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Jardim das Delícias


Quinta-feira, 11.05.17

Peregrina da saudade - Eva Cruz

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Eva Cruz  Peregrina da saudade

 

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(Tara Turner, "The same but different")

 

 

   A estrada é de maias amarelas. Solitário, o asfalto cinzento guia os olhos por detrás das lágrimas. Os montes caem em socalcos desdobrando a verdura sob o brilho do sol, coado por núvens brancas a delir-se. As maias são o tempo passado  que há-de voltar. O tempo, tal como o rio, não é de parar.

Os plátanos soltam as plumas e no rio de sombras e brumas  cai o sol a brilhar. Para tràs ficaram as maias amarelas e parte da vida com elas. O Maio há-de voltar de novo,  a florir, quer deseje cá estar, quer deseje  partir.

O rio, negro e fundo, corre manso e frágil sob as águas trémulas, cobertas de algodão branco, como manto de neve no calor da tarde.  Nem o  algodão branco, nem os pássaros vestidos de céu devolvem ao rio da vida  o brilho que a vida perdeu.

Peregrina da saudade, percorro os mesmos caminhos e atravesso as mesmas pontes, segurando-te a mão. Lá em baixo, o rio  reflecte o mesmo céu, mas as  aves nada me dizem, não sabem de ti.

Oiço apenas o eco dentro de mim, o eco da serenidade e da partilha , para o bem e para o mal, naquele cantinho enfeitado com o meu chá e o teu jornal.

Escrevo-te da varandinha do quarto para te dizer que  os plátanos estão enormes. São dois, entrelaçados, abraçando o céu. Como nós, se a noite não fosse vazia e a mão estendida não fosse apenas a coberta branca e macia. 

No banco, à beira do rio, o cantar das rãs rompe a saudade. Tenho tanta inveja do rio, sempre vivo, sem idade!

Peço às estrelas que escrevam no céu, ao lado  de Corconte, a lenda do Palácio cor-de-rosa, que no silêncio daquela tarde, reflectido nas águas do rio, retoma lentamente e  para sempre a cor da pedra.

 

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por Augusta Clara às 17:43

Sexta-feira, 06.01.17

Dia de Reis - Eva Cruz

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Eva Cruz  Dia de Reis

 

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(Monica Mora e Robin Ryan) 

 

Nasci a 6 de Janeiro.
Minha mãe dizia-me:
— Es rainha. Mas o mais importante é seres rainha nas virtudes.
Não fazia a mínima ideia do que seriam virtudes, e ainda hoje não sou capaz de medir o alcance das suas palavras.
O Dia de Reis era um dia especial.
Começava logo pela véspera, a primeira consoada do ano. Já noite dentro, lá vinha a toada dos Reis, as Janeiras, tocadas e cantadas por músicos da banda que nas festas se exibiam no coreto.
Muito distante no tempo, recordo apenas o som vivo do clarinete que cortava o silêncio sagrado da noite.
Um quarteto de homens vestidos de preto surgia na faixa de luz quando a porta se abria, ofuscados pelo reflexo metálico dos instrumentos.
O Dia de Reis era Dia Santo e as férias do Natal duravam até lá.
Sempre se festejaram os meus anos com amiguinhos da escola, cacau ou banacau, pão com manteiga e doce sortido.
Na mesa havia camélias brancas, as flores preferidas da minha mãe.
Brincadeira até à noitinha, a saltar à corda, jogar à cabra-cega, à patela, à roda ou a correr pelos campos.
As escondidas, lá íamos mirar o poço velho, de onde se tirava água com um sarilho. Era um dos maiores perigos do lugar.
O poço não tinha vedação e nós espreitávamos à volta. Lá em baixo, as nossas cabecitas reflectiam-se nas águas paradas, e no ventre da fantasia e do mistério, via sobre a minha cabeça uma coroa de rainha. Um poço de virtudes, soubesse eu o que eram virtudes!
Fui também rainha dos campos, com coroas de pampilos amarelos tecidas pela inocência da infância. Rainha dos montes com grinaldas de perfume das giestas e eucaliptos. Rainha do rio, com coroas de juncos ou bailando nas cheias que cobriam os lameiros, arrastando tudo em séquito majestoso.
Quando colhi as últimas camélias para a minha mãe, no Dia de Reis, tinha ela cem anos. Com a frescura e a brancura de Janeiro, poisei-lhe um ramo, ao de leve, no regaço.
— São as suas flores predilectas.
— São lindas.
— Faz hoje anos que teve uma menina, estavam a tocar as três para a missa. Lembra-se?
O seu rosto vestiu-se de uma expressão serena, perdida no tempo.
— Talvez.
— Teve uma rainha, não foi?
Revelou alguma surpresa, no ingénuo sorriso da candura da idade.
— Estou agora a sabê-lo!
Todos os Dias de Reis me apetece colher camélias brancas, mas as que mais gostaria de colher ficaram para sempre no seu regaço.
 

