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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Jorge Luís Borges Um livro
(Maria Helena Vieira da Silva)
Apenas uma coisa entre outras coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
O som, a fúria, a noite e o escarlate.
A minha mão sopesa-a. Quem diria
Que contém o inferno: essas barbudas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as duras leis da sombra,
O delicado ar desse castelo
Que te verá morrer, a delicada
Mão que é capaz de ensanguentar os mares,
O clamor e a espada da batalha.
Esse tumulto silencioso dorme
No espaço de um só livro, na tranquila
Prateleira da estante. Dorme e espera.
(in História da Noite, Obras Completas, Teorema)
Jorge Luís Borges A um gato
Lembrando um companheiro de 18 anos que partiu ontem e me deixa uma grande saudade, o meu gato Miki
Os espelhos não são mais silenciosos
Nem mais furtiva a alba aventureira;
Tu és, sob o luar, essa pantera
que só vemos de longe, receosos.
Por obra indecifrável de um decreto
De Deus, te procuramos futilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
É teu o isolamento mais secreto.
O teu dorso condescende com a morosa
Carícia desta mão. Admitiste,
Desde essa eternidade que é o triste
Esquecimento, o amor da mão medrosa.
Existes noutro tempo. E és o dono
De um domínio fechado como um sono.
(in Jorge Luis Borges, "O Ouro dos Tigres", trad, de Fernando Pinto do Amaral)
Jorge Luís Borges Os justos
(Agnes Laczo)
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia....
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
Jorge Luís Borges A Johannes Brahms
(Gustav Klimt)
Eu, que sou um intruso nos jardins
Que tu legaste à plural memória
Do porvir, desejei cantar a glória
Que sobe prò azul nos teus violinos.
Agora desisti. Para honrar-te
Não basta essa miséria a que outra gente
Chama sempre com vacuidade a arte.
Quem te honrar há-de ser claro e valente.
Sou um cobarde. Sou um triste. Nada
Poderá justificar esta ousadia
De cantar a magnífica alegria
— Fogo e cristal — dessa alma apaixonada.
Meu cativeiro é a palavra impura,
Vergôntea de um conceito e de um ruído;
Nem símbolo, nem espelho, nem gemido,
Teu é o rio que foge e que perdura.
(in Obras Completas, Vol. III, Teorema)
Jorge Luís Borges A fome
(Adão Cruz)
Mãe antiga e atroz da incestuosa guerra,
Que se apague o teu nome da face da terra.
Tu, que lançaste ao círculo do horizonte aberto
Altas proas dos viquingues, lanças do deserto.
Numa Torre da Fome de Ugolino de Pisa
Tens o teu monumento e na estrofe concisa
Que nos deixa entrever (só entrever) os dias
Últimos e na sombra que cai agonias.
Tu, que de alguns pinhais fazes que surja o lobo
E que guiaste a mão de Jean Valjean ao roubo.
Uma das tuas imagens é o silencioso
Deus que devora o mundo sem ira ou repouso,
O tempo. Há outra deusa de trevas e de ossos;
Seu leito é a vigília e seu pão é a fome.
Tu, que a Chatterton deste a morte na janela
Entre os códices falsos e a lua amarela.
Tu, que entre o nascimento do homem e a agonia
Pedes em oração o pão de cada dia.
Tu, cuja lenta espada rói as gerações
E sobre tantas nucas lanças os leões.
Mãe antiga e atroz da incestuosa guerra,
Que se apague o teu nome da face da terra.
(in Obras Completas, Vol. II, Teorema)
Jorge Luís Borges A chuva
(Joseph Sudek)
Está de súbito o dia clareado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.
Quem a ouve cair vê recuperado
Esse tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor chamada rosa,
E a curiosa cor do encarnado.
Esta chuva que vai cegando os vidros
Alegrará em arredores perdidos
As uvas de uma parra em certo horto
Ou pátio já esquecido. Esta molhada
Tarde me traz a voz, voz desejada
Do meu pai que regressa e não está morto.
(in Obras Completas, Vol. II, Teorema)
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...