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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Eva Cruz Chega à Serra o Inverno
(Adão Cruz)
Chega à Serra o Inverno
amanhece tarde anoitece cedo.
No caminho novo
canta a gaita do guarda-soleiro
conserta varetas amola tesouras
pedal e roda fazem milagres.
É tempo de apanhar agulhas
que os ventos de Outono
estenderam nos matos.
Pinhas sequinhas
enchem sacos de linhagem
espalham pinhões de asas
pelo chão.
É tempo do frio que se avizinha
tempo de agasalhar o Inverno
que vai abraçar a Serra
num abraço de frio
que Raquel aquece pela vida fora.
Vem na saudade
de muitos Invernos
já não há guarda-soleiros
nem agulhas nem pinhões de asas
anoitece cedo e tarde amanhece
(in Era uma vez, Future Kids, Campo das Letras)
(desenho de Manuel Cruz)
António Lobo Antunes Bom Ano Novo, Senhor Antunes
Agora, que é de noite, o barulho incessante dos carros na auto--estrada. Vão para onde? Uma infinidade de luzes amarelas, faróis distantes, casas reduzidas a sombras com as janelas acesas penduradas do vazio, pontinhos vermelhos a piscarem no alto de um morro e é engraçado porque não existe morro, existem os pontinhos. Lá estão eles, eternos, como esta noite eterna em que o barulho dos carros aumenta. Na Beira são os bichos da terra que oiço, minúsculos, teimosos. O meu editor francês, Christian Bourgois, adoeceu de cancro. Pediu-me que o visitasse e estive uma semana com ele, em Paris. Sofria muito, não podia engolir, quase não podia andar, falava com dificuldade e nem uma queixa. Magro, de cabeça rapada. Nem uma queixa. Disse à mulher
- O teu marido tem imensa coragem
respondeu-me
- Não é coragem, é elegância
e compreendi que a coragem é a forma suprema da elegância. Devo ter compreendido bem, julgo, porque quando um amigo, no Porto, disse que eu gostava de gente humilde, referindo-se aos soldados que andaram comigo na guerra e apareceram para me ver, lhe respondi
- Não são gente humilde, são príncipes
e são príncipes de facto dado que eram valentes. Sem uma queixa, também. Quando fomos para o leste a última camioneta da coluna levava a caixa fechada. Fomos espreitar, levantando o oleado: transportava os nossos caixões. Isto à socapa, sem elegância alguma. Os nossos caixões. Como se destinavam a príncipes eram caixões baratos. Punha-se uma gravata e um blusão aos rapazes e metiam-nos terra abaixo para falarem da Pátria às lagartas. O Christian bebia um pingo de sopa de uma chávena, afastava a chávena
- Não posso
e ficava a tentar ganhar fôlego que tempos. O barulho incessante dos carros na auto-estrada. Uma infinidade de luzes amarelas. E eu a lembrar-me daquele bêbedo que gritava
— Ai vida, não me mereces.
Se ao menos um intervalo de silêncio e no intervalo de silêncio, em qualquer ponto do escuro, um riso. Esta história dos caixões gravou-se-me com tanta força que às vezes, num sinal vermelho, parecia-me que o último automóvel da fila, que procurava descobrir no espelho retrovisor, os trazia. Ainda hoje não estou certo que os não traga de facto.
Engraçado: dá ideia que em lugar de escrever vou falando à deriva: agarro qualquer sombra ao meu alcance, conforme vem, e ponho-a aqui. Agora, por exemplo, veio o poço da casa dos meus pais que mandaram tapar com medo que a gente tombasse lá dentro. Ao princípio, lembro-me, tinha apenas uma grade: espreitava-se e no fundo via o meu reflexo a estremecer e o céu por trás. Acho que foi a primeira vez, ao dar por mim fora de um espelho, que me convenci que existia para além da família, individual, único. Que tinha de me construir a mim mesmo, sem ajudas. E comecei a rejeitar sistematicamente que os outros me moldassem: isto entre tropeços, fraquezas, medos, os cães de toda a ordem que saltam de repente ao caminho. As últimas palavras que o Christian Bourgois me deu ao vir-me embora foram
- Não te preocupes comigo
e ficou a olhar a sopa na chávena. Antes tinham sido
— Não acredito na alma, não acredito noutra vida, não acredito em Deus.
