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Jardim das Delícias



Quarta-feira, 28.05.14

Uma Espanha e outra - João de Melo

 

João de Melo  Uma Espanha e outra

 

 

   Entender a Espanha de hoje exige algum exercício de imaginação. Devemos fazê-lo por amor, sem preconceitos e com conhecimento de causa. Aprendi a amar a Espanha desde o dia em que me foi inevitável concluir que ela estava dentro de mim. Na cabeça e no corpo da minha portugalidade. Não quero deter-me na falsa mitologia histórica que me foi imposta pela ideologia anti-castelhana do passado, nem pela visão patriótica de “Os Lusíadas”. Prefiro pensá-la como milagre económico, país inventado e unido sob várias dimensões regionais, Estado de países, povos e línguas oficiais que por milagre coexistem e se mantêm íntegros.
  Há imagens que ajudam a compreender essa Espanha intrínseca, não a que vemos no mapa. A das caixinhas chinesas e a das “matrioscas” russas são algumas delas. Trata-se de uma entidade matriarcal, espécie de gravidez no limite de si mesma; onde o fim da união espanhola pode também anunciar o princípio da sua desagregação. Dito de outro modo: a Espanha compõe-se de paradoxos que só a sua admirável Constituição consegue explicar no todo e na parte; levou ao limite extremo o paradigma das suas autonomias regionais, pondo-as na antecâmara da independência. Cada Comunidade Autónoma tem o seu governo, parlamento, municípios, largas competências políticas e administrativas, um poder reivindicativo sem par noutros modelos de regionalização. Eis um dos segredos da sua unidade. O outro, mais forte e mais pragmático, reside no facto de essa união representar um mercado e uma garantia de futuro interno e externo.
  Santos Juliá, num livro admirável (“Historias de las dos Españas”), fala de um país em duplo, duas gémeas não siamesas, mas diferentes, que vêm do passado e convivem mal num presente comum. Quais duas Espanhas? Uma, a do espírito, culta e democrática, humanista e aberta ao exterior; outra, o oposto: tão conservadora quanto autista, altiva e arrogante tanto na civilização como na barbárie. É impossível pormenorizar uma obra tão fascinante como a de Juliá. Mas a teoria sobre a existência de duas, e não de uma só Espanha, leva-nos a ter de perguntar muito mais do que a teorizar sobre ela. A minha paixão espanhola é essencialmente interrogativa. Uma República presidida por uma Monarquia? Ibérica, Europeia? “Espanhola” porque “castelhana?” Politicamente à direita ou à esquerda? Qual delas triunfou (moralmente, politicamente) na Guerra Civil, a franquista ou a republicana? Quem escreveu a sua história recente – os vencedores ou os vencidos dessa guerra?
  Interrogar é uma necessidade natural para quem ousa compreender aquilo que ama. O meu caso está no ponto de encontro do amor com a ânsia do conhecimento do espírito espanhol, onde eu não me importaria de me perder, de me diluir no seu povo alegre, positivo, capaz de se indignar por uma mentira ou um decreto político; viver no meio do património monumental da grande e nobre Espanha, sob a ordem dos seus mestres, das suas vanguardas artísticas, à sombra das catedrais de Sevilha, Saragoça, Barcelona, Compostela e Burgos, nos seus museus de tudo e em toda a parte, na vida vibrante das “calles” e das “copas y tapas”. E embarcar por fim nesta evidência: se nunca ouvi a um Português dizer-se europeu, menos ainda aos Espanhóis. Eles limitam-se a olhar para o “país vecino” (não o nosso, mas sim a França) e a nela resumir a sua ideia de Europa.
(13.05.2014)
(Texto publicado no DN de domingo passado, disseram-me. Mas eu não vi, paciência!).
 

 

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por Augusta Clara às 15:00




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