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Jardim das Delícias


Terça-feira, 28.03.23

Reflexão sobre as palavras - Adão Cruz

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Adão Cruz  Reflexão sobre as palavras

 

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   Tenho muito respeito pelas palavras e pela verdade nuclear que as constitui. Tenho muito medo de poder esvaziá-las ou atraiçoá-las.
As palavras, elas mesmas, têm necessidade de serem ditas por inteiro, de outra forma não passam de palavras mudas, e eu tenho necessidade de as saber dizer, senão não passo de mero dizente. Por outro lado, se as palavras têm um sentido para aquele que as diz ou escreve, podem não o ter, ou ter um sentido diferente para aquele que as ouve ou as lê. O conceito de sentido é fundamental na comunicação. E o sentido está dentro de cada um de nós e resulta da forma como respondemos interiormente às nossas experiências, que não é a mesma de cada um daqueles que nos lêem ou nos ouvem. O sentido é fruto de um processo complexo em constante movimento, e ao transmiti-lo, nunca devemos esperar uma colagem pura e simples, que de nada serve, mas sim a procura de uma integração consciente nos mecanismos construtivistas do sentido dos outros.
Vem isto a propósito de um artigo em que falei das duas naturezas do ser humano, a natureza antropológica e antropocêntrica e a natureza centrífuga da sua dimensão universal, as quais, na realidade, são apenas uma.
O hipotético Big-Bang, inimaginável explosão do pequeno desequilíbrio entre a matéria e a antimatéria, fez com que o Universo entrasse em expansão arrastando com ele esta risível partícula de poeira chamada Terra e este micróbio chamado Homem. No confronto entre a resistência da condição humana e o movimento de fuga para fora dessa condição, tendente a dilatar o homem no infinito, residiria, a meu ver, a mente, ou interface onde a verdadeira vida se processa.
Não querendo abusar das palavras, mas valendo-me delas com o máximo respeito que merecem, eu diria que, sem perder a sua dimensão universal, o Homem, dentro da sua natureza terrena, pode desenvolver uma luta racional e científica que o projecte para fora da sua pequenez, guiado pelo amadurecimento de uma consciência social que o ajude a combater a indignidade e a perversão, os grandes males do mundo. Apesar de não ser o centro de nada, ele detém a força do equilíbrio ou do desequilíbrio da humanidade. E tem um enorme potencial de conhecimento acumulado, que pode permitir alcançar o equilíbrio ou aprofundar o desequilíbrio entre os homens. O Homem é um ser vivo com actividade própria em permanente interacção adaptativa com o meio. Possui uma força intelectiva e emocional, que o torna capaz de entender as realidades e transformá-las, transformando-se, ele próprio, dentro da sua sensibilidade intrínseca. Assim como o seu fenótipo e o seu saber resultam de uma interacção, de uma evolução e de um diálogo permanente entre o genótipo, o meio ambiente e a admirável neuroplasticidade cerebral, ele, ontologicamente parte integrante do Universo, não pode fugir a esta sua dimensão. Por isso o homem não é um simples quantitativo nem uma estática soma, antes se constitui por um infindável crescendo de saltos qualitativos que o levam a reconhecer que o todo é sempre muito maior do que as partes, tanto no que se refere às relações com ele próprio e com os outros, como no que diz respeito à consciência da sua relação com o infinito.

 

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por Augusta Clara às 19:00

Sábado, 25.03.23

Reflexão sobre Ética - Adão Cruz

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Adão Cruz  Reflexão sobre Ética

 