(in Cenas do Paraíso, ediçõesengenho)

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por Augusta Clara às 18:00

Terça-feira, 22.11.16

Ouve-me, meu amor! - Eva Cruz

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Eva Cruz  Ouve-me, meu amor!

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(Kaori Nagayoshi)

 

   A enfermaria era mista. Quando se trata de vida ou morte, não há fronteira entre sexos.

A angústia e o medo ensombravam os olhos dos familiares acom­panhantes. A doença anula o raciocínio.

Na cama do lado, a Sónia de vinte e seis anos. A cabeceira, o seu nome e a data em que nasceu. Muito branca, olhos azuis, umas sar­das a pintar as maçãs do rosto, rentes ao nariz uns cabelitos loiros a fugirem da ligadura que lhe envolve a cabeça. Os olhos muito aber­tos fixam-se nos olhos rasos de lágrimas da cama ao lado. A Sónia perdeu a fala, não diz nada para além da expressão do olhar vazio. Assim esteve três dias.

A Sónia é um caso muito especial. Uma hemorragia cerebral.

Teve várias visitas. Entre elas um rapaz, o José Carlos, cara morena e bigode preto. Tinha vinte e oito anos.

Tratava-a como quem trata uma criança. Muito mimo e muito humor. Chegava e partia a sorrir.

Contou que se sentia muito feliz. A Sónia ressuscitou. Sou o homem mais feliz do mundo. Nem que a minha mulher fique paralítica e ape­nas olhe para mim, já me sinto o homem mais feliz do mundo.

Abriram-lhe o crânio, tiraram-lhe um osso que ficou enxertado na barriga a aguardar nova cirurgia. Foi recolocado um mês depois. A mesma barriga que alimentou o Henrique, o seu filho de dezas­sete meses.

Passavam os dias embalando o seu menino na troca de olhares azuis e negros.

Uma bela lição de amor.

Na cama em frente, outro olhar sem expressão. Uma senhora de meia-idade perdera a fala. A tempo inteiro, numa dedicação angus­tiada, o marido afagava-a com a dor dos seus olhos.

Dias depois, a senhora levantou-se, andou a pé. Um jogo ajudava a mão entorpecida a encontrar os gestos naturais.

A alegria voltou ao rosto do homem.

Uma manhã, de repente, teve uma convulsão. Fecharam-se as cor­tinas, tubos e mais tubos, técnicos, enfermeiros, médicos de branco, azul e amarelo, uma onda de cor e agilidade pela enfermaria dentro. A doente é levada. Sobe ao piso de cima e volta pouco depois, reani­mada. A cortina meio aberta, o ritmo arrítmico das máquinas e ele murmurando ouve-me, meu amor. Meu amor, tão doce e suplicante!

Ela já não o ouviu. A máquina parou. Puxaram-no, correu-se a cortina. Os tubos foram para o lixo. Evacuou-se a enfermaria dos acompanhantes.

