o conceber com nenhum rasgo que o distinga do po­der que está no poder. Urge um congresso extraordinário depois das eleições autár­quicas em que os socialistas revoltados possam também dizer ao cidadão António Costa que em política há crimes que se cometem por omissão. Os cidadãos ativistas de sindicatos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil têm o dever de se unir em protestos intensos e perturbadores para aventureiros no poder. Unir-se como se a democracia, hoje agonizante, morresse amanhã e, caso não se tivessem unido, se lamentassem de só terem tido a vontade de se unir depois de deixarem de ter poder para o fazer.

 

OS CIDADÃOS INTELECTUAIS públicos têm O dever de defender a dignidade de todos os portugueses, mesmo contra os interesses poderosos que os querem seduzir, e o dever de mostrar que a dívida é impagável e que a austeridade e o neoliberalismo são as mãos que tiram o dinheiro dos bolsos dos pobres e das classes médias e o enfiam nos bolsos dos ricos e super-ricos. Os cidadãos autárquicos têm deveres específicos a cumprir nas próximas elei­ções. Os da minha cidade, Coimbra, têm o dever de punir exemplarmente o PS pela incapacidade de renovar a sua liderança e por insistir num candidato medíocre que durante dez anos entregou a cidade à vora­gem do imobiliário e à poluição de resíduos tóxicos (coincineração). Finalmente, os cidadãos no seu conjunto têm o dever de vir para a rua e dar voz à sua aspiração de uma democracia diferente para uma vida decente. E o dever de ficar na rua até que os políticos os venham ouvir. Quando deixarmos de ir aos comícios deles e eles vierem aos nossos, talvez eles comecem a pensar seriamente em representar-nos.

 

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por Augusta Clara às 10:00

Quarta-feira, 31.07.13

O previsível pode acontecer - Boaventura de Sousa Santos

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Boaventura de Sousa Santos  O previsível pode acontecer

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   Publicado no Nº. 1064 da revista Visão de 25 a 31 de Julho de 2013

   A última cambalhota do Presidente da República (PR) mostra que o País atravessa um momento de irracionalidade tal que torna tudo imprevisível. Os decisores políticos não são irracionais, mas as condições em que se re­signam a operar obrigam-nos a agir como se fossem. Para serem coerentes, as decisões políticas têm de ter um só ponto de referên­cia. Em democracia, esse ponto é a vontade dos cidadãos, e os conflitos decorrem das diferentes interpretações dessa vontade. Atualmente, em vez de um há dois pontos de referência: a vontade dos cidadãos e a vontade dos mercados financeiros. Nas condições presentes, as duas são inconciliá­veis. O PR disse numa semana que era fácil conciliá-las e, na seguinte, que só a vontade dos mercados conta. Um decisor deste tipo acabará por «ser decidido» por fatores que o ultrapassam e que não pode prever. Dada a irracionalidade instalada, tais fatores, vistos de fora, são afinal os mais previsíveis. Vou-me referir a alguns deles.

1. Em condições de tutela internacional, quem decide não é quem diz decidir e quem tem poder para decidir não revela motu próprio os limites do seu poder. Por isso, as alternativas ou a capacidade de manobra concretas só se revelam aos que se dispuserem a questionar a tutela. Tal questionamento implica, neste caso, ter a vontade dos cidadãos como único ponto de referência. Se tal questionamento ocorrer, será possível prever uma agenda concreta pautada pelo facto de o que há meses era evidente apenas para os dissidentes ser hoje evidente para todos os governantes europeus.

A saber: as políticas de austeridade estão a conduzir ao desastre a Europa e não apenas os países do sul; nos EUA, donde veio a ortodoxia económica e financeira que nos domina, o Estado não tem qualquer proble­ma em intervir na economia sempre que o mercado descarrila; a dívida, no seu atual montante, é impagável; é técnica e politica­mente complicado mas possível recomprar parte da dívida abaixo do valor nominal com total proteção da dívida que não pode ser tocada; o mesmo se diga de uma moratória ao pagamento do serviço da dívida enquan­to durar uma negociação com os credores; a mutualização europeia da dívida já está em curso e deve ser aprofundada; várias condições do memorando da troika têm de ser alteradas em função das mudanças macroe-conómicas; em diferentes momentos foi isto que fizeram outros países sufocados pela dívida, nomeadamente a Alemanha; é de todo legal que o Estado acione os poderes que a crise lhe conferiu (depois de lhe tirar muitos outros); assim, o Estado, ao recapi-talizar alguns bancos, tornou-se o acionista maioritário e pode acionar os poderes que tal posição lhe confere, sem extrapolar do direito privado; o Estado pode introduzir por essa via alguma política industrial com crédito direcionado para as PMEs e certos setores da indústria.

2. A agenda que acabei de descrever só pode ser levada à prática por um go­verno dotado de uma legitimidade democrática reforçada, o que só é possível mediante eleições antecipadas. A desastrada iniciativa do PR teve apenas um mérito: obrigar o PS a mostrar a sua alternativa. Ela é hoje mais clara. As medidas propostas pelo PS são muito positivas mas contêm uma contra­dição: pressupõem uma reestruturação da dívida que envolva o seu montante. Um acordo de incidência parlamentar com outros partidos de esquerda pode reforçar a legitimidade para avançar por aí.

3. O capital financeiro pressiona os Estados mas não o faz de modo uni­forme. O poder executivo tende a ser mais vulnerável, logo seguido do Parlamento. Já os tribunais, e, em especial, o Tribunal Cons­titucional, são mais imunes a tais pressões. Os despedimentos na função pública e os cortes nas pensões são inconstitucionais e é de prever que o TC não se demita da sua função de último garante da coesão social e da democracia consagradas na Constitui­ção.

4. O mais imprevisível pode, de repente, tornar-se o mais previsível. Refiro--me à revolta dos cidadãos nas ruas e nas praças, inconformados com a indignidade a que as instituições e os governos os sujei­tam. Não há nenhuma sociedade que não conheça a palavra Basta!

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por Augusta Clara às 08:00

Sexta-feira, 12.07.13

Desculpe, Presidente Evo Morales - Boaventura de Sousa Santos

 

Boaventura de Sousa Santos pede desculpa a Evo Morales 

 

 

Coimbra, 10 de Julho de 2013

 

Desculpe, Presidente Evo Morales

 

   Esperei uma semana que o governo do meu país pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscovo, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida. Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que é capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um acto individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibrámos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrarem El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilómetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.

O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um acto de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um presidente índio é sempre mais índio do que presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De facto, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere europeu, quaisquer que fossem as razões.

O Senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o facto de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que vêem na Bolívia um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.

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