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   Para mim é muito difícil dizer o que é a Ética, até porque não sou, propriamente, uma pessoa sabedora nestas áreas. No entanto, a vida sempre me deu a entender que a Ética poderá ser a mais bela construção do ser humano. A Ética deve ser, penso eu, a vivência da verdade, o lugar certo do Homem dentro de si mesmo, o fio-de-prumo do Homem no interior da sua cumplicidade. A ética compreende a disposição do Homem na vida, interfere com o seu carácter, os seus costumes, a sua moral, ao fim e ao cabo com o seu modo e a sua forma de vida. O Homem faz-se por si e pelos outros, sendo que a ética é a autenticidade e a dignidade deste fazer-se. A construção da ética assenta, a meu ver, em quatro pilares fundamentais.
O primeiro pilar da verdadeira morada do Homem seria constituído pelo pensamento e pela sua inseparável companheira, a razão. A Ética será uma consequência da razão. Podemos dizer que as plataformas que permitem a elaboração de um pensamento ético são a liberdade e a responsabilidade. A capacidade do Homem de se autodeterminar e assumir a direcção da sua vida determina-o como homem livre e, por conseguinte, a caminho do sujeito ético. E um sujeito ético é, fundamentalmente, um sujeito que procura a verdade. O referente da liberdade humana é a procura da verdade, porque a verdade orienta a liberdade e encaminha-a para a sua plenitude. O pensamento é o suporte mais poderoso e a mais forte armadura do Homem, a mágica força da sua criatividade. Sem pensamento e sem razão a mente humana não passa de um céu brumoso, sem ponta de sol. Por isso o pensamento e a razão têm tantos inimigos!
O segundo princípio ou pilar fundamental decorre do primeiro e chama-se cultura. Não sei verdadeiramente o que é a cultura. E cada vez sei menos, neste pequeno país e neste pequeno planeta feito de inúmeros serventuários medíocres, de arrogante postura, incriativos plagiadores de todos os lugares-comuns inseridos nas políticas de retrocesso. Sei, no entanto, que não é a cultura-espectáculo, a cultura enlatada dos cabotinos, a pseudocultura massificada que só gera vícios consumistas, impedindo o homem de pensar, reflectir e encontrar, mas a cultura do dia-a-dia, a cultura estruturante da pessoa, a cultura do percurso, a cultura dialógica que está na base da racionalidade crítica, orientada para a procura do significado da realidade humana.
O terceiro princípio seria o respeito pelos outros. Todavia, o respeito pelos outros nunca existirá se não houver respeito por nós próprios. O respeito pelos outros é o espelho do respeito por nós próprios.
O quarto pilar desta edificação ética do Homem seria a justiça e a solidariedade. O primeiro passo da solidariedade estaria no entender da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades. O segundo passo seria a consciência de que viver dos outros implica sempre viver com os outros e para os outros. Precisamente o contrário daqueles que aceitam o individualismo e o hedonismo como fatal decorrência da onda desumanizante. Penso que o Homem é um ser para o encontro, encontro consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com o transcendente, ao qual deverá dedicar a sua razão e a sua consciência, dentro da vital necessidade da procura da verdade.
 

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por Augusta Clara às 19:57

Terça-feira, 24.01.23

A ponte - Adão Cruz

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Adão Cruz  A ponte

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(Adão Cruz)

 