Depois, um corpo envolto num plástico cinzento, sobre uma maca fria de lata, seguia pelo corredor frio de pedra.

E nos meus ouvidos ouve-me, meu amor, a ecoar no infinito.

A Sónia continuava de olhos abertos, impávida e serena, como todos os outros. Ninguém deu conta que a morte andou por ali na sua ceifa traiçoeira de ave de rapina.

Aprendi a relativizar a vida.

(in Cenas do Paraíso, ediçõesengenho)

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por Augusta Clara às 18:00

Sexta-feira, 11.11.16

O Despertador - Tonino Guerra

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Tonino Guerra  O Despertador

 

willem van hasselt (1882-1963) la couture dans la

(Willem van Hasselt)

 

   Um despertador exposto sobre um tapete cheio de pó era tudo quanto possuía, para vender, o pobre comerciante árabe. Durante dias, reparou que uma velha se interessava pelo relógio. Era uma beduína, pertencente a uma daquelas tribos que voam com o vento.

«Desejas comprá-lo?», perguntou-lhe um dia.

«Quanto custa?»

«Pouco. Mas não sei se o vendo. Se também este desaparecer

deixarei de ter um trabalho»

«Então porque o tens exposto?

«Porque me dá a sensação de viver. E tu porque o queres, não vês que lhe faltam os ponteiros?

«Faz tiquetaque?», quis saber a velha.

O comerciante deu corda ao despertador fazendo soar um so­noro e metálico tiquetaque. A velha fechou os olhos e percebeu que, na escuridão da noite, podia assemelhar-se a um coração que bate ao lado do seu.

(in Histórias para Uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim)

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por Augusta Clara às 14:00

Segunda-feira, 01.08.16

"O calendário não mente ..." - Ethel Feldman

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Ethel Feldman  "O calendário não mente ..."

 

zao wou-ki (1921-2013), 1959a.jpg

(Zao Wou-Ki) 

 

   O calendário não mente, acho eu que esse nunca mente. Os dias definidos como data de nascimento são celebrados ainda que sem corpo presente. Assim sempre foi, diz-se.

Como me canso, rareio. Faz um ano e tanto, e eu tola narro as novidades de meses sem descanso. O mundo? Porque raio quererás tu saber deste presépio, se em boa hora disseste:

- Basta, que estou farto!

Há mais atentados, sabias? E notícias que se repetem à exaustão. Telemóveis aos milhares sempre prontos para a ação. Sem cortes, são os chamados instantâneos da realidade. Uns explodem-se para detonarem em estranhos. É a pouca vergonha deste tempo, que em boa hora disseste:

- Estou farto, basta!

A praia, essa continua quase igual. As árvores também - a floresta que vias da minha sala de jantar. Pelo menos parece ser assim. Meus olhos não conseguem dar conta de uma mudança tão subtil. Um verde que se enamora do amarelo, a raiz que desponta da terra, o xixi dos cães de toda a vizinhança que não sei se queima ou aduba o que nasce sem a mão do homem.

Talvez o clima, com certeza o clima altera-se de dia para dia. Mas quem liga a isso?

Outras notícias? São tão iguais. Aquela miúda foi despedida, apesar de estar a trabalhar há já 5 anos a recibos verdes. O valor da indemnização? Vê-se bem, que já cá não moras há imenso tempo. Um adeus e passe bem. É assim o trabalho hoje em dia. Um enorme favor do patronato.

Mas tu adivinhaste o cenário, ou não terias em boa hora dito:

- Basta, que estou farto!

Do outro lado, por onde vivemos ambos, o rebolado é o mesmo e o povo continua penando. Por lá o gerúndio canta a vida como ela é.

O amor? Há cupidos em todas as estações do ano, anjinhos desnudos sedentos de alvos. Deus deve estar velho, ensinou-os a enviar setas para o céu, onde ninguém que é vivo mora.

Ainda que farto, não podias ter esperado mais um pouco?