À saída de casa dele o grande espaço dos Invalides, aquelas árvores bem educadas, aquela grandeza sem mistério. E os meus passos sozinho pela rue Vanneau até à casa onde morava André Gide, com a placa na fachada. A impressão de dar por ele através da janela com os seus chapéus inverosímeis. A tascazinha onde almoçava às vezes a assistir às apostas das corridas de cavalos, a senhora gorda e coxa que me trazia o prato. Mulheres que se assemelhavam a pássaros, velhotes friorentos. O hotel antigo com as tábuas a ganirem-me sob os pés. Tantas horas a escrever no quarto do quinto andar onde fico sempre, com a televisão sem som por companhia. O pintor José David a mostrar-me os seus quadros: a língua saía-lhe do meio do bigode e humedecia a mortalha do cigarro de uma ponta a outra, como se tocasse gaita de beiços
— Não te preocupes comigo
e os óculos na chávena. Como a elegância, senhores, pode ser desesperada. Nunca levantem a lona de uma camioneta para não darem de caras com o vosso caixão.
Casas reduzidas a sombras, janelas acesas penduradas no vazio. Ao abandonar o prédio do Bourgois, na rue de Talleyrand, olhei para cima e tudo apagado: teria deixado de existir quando entrei no elevador? Prometi voltar em janeiro ou antes pediu-me que voltasse em janeiro: ainda seremos os mesmos? A placa de Gide quietinha na sua fachada? Com a minha editora italiana, Inge Feltrinelli, dançámos mais de uma ocasião o Singing in the Rain na rua: eu era um Gene Kelly medíocre, ela uma Cyd Charisse estupenda. Além do mais tirou fotografias óptimas a escritores: há uma de Hemingway a dormir como um justo no chão da sua sala. Outra de Gary Cooper, grosso que nem um carro, de copo em punho. (Esse não escrevia, que eu saiba, mas para o caso tanto faz.) E Moravia. E Ginsberg com o amante. Dançávamos e cantávamos. E imitei Groucho Marx. E Louis Armstrong. E Tony Benett. Até um táxi parou a aplaudir. Descendo de Montmartre, da casa de Dali, onde Valerio Adami vive agora. Volto em janeiro de 2005: bom ano, senhor Antunes. Para onde vão os carros na auto-estrada, digam-me? Eu sei: vão em coluna para o Leste de Angola com um bando de príncipes dentro: Boaventura, Alves, Licínio, Matosinhos: ainda por cá andamos, os caixões não nos apanharam, não pregaram neles a medalha com o número mecanográfico e o grupo sanguíneo que trazíamos ao pescoço. Tantos cabelos brancos, que esquisito: mascararam-nos de senhores mas no fundo nenhum de nós mudou. Não te preocupes comigo, exigiu o Christian, com um faro tão certeiro para descobrir talentos. Descansa, não me preocupo: quando não houver mais carros na auto-estrada levanto-me e vou para a cama. Sem me olhar ao espelho, claro, porque no espelho está o Gene Kelly a dançar. E Groucho Marx rebolando os olhos. E os lábios, rebentados pela trompete, de Louis Armstrong. E Tony Benett a arrancar com a orquestra: a todos vocês, que me fizeram feliz, Deus Nosso Senhor dê saúde e boa sorte. Eu fico aqui a levantar às escondidas, a medo, sem elegância alguma, a lona da última camioneta.
(in Terceiro Livro de Crónicas, Dom Quixote)
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Bernardo Soares A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos
(Júlio Pomar)
270.
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.
(in Livro do Desassossego, Assírio & Alvim)
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Amargas trevas nos invadem, por vezes, já que o Homem é um ser atravancado de mitos.
A arte, caminhando a par da razão e da matéria pura no espinhoso percurso da prisão à liberdade, dá luz à utopia que ilumina as ruas sepulcrais da nossa cidade interior.
Carlos Esperança A democracia, o Tribunal Constitucional e os marginais
Há quem se julgue democrata, por condenar a ditadura, e queira a democracia reduzida aos serviços mínimos, sem sindicatos, reivindicações, greves, manifestações e tribunais que obriguem ao respeito das normas do Estado de Direito.
Para esses, a violação da Constituição é um direito de qualquer maioria conjuntural, um mandato divino caído do Olimpo da sua consciência reacionária, uma postura burguesa de quem não tem coragem para apelar ao golpe de Estado ou ao estado de sítio e que, no fundo, o desejam.
A democracia é confronto de ideias, luta de classes, dialética dos contrários, balizados por normas que asseguram o pluralismo político e garantem a alternância do poder. É, em última análise, o direito de resistência às derivas autoritárias de quem sendo lerdo a governar é lesto a reprimir e a vingar-se.