   O Homem é um ser uno e indivisível, muito complexo. Ele é, no entanto, composto por uma infinidade de subunidades, todas elas intimamente ligadas entre si. A mais importante de todas, se assim podemos dizer, a unidade soberana, é o cérebro. Este órgão, bem guardado numa caixa óssea, feita da substância mais dura do corpo humano, é constituído por cerca de cem biliões de neurónios em permanente actividade, através dos quais se processam em cada momento, provavelmente, triliões de neuro-transmissões. O nosso esquema cerebral é idêntico em todos nós mas o conteúdo de cada cérebro é totalmente diferente.
A Humanidade não é um mero conjunto de homens e mulheres. A Humanidade é uma profunda e intrincada rede de relações, de relações humanas muito complexas. O cérebro de cada um de nós, apesar de encerrado num compartimento estanque, não se encontra isolado. Relaciona-se, permanentemente e mais ou menos intimamente, com todos os outros, e todos os outros se relacionam com ele de forma mais ou menos profunda, através dos múltiplos canais de comunicação que vão desde a linguagem, falada, escrita ou gestual, à mímica, à postura, às atitudes, aos comportamentos, não falando já de outras formas de comunicação menos conhecidas, que estão na base da investigação de hipotéticas concepções, como a existência de campos ou configurações electromagnéticas extra-cerebrais. Todo o homem se relaciona mais ou menos activamente com os inúmeros fenómenos que o rodeiam e com tudo o que vê e não vê, com tudo o que entende e não entende. O diálogo do Homem com o homem e do Homem com o mundo no seio da natureza e da Humanidade é permanente, profundo e inevitável. Assim vai ele construindo, dia após dia, o seu emaranhado mundo relacional, o seu autêntico microcosmos regido por todas as inimagináveis forças da sua microgaláxia.
Deixo um pouco de lado este homem-relação e vou imaginar que um qualquer de nós, encontrando-se num qualquer ponto do macrocosmos, no seio do Universo, a milhões de anos-luz de distância, resolve vir por aí abaixo (ou por aí acima!) dar um passeio. Vai-se aproximando, aproximando, passa por triliões de estrelas e por outros tantos triliões de outros corpos celestes, e ao fim de biliões de quilómetros encontra uma pequenina bola de berlinde a que chamam Terra. Pára um pouco para pensar e chega à conclusão de que a Terra, afinal, é um pequeníssimo e quase desprezível grão de areia no meio do Universo, sem qualquer valor ou significado. Continua a viagem, aproxima-se, aproxima-se um pouco mais, e repara que sobre essa bolinha chamada Terra se mexe uma multidão de pequenos bichinhos chamados homens. Pára novamente para pensar e definitivamente se convence de que o Homem, afinal, não é, rigorosamente, o centro de nada. Vai-se aproximando, aproximando ainda mais até penetrar dentro do próprio Homem, onde depara com o tal microcosmos que deixei atrás, na minha descrição. Conclui, então, pelo que lhe parece, que o Homem vive entre duas poderosas forças. Uma força antropocêntrica, que o atrai e o arrasta para a sua natureza, para a sua condição humana e para a sua esfera relacional, da qual não pode, de forma alguma, libertar-se, e uma outra força de sentido oposto e centrífugo dentro da permanente expansão do Universo, que tende a projectá-lo em cada momento na dimensão universal a que pertence. Nesta zona de divergência, nesta interface, na fronteira entre estas duas poderosas forças, reside, a meu ver, a verdadeira vida, a vida que procura fugir e transitar da sua natureza palpavelmente biológica, para um estádio que, sem deixar de ser material e biológico, cada vez mais se integra na natureza cósmica da sua origem-destino. Nesta zona de divergência, nesta poderosa interface reside, em minha opinião, a mente, a verdadeira ponte entre as duas naturezas, que o são apenas na aparência. E quem diz a mente diz o desenvolvimento mental, quem diz o desenvolvimento mental diz o desenvolvimento cultural, e quem diz o desenvolvimento cultural diz o desenvolvimento da expressão artística, talvez o maior vector humano nesta força de projecção universal. Toda a natureza humana muda e altera em cada momento as relações do seu microcosmos, podendo fazê-lo de forma negativa ou positiva, isto é, cortando ou abrindo as asas da mente. Só as alterações e mudanças que levam ao saldo positivo da mente permitem o salto positivo da mente, a travessia desta ponte, para além da qual se dá a verdadeira evolução do Homem, a que conduz ao equilíbrio da sua concomitante expansão como ser do Mundo e do Universo e à preservação da harmonia cósmica da nossa existência.
 

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por Augusta Clara às 13:24

Sábado, 03.09.22

REFLEXÂO (complexo caminho da simplicidade da Evidência) - Adão Cruz

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Adão Cruz  REFLEXÂO (complexo caminho da simplicidade da Evidência)

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(Adão Cruz)

   Não é fácil percorrer o complexo caminho da simplicidade da Evidência que anda por aí, em muita coisa. O medo da Evidência apavora as mentes que, de uma forma ou de outra, perderam a liberdade ou rejeitam a liberdade, sobretudo a liberdade de pensar. Interiorizam mecanismos fortemente redutores que são aceites acriticamente, porque não existe ou foi tacticamente anulada a capacidade crítica, ou são impostos por uma espécie de fé ou crença consuetudinária, impiedosamente dogmática, que cristaliza toda a forma de pensar, mesmo em pessoas familiarizadas com a Cultura Científica da Evidência. Estas as pessoas, ainda assim, de boa fé. Porque as há, e não são poucas, que fazem da má fé o antídoto da Evidência que não conseguem negar. O mundo é muito claro, até onde nos permite que o seja.
O sobrenatural continua a ser um grande problema, com a maioria das pessoas a serem incapazes de o resolver, incapazes de rever a equação cujo resultado estabeleceram como certo sem conhecerem os dados que a compõem.
Há muito tempo que deixei de discutir fé e religião com gente crente, gente que indiscutivelmente respeito, mesmo não respeitando as crenças. Dogmas e argumentos condicionados, não sendo permeáveis à razão, só podem levar a conclusões sempre frustrantes. Sou ateu, mas há muitos anos fui crente. O sobrenatural, tantas vezes aterrorizador, entrou na minha cabeça à força da destruição da minha razão e do meu entendimento, perpetrada por mentes ignorantes que assaltaram a minha infância e adolescência. Essa parte negativa da minha vida teve um lado positivo. Permite-me, hoje, à luz da Evidência possível, fazer a comparação entre a falsa liberdade da aleatória felicidade do obscurantismo e a aliciante liberdade da real felicidade de uma razão não mais miscível com qualquer grande ou pequena crendice. É muito difícil quebrar as grilhetas de um pensamento fortemente colonizado, mas a força projectiva da curiosidade humana que leva ao complexo caminho da simplicidade da Evidência é a única força capaz de nos libertar de todas as constritoras angústias metafísicas. Foi essa libertação que me trouxe a paz e a serenidade de uma total descrença mística, uma das melhores prendas que a vida me deu.