Talvez me ajudasses a entender porque há homens nas ruas à caça de bonecos virtuais. É este o hospício de que falavas?

Ok, estavas farto. Eu também.

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por Augusta Clara às 14:00

Sexta-feira, 29.07.16

O sapo cor de terra - Eva Cruz

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Eva Cruz  O sapo cor de terra

 

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(Pol Ledent)

 

   Um clarão alaranjado fazia adivinhar que a lua cheia ia nascer ali naquele bocadinho de serra, entre os bicos de dois pinheiros.

Já tinha regado o pátio, arbustos, flores e plantas. A água fresca do poço acalmara o calor tórrido do dia que findava. Muito pálidas, tremeluziam no céu umas luzinhas, e apetecia-me deitar-me numa cama de estrelas, lá no ar, a espreitar a lua antes de ela nascer. Ser um pokémon, um D. Quixote, uma bolinha de fantasia. Ser um momento de glória lá no infinito, onde tudo é possível.

De repente, passa-me um tira-olhos pela frente da cara, como uma flecha. Olhos nos olhos, parecia um helicóptero. E a minha fantasia foi atrás dele, outro pokémon. Num instante desapareceu. Os tira-olhos têm um campo visual muito amplo, e este era tão corpulento que estaria provavelmente a banquetear-se com todas as moscas e mosquitos das redondezas. Pareceu-me que tinha poisado num vaso de cravinas cor-de-rosa, daquelas que têm o perfume enraizado na lembrança, já a deixar cair as sementes. Procurei-o, porque diz a sabedoria popular que não fazem mal nem se atrevem a enfrentar os humanos.

Num vaso de húmido brilho vislumbrei, à luz do candeeiro que espreitava por entre a hera, um montículo castanho que não parecia ser terra. De repente, uma língua enorme e pegajosa dispara em direcção a uma aranha que fazia teia por entre as folhas, fazendo-a desaparecer. O sapo cor de terra, aninhado no mais reservado silêncio, virou para mim os olhos esbugalhados, como que a dizer: chchchiu!

Já há muito tempo que não via um sapo. Diz o povo que é bom sinal haver sapos.

Não o matem. Ele come todos os bichinhos prejudiciais à terra. Mas cuidado com o espinhaço de sapo esborrachado, é venenoso. Além disso ele mija veneno e pode cegar.

Muitas vezes ouvira isto na minha infância. Recordo as maldades dos meninos que punham um sapo na ponta de uma tábua e batiam na outra ponta fazendo o bichinho saltar tão alto que se perdia no ar. Ou homens que lhes enfiavam um cigarro na boca. Maldades que o pobre sapo não merecia.

Olhei para ele. De olhos fitos nos meus, ali permaneceu quietinho e discreto, de papo cheio, a saborear a frescura da terra acabada de regar. O meu Pokémon do dia, no meio das cravinas perfumadas.

Já não precisava de subir ao céu às escondidas da lua. Ela acabava de libertar-se, redonda e brilhante, da serra negra.

O sapo disparou novamente a língua, tão rápida e comprida, que até tive medo que engolisse a lua.

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por Augusta Clara às 23:15

Terça-feira, 10.05.16

Não há hora nem dia para a Liberdade! - Eva Cruz

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Eva Cruz  Não há hora nem dia para a Liberdade!

  

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(Edouard Ambrose)

 

 

   Pelo caminho ouvi, atrás de mim, uma voz muito fresca:

- Tenha um bom dia, minha senhora.

Reparei que era um rapazinho, aparentando os seus dezoito anos, tão espontâneo e sorridente que me fez responder no mesmo tom:

- E tu também.

Tive vontade de meter conversa e perguntei-lhe o que andava ele ali a fazer.

- Ando aqui a ver se arranjo mais uns tostõezitos para o almoço.

Tinha uns olhos muito azuis que faziam adivinhar uma boa alma.

