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Jardim das Delícias



Quinta-feira, 23.05.13

A Feira do Livro - António Lobo Antunes

 

A Feira do Livro de Lisboa abre hoje ;)

 

António Lobo Antunes  A Feira do Livro

 

 

   A Feira do Livro é estar sentado debaixo de um guarda-sol às listras a dar autógrafos e a comer os gelados que a minha filha Isabel me vai trazendo de uma barraquinha três editoras adiante, preocupada com as atribulações de um pai suado, de repente da idade dela, a escrever dedicatórias, de língua de fora, numa apli­cação escolar. Isto não é uma queixa: gosto das pessoas, gosto que me leiam, gosto sobretudo de conhecer as pessoas que me lêem e me ajudam a sentir que não lanço ao acaso do mar garrafas com mensagens corsárias que se não sabe onde vão ter, e gosto dos romances que escrevi. Tenho orgulho neles e tenho orgulho em mim por ter sido capaz de os fazer. De modo que ali estou, satis­feito e tímido, acompanhado pelo Nelson de Matos que me pastoreia com paciência, com uma placa com o meu nome e as capas em leque à minha frente, um pouco com a sensação de vender biiuterias marroquinas nos túneis do Metropolitano do Marquês ou fatos de treino fosforescentes na Feira do Relógio, que os leitores folheiam, compram, me estendem para o selo branco, e eu em lugar de lhes explicar obsequioso e seguro que os livros não desbotam nem encolhem na máquina limito-me por falta de vo­cação cigana a pôr a etiqueta lá dentro

(Deus sabe o que me apetece às vezes assinar Hermès ou Valentino)

e a devolvê-los com o sorriso lojista de quem garante qualidade e boa malha. Como nos saldos da Avenida de Roma acontece de tudo: é o senhor de meia-idade e olhinho alcoviteiro que abre Os Cus de Judas, o folheia com curiosidade primeiro e com desilusão depois e se afasta a desabafar para um sócio de unha guitarrista

— Bolas nem sequer traz fotografias

é o rapaz de cabelo amestrado a gel e crocodilo no mamilo, como dizia o Alexandre, que pergunta numa piscadela cúmplice

—  Já agora qual é o que tem mais curtições assim cenas de cama está a perceber?

é a tia virtuosa, de sapatos tipo caixa de violino, preocupada com a educação dos sobrinhos, essas tias que se oferecem sem­pre para os levar a fazer chichi, que me observa com severidade apostólica

—  O que devo comprar para a minha afilhada coitadinha que fez anteontem a primeira comunhão?

é o autoritário que espeta o dedo na página e ordena em voz de furriel

—  Ora meta aí: para a Fernanda no seu trigésimo oitavo aniversário com os melhores votos de felicidades e agora enfie o seu apelido

é o que fica a seguir, desconfiadíssimo, o aviar da receita, inclinado para diante de mãos nos bolsos do rabo, e me corrige ultrajado

—  Elizabeth é com th você tem alguma coisa contra as Elizabeths ou não é escritor?

Às sete da tarde levanto a tenda. O letreiro com o meu nome desaparece, desaparecem os livros e como por felicidade não moro em Loures nem na Damaia de Cima tenho tempo de cele­brar com a Isabel o fim dos saldos lambendo um último gelado. Sentamo-nos na relva como um par de namorados e seguimos à distância os outros vendedores de bijuterias marroquinas ou de fatos de treino fosforescentes a autenticarem os seus produtos num afã de balconista enquanto nós dividimos os Almanaques do tio Patinhas comprados numa prateleira dedicada às leituras difíceis e cujos títulos me encantam: Psicanalise-se A Si Mesmo, Como Enriquecer Sem Sair De Casa, A Vida Sexual De Adolfo Hitler, Dez Cegos Célebres, A Cura Do Cancro Do Útero Pelo Método Espírita. Um bêbedo ao pé de nós ressona como um motor a dois tempos sobressaltos de motorizada. O céu enche-se de nuvens Magritte. Proponho à minha filha uma corrida até ao automóvel e o último a chegar é maricas. No carro ao lado do nosso o autoritário da Fernanda descompõe a dita: tem uma mascote no retrovisor, duas no vidro traseiro, o autocolante de uma menina de chapéu no guarda-lamas, e interrompe-se para a informar

—  Aquele é que é o gajo que escreveu o livro.

A Fernanda, toda transparências e folhos, lança-me um rímel distraído do alto da sua opulência glandular e a Isabel que lhe apanhou a indiferença e o soslaio em pleno voo aconselha-me com pena de mim a caminho do hamburger do jantar

—  Depois disto tudo eu achava melhor o pai não ser escritor.

 

(in António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, Dom Quixote)

 

 

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por Augusta Clara às 14:00


4 comentários

De Augusta Clara a 23.05.2013 às 15:35

Uma deliciosa crónica de António Lobo Antunes no seu melhor.

De Beatriz Santos a 24.05.2013 às 00:20

hummmm....já me foi dado observar o senhor a dar autógrafos e é bem diferente do que diz. Já não leva a filha, ninguém se lhe põe à frente com as mãos nos bolsos de trás das calças e não come gelados. Pelo menos que eu tenha visto:) Pode ser que ainda se sente na relva depois da sessão.

As suas filas são enormes, ele faz que não dá por isso e as pessoas, estão horas à espera, mas são todas muito acarinhadas, isto não sou eu a dizer, quer dizer, sou, mas pela boca de uma mulher a dias da feira, que estava ali os dias todos das sessões e me garantiu que (era brasileira) é o cara mais bacana di todos, leva um tempão com cada pêssoa. Vali a pena cê espêrá - e rematou - simpatchiquinho ele, não? e lá foi de bata e pano do pó não sei para onde, pensava que não se limpava pó nas feiras. E eu na fila à espera da minha vez com Deus Nosso Senhor disfarçado de escritor que usa aparelho no ouvido.
Constatei que respeita bastante os leitores. Mas é um fiteiro. Nem sempre, mas é.

De Augusta Clara a 24.05.2013 às 00:40

Ahahahaha ! Essa foi boa, Beatriz. Este texto é do primeiro livro de crónicas dele. Eu tenho quatro e julgo que está outro para sair. Por isso, já não tem a filha a comprar-lhe gelados.:)))

De Beatriz Santos a 24.05.2013 às 12:57

devo ter esse livro de crónicas, tenho seguramente. o próximo não compro que o recortei das visões todas :)

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