 

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por Augusta Clara às 19:27

Terça-feira, 09.08.22

Reflexão - Adão Cruz

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Adão Cruz  Reflexão

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(Adão Cruz)

   Ouvindo novamente a Oração de Sapiência proferida por Ana Luisa Amaral em Março passado, fui levado a reconhecer que a razão e o pensamento são as duas maiores riquezas do ser humano. Ser capaz de parar para pensar é um enorme privilégio. Eu tenho um escrupuloso respeito pelo pensamento, pelo meu pensamento e pelo pensamento dos outros, quando racional e honesto. Acredito que todos nós, aqueles que nunca se venderam a nada nem a ninguém, aqueles que nas questões que mais nos inquietam e mais preocupam a humanidade necessitam sempre de pensar e ouvir a voz da razão. Não conseguem sentir-se livres fora da verdade, ou pelo menos fora da procura do caminho da verdade.
Há para mim três verdades que a reflexão profunda e séria de uma vida inteira tornaram irrefutáveis. Mas são minhas, e de modo algum eu pretendo impô-las a quem quer que seja. Uma delas é a convicção de que o conhecimento e a cultura, a verdadeira cultura, ou seja, a cultura do conhecimento e, por inerência, a cultura da verdade são os mais importantes recursos de que dispomos para encontrar o caminho da justiça e da solidariedade, os sentimentos que nos acordam para a nobreza que poderia existir e não existe no coração da humanidade. A segunda convicção é a do nefasto papel do obscurantismo, religioso ou não, arrastando consigo a irracionalidade e a secundarização do conhecimento, os grandes inimigos da verdade. A minha terceira convicção é o simples reconhecimento de que a intencional desinformação e ignorância impostas ao mundo pelas forças que o dominam vai deformando, de forma mais insidiosa ou mais contundente, a consciência e mesmo a inconsciência das pessoas, levando-as à gelatinosa certeza de que não há verdade mais credível do que a verdade da mentira.

 

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por Augusta Clara às 12:51

Segunda-feira, 06.12.21

Mundo - Adão Cruz

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Adão Cruz  Mundo

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(Adão Cruz)

   Neste mundo, em que os verdadeiros bárbaros são impostos aos olhos mais ou menos cegos, como agentes da paz, da justiça e do bem-estar, neste mundo em que a humanidade não come ou se enfarta de caviar, eu tento aquecer o pensamento com o abraço do nascer do sol, mas a pobreza foi reduzida a um buraco sem janelas e dói-me viver assim, sem a luz de um horizonte.

 

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por Augusta Clara às 21:04

Segunda-feira, 15.11.21

A pobreza - Adão Cruz

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Adão Cruz  A pobreza

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(Adão Cruz)