Andam por aí, para além das vuvuzelas do Governo e dos saprófitas do cavaquismo, uns democratas bem instalados, decididos a reduzir ao silêncio o mais leve grito de revolta e à apatia a mais ténue movimentação de trabalhadores, desempregados ou pensionistas.
O Tribunal Constitucional, um órgão da soberania cuja legitimidade é anterior à infeliz decisão eleitoral que nos fustigou com esta maioria, este PR e esta espécie de Governo, tornou-se o inimigo principal de quem, defendendo a democracia, em teoria, a olha com a desconfiança de Maomé perante o toucinho.
A ordem democrática e as pulsões autoritárias têm como fronteira a CRP de que o TC é o guardião, com legitimidade acrescida por ter juízes votados por 2/3 dos deputados e a sua composição ser plural. Os ataques de que é alvo são a mais básica manifestação de desconfiança na democracia, uma sanha a lembrar a de Santiago aos mouros.
É por aqui que passa o limite de quem é e de quem se afirma democrata. Os ataques ao TC são revelações fascizantes que juntam os velhos salazaristas e os novos democratas, com verniz por fora, numa sanha comum contra o TC, os sindicatos e as reivindicações.
José Goulão Um ano de mistificação
Termina um ano, mais um, marcado pela mistificação dirigida pelos mais poderosos dirigentes mundiais com apoio de um aparelho de propaganda de magnitude universal, sofisticado e subserviente.
Mistificação aplicada aos conceitos com maior repercussão na vida de cada cidadão do mundo, com efeitos mais nocivos sobre os que têm menos qualidade de vida. Em 2013, na boca dos mandantes da ordem mundial, luta pela paz continuou a significar proliferação da guerra, a busca do crescimento económico prosseguiu através do alastramento da miséria, o combate ao desemprego traduziu-se em mais e definitivo desemprego e ampliação dos movimentos migratórios, a ecologia cimentou-se como tráfico de poluição, direitos sociais e humanos continuaram a confundir-se com a ganância dos mercados, a democracia deu mais uns passos, de gigante, no caminho do autoritarismo e da ditadura.
São várias mistificações numa só, global, guiada por um objectivo não confessado, ignorado por muitos e que se vai cimentando como contra-reforma se designarmos como “reforma” o conjunto dos avanços sociais e democráticos registados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Termina 2013, inicia-se 2014 e por bem intencionados votos que se desejem, muitas dúzias de passas que se engulam, no horizonte está o agravamento da situação, não a mudança – a não ser que os verdadeiros agentes da mudança, nós todos, consigamos dizer e passar à prática o indispensável “basta!”. Por ora, mesmo havendo essa fronteira imaginária da transição de ano, quem continua arengando mentiras, prometendo falsidades e praticando malfeitorias são os mesmos que nos trouxeram ao ponto onde estamos. Eles não mudam, se não formos nós a mudá-los de sítio. Para isso há que ter a noção clara de que não estamos perante idiotas, incompetentes, gente à deriva enredada nos próprios erros. Aceitemos de vez a realidade: eles são, pura e simplesmente, engenhosos mentirosos e insensíveis malfeitores ao serviço de predadores gananciosos.
Por vezes há quem alegue que não existe uma ordem global, uma vez que muitos países ainda são donos das suas políticas. Pura ilusão: a partir do momento em que a globalização significou a submissão da política à economia, dos políticos dominantes aos agentes dos mercados e da finança passou a existir uma política global. Não total, mas com efeitos globais apesar das nações resistentes que existem. Formam um núcleo prometedor, porém ainda insuficiente perante as armadilhas da rede de mecanismos internacionais tecida pelos políticos que obedecem às ordens da mega economia e da ultra especulação. Reparem como o Sr. Barroso e os funcionários do Sr. Obama se aplicam na criação quanto antes do espaço comercial comum entre a União Europeia e os Estados Unidos e percebe-se como se construiu e se reforça a teia sinistra de uma rede de siglas que asfixia a democracia e os direitos humanos à escala planetária.
Termina 2013, começa 2014, como já terminaram 2012, 2011, 2010... E a contra reforma sempre a avançar enquanto nos prometem dias melhores para amanhã, para daqui a seis meses, para o ano que vem como nos prometeram para ontem, para há seis meses, para o ano passado.
Ainda teimam em acreditar nisto e em dar o benefício da dúvida à conversa deles?
Então, o que fazer? Resume-se em poucas palavras: pôr de lado divisões irrelevantes, egoísmos, denunciar o que na verdade se passa, unir e agir. Para o ano pode ser tarde demais, mesmo que para o ano seja daqui a poucas horas.
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