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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Nuno Júdice Cristo e Madalena
(Adão Cruz)
No museu de Helsínquia, uma arrependida madalena
atira-se aos pés de um cristo mais humano do que
é habitual. Talvez por isso os olhos de madalena
procuram os olhos de cristo, e uma hipótese de
sorriso (ou será ironia?) abre-se nos lábios dele,
mais húmidos do que o habitual. Ao contrário de
quadros antigos, com a mesma madalena e o mesmo
cristo, esta tem uma fita a prender os louros
cabelos, veste um casaco de veludo, e o peito
apenas se deixa adivinhar sob uma camisa branca e
jóias de boa qualidade. Ali, no museu de helsínquia, é
normal que esta situação não siga os modelos
canónicos: o norte não é um lugar para excessos, para
tragédias, e tanto madalena como cristo fazem bem
em comportarem-se como burgueses. De facto, o cristo de
sandálias, que estende a mão à madalena de edelfeldt,
até lhe fala com um ar desprendido, como se comentasse
o tempo. Por outro lado, tudo se passa à beira de um
lago, a não ser que o que se vê seja um braço
do mar báltico, como é frequente nesta região: e
para que haveria o pintor de imaginar cenários
exóticos, quando o que interessa é dar um
fundo compreensível (perceptível) ao mistério que
envolve esta cena. De facto, por que haveria cristo
de perder tempo com uma pecadora? A não ser que ela
usasse argumentos fortes na sua discussão, mais fortes
do que o banal arrependimento que, nestas situações,
não parece das coisas mais consistentes. Sim: que
desgosto de amor o terá provocado?, que conflito de
cama, que suspeita de doença, que súbito cansaço
na vida de bordel? Nada que o tempo não possa curar...
a não ser que esta troca de olhares, à luz do sol,
se prolongue para lá das árvores, do céu que se
reflecte na água, da dureza das pedras em que
os seus joelhos se magoam, mesmo que o chão esteja
coberto das folhas mortas do outono. Então,
deixo-os sozinhos. Há conversas que não se podem
interromper, segredos que não se devem desvendar.
(in Teoria Geral do Sentimento, Quetzal)
Nuno Júdice “Me obligo a escribir todos los días, como un oficinista”
(entrevista ao suplemento Cultura do El País em 27/11)
El escritor portugués Nuno Júdice posa en un parque de Lisboa, Portugal, el 18 de noviembre del 2013. / Francisco Seco
Nuno Júdice nació en 1949 en Mexilhoeira Grande, en el Algarve, y se aficionó a la poesía, antes de leer, oyendo a los actores portugueses recitar en la radio en su pueblo en los cincuenta. Después saqueó la biblioteca familiar y más tarde descubrió con asombro el verso libre de Álvaro de Campos, uno de los heterónimos de Pessoa. De ahí no salió. Publicó su primer libro de poesía, A Noção de Poema,en 1972. Desde entonces ha escrito, a un ritmo constante y espectacular, más de 30 volúmenes poéticos, una decena de novelas, otra de ensayos y cuatro obras de teatro. Concibe el escribir como un trabajo y cada tarde, cuando ha terminado las clases de Literatura en la universidad y los artículos que le dan de comer, se sienta a una mesa silenciosa de su casa de Lisboa y se pone a trabajar, solo, feliz. Habla poco, siempre en voz baja. Es tímido. Hoy recibe el de manos de Doña Sofía el XXII Premio Reina Sofía de Poesía Iberoamericana y se publica su antología poética Devastación de sílabas, con selección e introducción de Pedro Serra y traducción de José Luis Puerto (editada por Universidad de Salamanca y Patrimonio Nacional)
Pregunta. ¿Es difícil ser poeta y catedrático de Literatura?
Respuesta. Hay países en los que esa coexistencia es difícil, como en Francia, donde los poetas universitarios, por así decir, no son vistos como “auténticos”. En Portugal, curiosamente, los grandes del XX fueron profesores de Literatura, como Jorge de Sena. A mí me obliga a convivir con la literatura. Aunque muchas veces evito enseñar poesía a fin de no tener que desarmar los poemas en clase para verles las costuras.