   A pobreza transformou-se em bandeira eleitoral de muitos daqueles que por ela são responsáveis. Descarada hipocrisia. Em nome da competitividade e da convergência cometeram-se e cometem-se as maiores barbaridades. A competitividade e a convergência, a globalização, a modernidade, a flexibilização, o liberalismo e a privatização, são palavras inquestionáveis das estratégias de dominação por parte daqueles que sabem quem tudo ganha à custa de quem tudo perde. Tais fórmulas transformaram-se numa ideologia sem sentido que leva à destruição sistemática do Homem, através do desemprego, do baixo salário, da pobreza, da toxicodependência, do crescimento dos sem-abrigo, do desespero, da delinquência, da apatia e iliteracia da juventude. O assalto às economias pelas mãos de luva branca, hoje quase institucionalizado entre muitos políticos e muitos manipuladores do dinheiro, que mais não são do que homens sem qualquer honra, vergonha ou dignidade, levou à perversão dos conceitos, à aniquilação da resistência e da vontade dos homens dignos, à inoperância e colaboracionismo da Justiça. Todos estes fenómenos se acentuaram quando se desenvolveram políticas doentias de saque e destruição, destinadas a reforçar o poder do capital de forma profundamente criminosa, através de absurdos superlucros e mais-valias, e do escandaloso roubo e desvio do nosso dinheiro para obscenas e obscuras transacções, salários e reformas de ninhadas de parasitas, à custa do esmagamento da qualidade de vida da maior parte do povo. Circulam no mundo triliões de dólares avidamente à procura do sítio onde se lucra mais, nem que esse sítio seja o imenso cemitério para onde resvalam milhões de vítimas. Não basta os políticos tidos por sérios dizerem que a solidariedade é um factor fundamental e o princípio mais importante do nosso século. Não basta dizerem que continua a haver países mais ricos e outros mais pobres e, dentro dos mais ricos, cada vez maior abismo entre ricos e pobres. Não basta lamentarem a pobreza e dizerem que a pobreza e a exclusão geram guerras intermináveis. Tudo isto é sabido e não é cantarolando a Paz e a Cooperação, de mão dada com os corruptos, os ladrões e os senhores da guerra que se ganha o título de vencedor. Muitos destes políticos pregadores da paz e da liberdade foram e são co-responsáveis pelo engrossamento do exército de famintos, refugiados, oprimidos e condenados da terra. Co-responsáveis no abrir de portas e no estender de tapetes às chancelarias do crime organizado. Por mais que preguem, por mais debates e conferências que façam, não anulam o descrédito em que caíram ao pretenderem convencer-nos de que as expectativas de paz, liberdade e justiça são possíveis com o aperto de mão dos verdadeiros terroristas do mundo ou com as orações a Deus, as quais, pelos vistos, só são ouvidas quando saem da boca dos afortunados e não quando tomam a forma de gemidos. Nós andamos distraídos com os fumos de incenso que os responsáveis vão espargindo pelos quatro canais da estupidez institucionalizada. E tudo isto porque muitos dos importantes grupos económicos, células de um cancro universal, tomaram conta do poder político, transformaram os governantes em lacaios e limparam os pés à soberania. Arrepanharam toda a informação global, e com ela o poder de mudar e moldar os comportamentos e as mentalidades até à anulação da verdade, da razão e do pensamento. De forma humilhante e perversa criaram uma maquiavélica desinformação, com a qual inundaram de publicidade enganosa e de ignominiosas mentiras as cabeças de um povo cada vez mais roubado, massificado, ridicularizado e estupidificado.

 

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por Augusta Clara às 20:56

Terça-feira, 03.08.21

Poesia - Adão Cruz

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Adão Cruz  Poesia

 

