Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
A Feira do Livro de Lisboa abre hoje ;)
António Lobo Antunes A Feira do Livro
A Feira do Livro é estar sentado debaixo de um guarda-sol às listras a dar autógrafos e a comer os gelados que a minha filha Isabel me vai trazendo de uma barraquinha três editoras adiante, preocupada com as atribulações de um pai suado, de repente da idade dela, a escrever dedicatórias, de língua de fora, numa aplicação escolar. Isto não é uma queixa: gosto das pessoas, gosto que me leiam, gosto sobretudo de conhecer as pessoas que me lêem e me ajudam a sentir que não lanço ao acaso do mar garrafas com mensagens corsárias que se não sabe onde vão ter, e gosto dos romances que escrevi. Tenho orgulho neles e tenho orgulho em mim por ter sido capaz de os fazer. De modo que ali estou, satisfeito e tímido, acompanhado pelo Nelson de Matos que me pastoreia com paciência, com uma placa com o meu nome e as capas em leque à minha frente, um pouco com a sensação de vender biiuterias marroquinas nos túneis do Metropolitano do Marquês ou fatos de treino fosforescentes na Feira do Relógio, que os leitores folheiam, compram, me estendem para o selo branco, e eu em lugar de lhes explicar obsequioso e seguro que os livros não desbotam nem encolhem na máquina limito-me por falta de vocação cigana a pôr a etiqueta lá dentro
(Deus sabe o que me apetece às vezes assinar Hermès ou Valentino)
e a devolvê-los com o sorriso lojista de quem garante qualidade e boa malha. Como nos saldos da Avenida de Roma acontece de tudo: é o senhor de meia-idade e olhinho alcoviteiro que abre Os Cus de Judas, o folheia com curiosidade primeiro e com desilusão depois e se afasta a desabafar para um sócio de unha guitarrista
— Bolas nem sequer traz fotografias
é o rapaz de cabelo amestrado a gel e crocodilo no mamilo, como dizia o Alexandre, que pergunta numa piscadela cúmplice
— Já agora qual é o que tem mais curtições assim cenas de cama está a perceber?
é a tia virtuosa, de sapatos tipo caixa de violino, preocupada com a educação dos sobrinhos, essas tias que se oferecem sempre para os levar a fazer chichi, que me observa com severidade apostólica
— O que devo comprar para a minha afilhada coitadinha que fez anteontem a primeira comunhão?
é o autoritário que espeta o dedo na página e ordena em voz de furriel
— Ora meta aí: para a Fernanda no seu trigésimo oitavo aniversário com os melhores votos de felicidades e agora enfie o seu apelido
é o que fica a seguir, desconfiadíssimo, o aviar da receita, inclinado para diante de mãos nos bolsos do rabo, e me corrige ultrajado
— Elizabeth é com th você tem alguma coisa contra as Elizabeths ou não é escritor?
Às sete da tarde levanto a tenda. O letreiro com o meu nome desaparece, desaparecem os livros e como por felicidade não moro em Loures nem na Damaia de Cima tenho tempo de celebrar com a Isabel o fim dos saldos lambendo um último gelado. Sentamo-nos na relva como um par de namorados e seguimos à distância os outros vendedores de bijuterias marroquinas ou de fatos de treino fosforescentes a autenticarem os seus produtos num afã de balconista enquanto nós dividimos os Almanaques do tio Patinhas comprados numa prateleira dedicada às leituras difíceis e cujos títulos me encantam: Psicanalise-se A Si Mesmo, Como Enriquecer Sem Sair De Casa, A Vida Sexual De Adolfo Hitler, Dez Cegos Célebres, A Cura Do Cancro Do Útero Pelo Método Espírita. Um bêbedo ao pé de nós ressona como um motor a dois tempos sobressaltos de motorizada. O céu enche-se de nuvens Magritte. Proponho à minha filha uma corrida até ao automóvel e o último a chegar é maricas. No carro ao lado do nosso o autoritário da Fernanda descompõe a dita: tem uma mascote no retrovisor, duas no vidro traseiro, o autocolante de uma menina de chapéu no guarda-lamas, e interrompe-se para a informar
— Aquele é que é o gajo que escreveu o livro.
A Fernanda, toda transparências e folhos, lança-me um rímel distraído do alto da sua opulência glandular e a Isabel que lhe apanhou a indiferença e o soslaio em pleno voo aconselha-me com pena de mim a caminho do hamburger do jantar
— Depois disto tudo eu achava melhor o pai não ser escritor.
(in António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, Dom Quixote)
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.