P.¿Es verdad que Portugal es tierra de grandes poetas y no tan grandes novelistas?
R. Eso procede, por un lado, de que hasta hace pocos años, solo Luís de Camões y Pessoa, dos poetas, habían salvado las fronteras. Solo Saramago lo ha vuelto a hacer recientemente. Y también de la idea romántica de que la poesía y la saudade caracterizan nuestra identidad.
P. Hay quien añade a esa esencia portuguesa la resignación.
R.Tiene que ver con dos hechos históricos: la Inquisición, que duró tres siglos, y la dictadura, que duró 50 años. Ambos marcaron negativamente la creatividad. Aunque creo que las generaciones más jóvenes se comportan de un modo diferente.
P. Pero usted ha dicho que los portugueses han sido muy tolerantes con esta crisis…
R. Aludía a esa resignación, pero también al hecho de que Europa ha sido durante muchos años el sueño portugués y ahora nos es difícil liberarnos de esa utopía.
P. ¿Y qué debe hacer la literatura frente a todo esto?
R. La literatura portuguesa siempre tuvo que ver con la evolución social del país. Se echa de menos eso. La literatura es la mejor manera de que perduren determinados hechos.
P. Pero los periódicos se encargan de consignarlos.
R. Sí, pero la literatura da una visión personal, subjetiva. Problematiza un acontecimiento, va más allá del registro documental.
P. ¿Y la poesía? ¿Cómo influye esta realidad apabullante que se vive hoy en Portugal?
R. Yo crecí con la dictadura. Y existió, antes de mi generación, una poesía militante, muy política. Nosotros reaccionamos contra eso. Pensábamos que una poesía que nacía en una circunstancia política perdería el sentido una vez desaparecida. Por eso mi poesía, siempre ha tratado de ser algo más universal. Aunque, bueno, es evidente que la realidad tiene que pasar por ahí. Pero siempre busco que el poema trascienda ese puro hecho que lo inspiró.
P. ¿Y por qué tantos poemas sobre la poesía misma?
R. Eso siempre ha estado en mí. Por lo menos hasta el final de los años ochenta. Después mudé algo. Pero siempre me he interrogado sobre qué es un poema, entendiendo como poema ese objeto vivo que perdura en la mente del lector. La poesía que muere una vez leída, esa poesía seca, formal, es un objeto interesante, pero no pasa de eso. El poema tiene que dirigirse al lector como algo esencial y transformarlo, hacerle ver las cosas de otra forma.
P. ¿Cómo decide escribir poesía o novela?
R. Por lo general escribo siempre poesía. Es mi actividad más constante. La novela necesita una historia, un punto de partida con el que seguir. Y, por ejemplo, ahora no tengo ninguno. La novela no es en mí algo natural. En el fondo, en mis novelas hablo de cosas que conozco, son una suerte de memoria ficcionada, de diario novelesco.
P. ¿Cómo consigue escribir tantos libros de poesía?
R. Me obligo a escribir todos los días, como un oficinista. Escribir es mi vida. Me gusta hacerlo, no vivo de eso, pero es mi manera de ser.
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Boaventura de Sousa Santos Décima carta às esquerdas: Democracia ou Capitalismo?
Depois de um século de lutas que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro grave desperdiçar essa experiência.
Publicado em Carta Maior em 26 de Novembro de 2013
No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.
Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.
Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referencia ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.
O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.