Perguntei-lhe a idade. Disse-me que já tinha vinte e cinco, nunca tivera trabalho, só fizera o sexto ano, vivera com a avó, mas agora estava sozinho porque ela fora para um lar. Nunca conhecera o pai, e a mãe só a vira em criança, mal dela se lembrava. Disse ainda que tinha o nome de dois santos, João Pedro, mas de pouco lhe terá valido.

Pareceu-me muito sincero, embora este tipo de história seja sempre o mesmo.

Perguntei-lhe se o dinheiro que tinha já chegava para o almoço. Abriu a mão com algumas moeditas e disse que o almoço custava quase quatro euros.

Pensei, com os meus botões, que me estava a querer levar mais algum. Tinha, no entanto, uma postura tão aparentemente honesta, que até me custou julgá-lo desta forma.

- Vamos ali que te pago o almoço.

- A senhora vai-me pagar o almoço? Então devolvo-lhe o euro que me deu.

- Fica lá com o euro, rapaz!

- Eu fumo, mas pouco. Peço às pessoas um cigarrito. Eu era capaz de cozinhar para mim, que a minha avó até me ensinou, mas não tenho dinheiro para o gás.

No pequeno café em frente, perguntei ao homem quanto custava a refeição.

- Três euros e setenta, lombo assado, o prato do dia, menos a bebida.

- Vê! Eu não lhe menti! Com a bebida vai lá para os quatro e tal.

Paguei-lhe o almoço e a bebida.

- Tens mais sorte do que eu, pois já tens o almoço pronto, e eu ainda vou fazer o meu.

- Então almoce comigo.

- Não posso, tenho gente em casa à espera.

Deu-me dois beijos, um de cada lado da cara.

Quando cheguei a casa, além da gente que tinha à minha espera, aguardava-me uma amiga com quem sempre partilhei o sonho de Abril. Trazia na mão o ramo de cravos vermelhos mais lindos que tive na minha vida. Robustos, e de um vermelho retinto e aveludado.

Esta amiga, todos os anos me deixa um cravo vermelho debruçado na minha caixa do correio, no dia vinte e cinco de Abril. Pela primeira vez, este ano, não vi o cravo vermelho na caixa do correio, nem consegui comprá-lo em lugar algum, apesar de me ter esforçado. Muito triste por me ter faltado a sua companhia em dia tão abençoado, ainda voltei à caixa do correio, já noite tardia, mas não o vi.

- Pela primeira vez não lhe deixei o cravo na sua caixa do correio. Não estive cá.

Dentro da beleza daquele ramo de cravos vermelhos havia um cartãozinho que, entre outras palavras de amizade, dizia:

- Não há dia nem hora para a Liberdade!

Não me enganei. O rapazinho era mesmo sincero, ao desejar-me um Bom Dia.

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por Augusta Clara às 17:20

Segunda-feira, 09.05.16

Pó enamorado - Carla Romualdo

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Carla Romualdo  Pó enamorado

 

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(Grzegorz Ptak)

 

   Durante anos, o meu pai repetiu que, logo abaixo do proverbial “aqui jaz fulano”, a sua lápide haveria de ressalvar: “Contra a sua vontade”.

Acabaria por escolher a cremação, até porque detestava enterros, mas continuou a gostar de contar o que diria a lápide que sabia que não iria ter.

As suas cinzas foram depositadas no jardim do cemitério, numa manhã de Verão que nada teve de solene. Mesmo antes de sair de casa, decidi que queria que pelo menos uma pequena parte das cinzas fosse para um sítio de que ele gostava. Não sendo um sítio onde se possam depositar cinzas, não seria viável depor lá mais do que uma reduzida quantidade. Só tinha à mão um daqueles frascos para champô de levar em viagem e, como nunca tinha sido usado, achei que poderia servir.