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   É muito difícil saber o que é a poesia, e eu duvido de quem diz que sabe o que é a poesia. Tenho ouvido as mais variadas explicações e definições, mas o horizonte que me transmitem é sempre nebuloso. Isto não impede, contudo, que tenhamos o direito à manifestação do nosso pensamento e da nossa razão.
Pessoalmente, sem ter a veleidade de pretender procurar definições de poesia, senti sempre a necessidade de perceber o que é, necessidade de a entender e de me entender no seu complexo e maravilhoso mundo. Por isso, ao longo de tantos anos de reflexão, fui dando comigo a pensar que a poesia não é mais do que um sentimento como outro qualquer. Assim sendo, prefiro chamar-lhe sentimento poético. Um sentimento como o sentimento do amor e do ódio, o sentimento da alegria e da tristeza, o sentimento da coragem e do medo, o sentimento da felicidade e da infelicidade, bem como o magnífico sentimento da liberdade, sobretudo da liberdade interior, a liberdade do pensamento e da razão, as maiores riquezas do ser humano. Um sentimento, não no sentido sentimentalista mas no sentido neurobiológico do termo, um sentimento muito subtil, uma espécie de brisa mágica perpassando pela nossa mente, uma essencialidade rítmica e harmoniosa da vida, provavelmente de uma neuronalidade muito específica e delicada, quase uma ascese ética e estética que nos transporta à mais nobre e sublime expressão da realidade, através das mais impressivas, expressivas e sugestivas formas da nossa linguagem. Eu penso que a sua arte reside na combinação da palavra justa com a adequada sensibilidade e energia sinestésica que fazem o poema acordar. A poesia não é uma emoção porque a emoção não é consciente, embora a emoção poética seja o caminho obrigatório e quase instantâneo para o sentimento, o sentimento poético, esse sim, consciente. Não é, contudo, um sentimento de cópia da realidade mas de simbolização, a evocação e a invocação ao mais alto nível, da beleza e da nobreza da realidade. O fenómeno poético poderá ser entendido como uma harmonia verbal e mental em que todos os materiais fonéticos e simbólicos se fundem num resultado de suprema fruição estética para quem o vive de forma profunda. O chamado poema, considerado a matriz literária onde habitualmente nasce e germina a poesia, pode até ser estéril, pode não passar de uma espécie de andaimes da construção poética, ou ser mesmo a negação da poesia. A poesia, o sentimento poético percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, podendo mesmo ter uma presença mais viva num texto em prosa do que num poema, ou ser muito mais sentida numa pintura ou numa peça de música do que em qualquer forma de expressão literária. Por isso, em minha opinião, qualquer forma de expressão artística, qualquer obra de arte só o é se contiver dentro de si a poesia do sentimento artístico, o sentimento poético.
Daniel Barenboim dizia que a música não é o som. De facto, todos sabemos que a música se exprime através do som, mas o som, em si mesmo, não é música, é apenas o meio físico através do qual é possível transmitir a mensagem mental da música. Todos conhecemos as notas musicais, todos somos capazes de as dedilhar nas teclas de um piano, mas daí a gerar um sentimento poético e artístico musical vai um abismo. Todos conhecemos as letras e as palavras, todos somos capazes de as juntar e com elas comunicar, de forma primária ou erudita, mas daí a criar arte literária ou sentimento poético vai um abismo. Criar poesia pode não ser apenas entrelaçar palavras dentro de uma construção ou estrutura chamada poema, pode não ser encastelar versos uns em cima dos outros, fazer frases labirínticas que ninguém entende, engendrar rimas e outras coisas que não passam, muitas vezes, de execuções sumárias da poesia. Assim sendo, a poesia pertence á nossa área neuronal, à esfera das emoções, sentimentos, consciência e afectos. Ao fim de uma vida de interrogações e reflexões, eu posso dizer que encontrei as minhas verdades, que sempre o serão até me provarem e convencerem de que o não são, o que não tem acontecido. Para quem, como eu, materialista convicto, não aceita qualquer dualismo corpo-espírito mas apenas o todo uno e indivisível do ser humano, essas verdades ou pelo menos algumas delas até poderão ser a Verdade.