Adão Cruz O Sonho
(Adão Cruz)
O sonho
acesso do silêncio ao dilatado vento da palavra o direito da
sombra na luz de todas as cores
O sonho
doce caminho dos lábios perfumados de alheias maçãs a voz
que ha‑de voar quando se calarem as asas
O sonho
canção intemporal que dá razão à loucura a sede de todas as
fontes a água de toda a secura
O sonho
vento leve e sensual tocado de algas e maresia adormecido o
pensamento na doce cama da fantasia
O sonho
uma flor a sorrir no outro lado do rio onde as quebras do
silêncio dão voz ao melro vadio
O sonho
os barcos que chegam tarde carregados de vinho amargo a
esperança de todo o tempo sem outro tempo de esperar
O sonho
mar derramado na areia fina beijando o corpo feito casa a
paz da tarde adormecida sem corpo para morar
O sonho
mão apertada ao escudo da liberdade ameaçada o sonho
tempo perdido tempo de sonho e de nada
O sonho
flor de orvalho colhida no seio efémero da madrugada o
silêncio da canção perdida no beijo da noite atraiçoada
(in Adão Cruz, VAI O RIO NO ESTUÁRIO. Poemas de braços abertos, ediçõesengenho)
Carlos Esperança Verão
- Crónica de fim de semana -
A tarde cálida suga-me as forças. Mergulho no jornal, à sombra das videiras do quintal, e ali fico a percorrer notícias de incêndios, assaltos e acidentes.
Olho as videiras que me dão sombra. Já cá estavam quando nasci. E vão ficar, cada vez mais velhas e podres, nos anos que vierem. As uvas, que orgulhavam os avós, estão agora cheias de moléstias que não deixam crescer os bagos. Têm falta de calda, é um crime, dizem as visitas, o senhor é um desleixado, mas eu já não herdei o saber de as tratar nem o gosto de aprender. Sou da geração que apenas soube esbanjar o que ficou e o que devia legar.
Sem me dar conta estou no lugar que o meu pai ocupava quando as forças começaram a faltar-lhe. À minha frente está vazio o lugar da minha mãe que aos oitenta anos colocou Saramago no seu devocionário e começou a devorar-lhe os livros com a pressa de quem sabe que escasseia o tempo.
Os anos vão passando. Não sei por que razão regresso onde fui feliz, onde estes espaços sempre foram reservados, para sofrer com o lugar que ora me cabe. A vida é um privilégio que rapidamente se esgota e a morte uma injustiça irreversível.
Numa rua próxima passa a procissão. Ainda vem gente para sacudir o pó aos santos e levá-los a laurear pela vila por entre cânticos, orações e foguetes. Não sei o que pensam as pessoas que seguem o arcipreste e as que lhe seguram o pálio, nem que sentido tem a custódia erguida para o céu que abandonou as gentes e as aldeias que esperam o sumiço da última geração dos lugares onde nasceu.
Apesar da exuberância do Verão, o equinócio virá aí com as folhas a tecerem a manta morta que cobre os campos e o Outono da vida esgota-se aos que ficaram e vão partindo sem que alguém ocupe o lugar que deixam. Não há herdeiros que reclamem tal herança. Talvez por hábito, ainda volto, de vez em quando, quem sabe se para me deixar apanhar à falsa fé e desaparecer onde surgi.
Deambulo pela vila em busca de gente como náufrago à procura de terra firme. Aguardo o lusco-fusco para que os corpos cansados apareçam em busca da brisa e dos restos de vida que ainda deve haver dentro das casas arruinadas que a autarquia se encarrega de caiar por fora. As lojas continuam abertas, com prateleiras cheias de coisas que ninguém pede, portas à espera de alguém que entre, enquanto os proprietários as não franqueiam para sair. Onde param as pessoas que restam, aquelas que ainda querem tirar da terra a comida que há de faltar?
Definitivamente, não se vê vivalma. Só dentro das casas se encontra gente, as pernas já não aguentam, à espera de familiares que não aparecem. Amanhã é domingo, talvez venham muitos, roídos de saudade e de remorso. Há uma nova procissão, em honra da Senhora da Barca, que conserva a veneração apesar de avara nos milagres e indiferente aos que deixam as terras, a fé e a vida.