Nessa manhã, o grande volume de cinzas foi despejado no jardim, e, apesar do cuidado que se pôs na operação, formou-se uma nuvem de pó que me fez espirrar. Quanto se teria rido o meu pai se soubesse que a última coisa que fiz com ele foi espirrá-lo. Foi, aliás, a primeira vez que senti a falta dele, ao pensar que faltava ele ali para rir comigo. No recipiente disponibilizado pela funerária, um vaso negro, solene, as cinzas são qualquer coisa de sagrado, um despojo nobre. Num frasco transparente, as cinzas são comezinhas e domésticas, quase se pode falar com elas, dizer-lhes “Para já, vão ficar aqui na estante, têm luz, à beira da janela, e depois a gente leva-vos para aquele sítio.” Mas não cheguei nunca a falar com elas, não se apoquentem.

Trouxe comigo, portanto, o frasquinho com uma pequena parte das cinzas e pousei-o na estante, atrás da mesa onde escrevo. Se espreitarem, agora, por detrás do meu ombro, talvez consigam vê-lo. Nunca tinha visto cinzas humanas e reconheço que fiquei desconcertada. Creio que imaginava algo que pudesse assemelhar-se ao “pó enamorado” de Quevedo e afinal tudo se reduz a uma matéria cinzenta, algo granulosa, e cuja origem é indecifrável. É certo que a matéria se transforma, mas que o meu pai, mais o seu fato favorito, a sua gravata azul, o seu cachecol do FCP, sejam este pó cinzento que restou parece-me difícil de acreditar.

Como não choveu pouco nos meses seguintes, fomos adiando levar as cinzas para o outro sítio, porque a ideia de que as cinzas se fizessem lama era-nos desagradável. E, assim, o frasco foi ficando na estante. Não tenho nenhum interesse mórbido nas cinzas, quando penso no meu pai não penso nas suas cinzas, passam-se muitos dias em que nem me lembro que estão ali, e só mexo no frasco quando ele está mesmo em frente ao livro que quero tirar da estante.

Tal como o meu pai, eu também gosto de dizer que já sei o que dirá a lápide que não vou ter. Como, apesar de tudo, sou menos rezingona do que ele, a minha dirá:

“Gostei muito deste bocadinho.”

Penso que ele seria a única pessoa no mundo a achar verdadeiramente graça a isto. Acreditávamos ambos que uma piada pode resistir pelo menos tanto como o mármore.

No outro dia, perguntaram-me se sempre vou levar as cinzas ou deixá-las ficar e espantei-me com a pergunta. O plano não mudou, as cinzas têm destino. Mas não estão mal onde estão, lá isso é verdade, e continuo à espera do dia em que um visitante inadvertido perguntará: “Ah, esta areia trouxeste de donde?” e eu vou gostar de observar a sua expressão quando lhe explicar de que se trata. O que estou disposta a mudar é de frasco, até porque consigo ouvir o protesto do meu pai: “Meteste-me num frasco de champô?! Tem algum jeito?”

Nenhum de nós teve, alguma vez, jeito para o solene, lá isso não.

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por Augusta Clara às 19:30

Quinta-feira, 05.05.16

À noite é diferente - Eva Cruz

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Eva Cruz  À noite é diferente

 

claudio cargiolli1.jpg 

(Claudio Cargiolli)

 

 

   Decidi lá ficar, a dormir.

À noite é diferente, e é preciso alguma coragem para dormir num sítio tão ermo.

Acendem-se as luzes de fora, fecham-se os portões e cresce em nós uma sensação de segurança, dentro de portas. O lume a crepitar aconchega o espaço e faz companhia.

Cá em baixo, nada se ouve. Não há rumores. Lá em cima, nos quartos, já os pequenos estalidos da madeira ou o ranger do soalho, na calada da noite, impõem algum respeito. E se há vento, ainda que uma leve brisa, as portadas lanceiras e gastas do tempo abanam, fazendo chiar ou assobiar o ar através das frinchas.

As noites ainda são longas. Debrucei-me à janela, por detrás dos vidros, a olhar a meia-lua que espreitava por entre um céu cinzento, cheio de sono.