Todos nós possuímos no nosso cérebro o mesmo esquema neural de um sentimento, já que é o esquema neural da nossa espécie. Mas o padrão neural desse sentimento que vai encaixar no nosso esquema neural é diferente em cada um de nós. Todos, de uma maneira geral, temos o mesmo esquema de vida. Todos nos levantamos, todos tomamos banho, vamos para o trabalho, andamos de carro, fazemos férias, todos rimos e choramos, mas as nossas vidas, os nossos padrões de vida podem ser muito diferentes, desde a simples camisa à profundidade do nosso íntimo. Os sentimentos não se constroem, não aparecem nem se manifestam aleatoriamente de um dia para o outro. Além disso, os sentimentos são o resultado de uma infinidade de factores que interagem entre si e os tornam tão intimamente ligados que só de forma artificial e académica tentamos separá-los e individualizá-los. Todos nós nascemos, como disse, com os esquemas neurais dos sentimentos da nossa espécie. Mas assentes nesse terreno genético, cada um de nós vai criando os padrões dos seus próprios sentimentos, através de uma curva de vivência e aprendizagem de uma vida inteira. Uma pessoa que tenha tido uma vida repleta de amor, que tenha vivenciado o amor na sua plenitude, adquire um padrão do sentimento do amor muito diferente do sentimento do amor de uma pessoa que nunca amou ou nunca foi amada. Uma pessoa que toda a vida viveu na miséria, no meio de agruras e dificuldades de toda a ordem, terá provavelmente um sentimento de carência que pode ser totalmente diferente do sentimento da pessoa que nunca teve dificuldades e viveu toda a vida na abundância. Dentro do nosso esquema neural já haverá, porventura, embriões dos diversos sentimentos que vão nascer connosco, que depois crescem, se desenvolvem e se vivenciam, e que a epigenética vai moldando, construindo, estruturando, apurando e afinando dentro de cada um. Para o bem e para o mal. Assim acontece com o amor, o ódio, a alegria, a tristeza, o medo, a coragem, sentimentos do nosso dia-a-dia. Não acontece tão facilmente, penso eu, com o sentimento poético e o sentimento artístico porque eles, a meu ver, não são vividos nem desenvolvidos pela globalidade das pessoas. Apenas os vivem aqueles que deles sentem necessidade e por eles se sentem atraídos, aqueles que os vão apurando, que os enobrecem e que com eles se habituaram a conviver como metabolitos essenciais da sua vida. Como é óbvio, mesmo assim, de formas diferentes em cada um de nós.
Então, poderemos tentar dizer, cautelosamente, o que será um poeta. Eu penso que ser poeta é, antes de tudo, ser possuidor de um sentimento poético profundo e muito apurado, construído através de uma vivência de amor, atracção e dedicação à poesia, vivendo-a de uma forma indissociável do viver da vida. Mas para além desta aprendizagem de uma vida inteira, creio que é fundamental na construção do sentimento poético uma formação cultural global do ser humano tão sólida quanto possível, uma visão humanística e livre do mundo e das coisas, a par de uma bem estruturada formação ética e estética. Só assim se entende, como parece comprovado através de estudos psicológicos, sociológicos e neurobiológicos, que o sentimento poético e o sentimento artístico enriquecem e enobrecem todos os nossos processos de humanização, criam grandes afinidades com a consciência, aproximam-nos de todos os mecanismos de identificação da verdade, melhoram e purificam todos os outros sentimentos, ajudando-nos no caminho do equilíbrio, da harmonia e da justiça. Penso ainda que muito daquilo que andamos para aqui a fazer e a que chamamos poesia, não passa, tantas vezes, de arremedo, de ilusão e desilusão. E também penso que é um erro pretender que o sentimento poético chegue às pessoas por artes mágicas. Dito por outras palavras, julgo que é um erro pretender levar às pessoas a poesia ou sentimento poético como se de uma actividade lúdica ou de prenda banal se tratasse. Dizia Schiller que o vulgar é tudo aquilo que não desperta outro interesse que não o sensível. A arte e a poesia não podem descer ao puramente sensível, à mera receptividade sensorial, à fugaz captação de estímulos incapazes de serem vividos condignamente nas complexas oficinas neuronais da nossa mente. Não é a poesia e a arte que têm de ir ao encontro das pessoas, não é a poesia e a arte que têm de descer ao comum dos mortais, mas é o ser humano que tem de ascender ao sentimento artístico e poético através de políticas culturais e condições sociais que a todos permitam sentir a necessidade da poesia e da arte como um elemento essencial da vida.