O dia nasceu calmo. No lar da Misericórdia os velhos tomam banho e biscoitos no leite da manhã. Alguns já foram avisados dos percalços que retiveram os filhos. Uma velhota cheia de alegria e de lágrimas olhou com orgulho os colegas e gritou, são os meus netos, enquanto se amparava nas muletas em direção ao filho que a viera mostrar. Deram-lhe dose reforçada de insulina, hoje abusará, tem o filho e os netos, vão insistir que coma, terá sobremesa, que lhe faz mal, e a nora que não lhe quer bem.
Esquece as dores reumáticas e as articulações, entra para a parte de trás do automóvel e beija os netos que prosseguem os jogos eletrónicos e perguntam se o almoço demora. Queixa-se a velhota de que os campos estão abandonados, este ano já não apanha a azeitona, perdeu-se a vinha grande, os pastores derrubam as paredes, chegam-lhe ecos de que ninguém respeita os prédio e o monólogo acaba interrompido com a reprimenda azeda da nora, devia ter vendido, queria viver para sempre, agora ninguém lhes pega. Ó mãe, as viagens ficam caras, a vida não está fácil, eu sei meu filho, cada vinda custa mais de duzentos euros, os miúdos faltam à piscina, faltaram aos anos do amigo, lindos meninos que vieram ver a avó, que Deus os abençoe. Reprime as lágrimas e remexe os bolsos a apalpar duas notas de vinte euros que reserva para os netos, não se evaporem.
Depois de pesado silêncio o carro detém-se à porta do restaurante. Os miúdos correm para a entrada, a nora vem abrir a porta à sogra enquanto olha a linha do horizonte e espera o marido para içar a mãe que sai penosamente com o reumatismo, as articulações e a fratura do colo do fémur a cobrarem-lhe a visita.
A refeição é demorada, o serviço é lento, a empregada recita a ementa, não há muito por onde escolher, eu como qualquer coisa, os miúdos exigem bife, batatas fritas e ovo, o pão vai servindo como redutor de ansiedade para o repasto que demora, a nora diz que comia melhor em casa, escusava de percorrer quatrocentos quilómetros e outros tantos que há de fazer no regresso, lá chegam o bacalhau e os bifes, ó mãe beba menos água que lhe faz mal, avó limpe a boca, tanto ruído, a refeição avança, vem mousse de chocolate para todos. Dois cafés e a conta.
Ó mãe, já não passamos lá por casa, vamos deixá-la no lar, eu sei que queria ver as suas coisas, ainda queremos chegar de dia, já nos vimos, sabe como é, cada um gosta de estar na sua casa, ó menina traga-me a conta, da próxima vez vimos de véspera, estamos mais tempo, nem penses, bem sabes que não durmo na casa da tua mãe, o esquentador não funciona, a água sai suja, as camas necessitam de ser mudadas, é boa vontade fazermos oitocentos quilómetros num só dia.
Não tardou a ver-se amparada por uma criada, à porta do lar, enquanto fazia adeus aos netos e o filho abanava o braço esquerdo pela janela do carro em movimento. Procurou o lenço no bolso, trouxe com ele duas notas de vinte euros, ai a minha cabeça, afligiu-se com o descuido, os netos já iam longe e a porta esperava que ela entrasse para se fechar.
Lá estavam os amigos habituais, nenhum indagou como fora o dia, os velhos adivinham os dramas, conhecem as mágoas das visitas, sabem o estorvo que são e contam as horas, cada vez menos felizes, sempre mais pesadas.
Aguardam com ansiedade as visitas que não chegam e, quando o fim-de-semana expira, sentem o alívio de não terem vindo. Para a separação definitiva, nada melhor do que as ausências cada vez mais longas. É a vida. A morte é o ato que ainda falta para rematar a tragédia.
Maria do Rosário Pedreira Os gatos resguardam-se da chuva
(Odi-Sseus)
Os gatos resguardam-se da chuva.
Alguém diz o teu nome à janela,
olhando as aves que partem para o sul.
Há uma memória embaciada de outro outono,
cinzas no pátio,
o cheiro de alguma coisa que morre, mas não dói.
(in A Casa e o Cheiro dos Livros, Gótica)
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