Contemplei o jardim, e por entre as sombras que o invadiam perdi a noção do tempo. Uma sensação confusa fez-me esquecer que existia, e dos tons ressequidos de plantas e arbustos nasceram folhas verdes e flores de mil cores. Senti que a vida, pesada e seca, me fugia dos ombros e voava pelos campos na leveza de um verso.

Escrevi duas ou três linhas na palma da mão e fechei-a. Encostei-me ao parapeito e tive vontade de a abrir e lançar ao vento essas palavras tecidas na alma e com elas colorir a noite cinzenta, já com tons de cobre lá para os lados da serra.

As doze badaladas no relógio da sala acordaram o silêncio.

Um relâmpago incendiou o céu e o negro da serra tremeu com o trovão. Trovoada perto! O céu desfez-se em água mas a lua lá ia escapando, em pedacinhos de brilho por entre manchas de azul.

Corri as cortinas brancas de linho e o ar do quarto acordou-me trazendo-me de novo ao seio do tempo.

O espírito é tão livre! À frente dos olhos haverá sempre uma janela.

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por Augusta Clara às 19:00

Terça-feira, 12.04.16

Um jogador a menos - Carla Romualdo

a poalha dos dias5a.jpg

 

Carla Romualdo  Um jogador a menos

 

carla.png

Médium apanhada em flagrante a subir a mesa com o joelho. Sessão realizada em Paris, em 1950. Autor desconhecido.

 

   J. D. Moufons, um distinto cavalheiro que conheço das noites de poker, foi convidado por Matilde M. para uma séance em casa dela. A Matilde não bastava ter uma casa semelhante a um museu, com todas as paredes e recantos pejados de quadros, antiguidades e de retratos de gente que Matilde não sabe quem foram mas nos quais reconheceu, ao encontrá-los em dispersos antiquários, traços reveladores de uma força de carácter, de uma nobreza que só podiam ser suas antepassadas. Matilde também adoptara hábitos caídos em desuso, como beber mazagrã e organizar sessões espíritas em sua casa, sempre à terça-feira, porque era o dia em que o marido, avesso a excentricidades, saía para o bowling.

Moufons não tinha interesse no oculto. Não desejava comunicar com falecidos, nunca perdera tempo com especulações sobre o Além, não ansiava por respostas porque simplesmente nunca tivera vontade de fazer perguntas. Mas Matilde era insistente, repetia-lhe que ele tinha absolutamente de ir, e como, depois daquele aborrecido incidente com a espingarda de chumbos, Moufons vira muitos dos seus amigos afastarem-se, não queria perder a pouca vida social que lhe restava: as noites de poker e as excentricidades de Matilde.

Por isso, com um resignado suspiro, encharcado até aos ossos, porque a noite era de chuva torrencial, tocou à campainha da casa de Matilde, pontualmente, naquela noite de terça-feira. Se não tivesse ido, sabemo-lo agora, a sua pacata existência teria continuado sem sobressaltos. A sua escolha revelou-se, porém, decisiva. Confrontado com a insistência da médium, que de imediato detectou a presença de um intruso, acabou por constatar que, tal como ela lhe garantia com solidíssima convicção, ele estava já morto há sete anos e ainda não se havia apercebido disso.

Foi uma grande excitação em casa de Matilde, nunca os convivas se tinham sentido tão entusiasmados com uma séance, e o próprio Mouffons acabou por apreciar a súbita e pouco habitual atenção que lhe dedicaram. Quiseram saber como se sentia, se notara alguma diferença desde que morrera, uma azia, um reumatismo, uma perda de peso. Mas Mouffons não notara nada e sentia-se muito bem. Claro que agora teria de mudar de vida, disse, com uma risadinha tímida, logo seguida das gargalhadas de todos. Acabou por ser uma noite bem passada.

Já para nós, no grupo do poker das sextas, foi muito aborrecido. Agora temos um jogador a menos.

 

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por Augusta Clara às 16:20



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