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por Augusta Clara às 00:25

Quinta-feira, 03.06.21

O Quadro - Eva Cruz

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Eva Cruz  O Quadro

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(Adão Cruz)

   Terminado o almoço na sala requintadamente sóbria, ficaria na memória a vitela de Lafões e as batatinhas lustrosas de cor aloirada que o forno de lenha pintou. Um café na pastelaria dos “vouguinhas”, o seu orgulho de fabrico diário, despertou a caminhada pelas margens verdes do rio, onde cada pássaro exibia o seu gorjeio, e cada pato mostrava a sua perícia, cortando em leque as águas profundas. Outros espreguiçavam-se nas margens, enchendo a relva de várias cores. No meio do rio, perfurando o ar, um grande jacto de água brincava com o sol formando um arco-íris. O mesmo arco-íris que coroava a serra em tantos Maios da nossa infância.

Mais adiante uma placa indicando o Condado de Beirós. A seta assinalava o caminho já varrido da memória, e a cor parecia indicar o interesse de uma visita.

- Lembras-te da exposição de pintura no Condado de Beirós, há mais ou menos vinte anos, a minha maior exposição individual, com várias salas, corredores e claustros cheios?

- Claro que sim, então não havia de recordar! Com tanta gente que ali acorreu, vinda de todos os lados. Um rol de nomes, amigos e conhecidos, alguns que ainda lembro com saudade e a voz enternecida, muitos deles já saídos deste mundo e da lembrança!

Algo emergiu das entranhas do passado que nos obrigou a pegar no carro e seguir o caminho de outrora à procura do Condado. E foi em busca de alguns eventuais restos que subimos o monte, entramos no portão da quinta e encontrámos, com surpresa, o velho solar quase intacto, o branco da cal um tanto desbotado, a pedra escurecida, a natureza em volta bem tratada, e uma bela piscina, no meio de um campo relvado. Em volta da casa muitos carros velhos, enferrujados, incluindo um Maserati a desfazer-se. Lembrámo-nos, então, que em tempos o dono tinha uma paixão especial por carros antigos.

A porta do solar estava aberta. Bati e voltei a bater com toda a força, chamei e voltei a chamar por alguém, e como não obtive qualquer resposta ou perturbação daquele silêncio, entrei. Tudo impecavelmente arranjado e decorado, nas paredes muitos quadros, retratos antigos, bonitos móveis, tudo bem tratado e asseado. Não havia dúvidas de que estava habitado e aberto ao público…que não existia, mas que o desconfinamento haveria, muito provavelmente, de voltar a trazer. Subi o primeiro lance de escadas tapetado com passadeira vermelha, depois outro igual virando à direita. No topo da escadaria de pedra boleada, em lugar de honra, um quadro com moldura dourada prendeu a minha atenção. Só poderia ser, não tinha dúvidas. Chamei o meu irmão que de imediato confirmou que aquela pintura era sua. Lá estava o seu nome e a data 2002.

 

 

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por Augusta Clara às 20:44

Segunda-feira, 03.05.21

O velho eléctrico - Eva Cruz

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Eva Cruz  O velho eléctrico

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   O rio, junto à Foz, é quase um lago de águas paradas. Não tem a cor do ouro que lhe dá o nome, antes reflecte o azul do céu e do mar que ali o espera um pouco mais à frente para o abraço final. A remos ou à vela por lá deslizam barcos e barquinhos ao sabor da brisa leve desta luminosa primavera. Centenas de gaivotas, algumas garças, patos bravos, corvos marinhos, os habituais donos destas margens espreguiçam-se ao sol, ou dançam no ar em voos suaves, ou se lançam em corridas quase rasantes sobre as águas. Os corvos marinhos alinhados no que resta de terra na maré cheia, abrem as asas a todo o pano para receberem o sol que as vai secando. É Domingo. A correr e a caminhar, ao ritmo das forças de cada um, toda a gente saiu de casa em busca do sol e da liberdade que entrou de rompante pelas portas do desconfinamento.
Amarelo de sempre, por vezes esverdeado ou pintalgado de modernice, arrastado de tempo e de memórias, lá vai e vem o eléctrico gemendo sobre a linha ao longo da margem, levando a Ribeira até à Foz, e trazendo de volta o romântico Passeio Alegre com a sua alameda de palmeiras e as lindas casas da Foz Velha. A linha 1, uma das três linhas sobreviventes de entre muitas, juntamente com a linha 18, de Massarelos à Cordoaria, e a 22 entre o Carmo e a Batalha. Pequenos restos do século XIX que teimam em não se desgarrar de um velho Porto que é só memória e saudade.
Nos meus tempos de menina de Liceu, sempre foi o eléctrico a levar-me onde eu queria. E mesmo nos tempos de minha mãe que viveu a sua juventude entre Gaia e Porto, assim teria sido também, pois lembro-me de ela ter falado no eléctrico, aquando de um acidente na Rua 31 de Janeiro, em que o guarda-freios não conseguiu travá-lo e ele veio desenfreado e de escantilhão até à Baixa.
Sentei-me ao sol num dos muitos bancos que seguem a margem desde a Cantareira ao Cais do Ouro, e lembrei-me do livro de Tennessee Williams “A Street Car named Desire” ( Um Eléctrico chamado Desejo). Nada tem a ver com este eléctrico que geme atrás de mim, mas levou-me a desnudar uma espécie de nostálgica reminiscência do passado que, serenamente, criou em mim algum disfarce da desilusão e alguma fantasia que me permitiu esquecer por momentos a realidade da velhice.

 

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por Augusta Clara às 20:25



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