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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Marcos Cruz Era uma vez um homem
(Adão Cruz)
“Por que vivemos depressa? Para chegarmos antes da concorrência. Se o sítio a que chegamos é a morte, isso quer dizer que estamos todos mortinhos por morrer? Não. Então porquê a pressa? Porque tem de ser. E quem nos obriga? O poder. O poder não somos nós? Não. Como assim? O poder está em nós, mas quem o usa são eles. E quem são eles? Não se sabe ao certo.”
Ottmar Besugen, calceteiro tirolês
Há panikes ne Suécia, 29 de Dezembro de 2014
Se quisermos questionar aquilo que pensamos, há muito por onde. O ruído informativo, a quantidade de opiniões, a jurisprudência da História, os condicionalismos económicos, o stress laboral, a pressão da concorrência, as exigências familiares, tudo isso nos perturba a capacidade de ir assimilando serenamente os dados do mundo em que vivemos e, como consequência, faz crescer sobremaneira a margem de erro dos nossos juízos. Há que responder depressa e bem, coisa rara e, portanto, estatisticamente desaconselhável. Mas que interessa se nove em dez não dão conta do recado? Aproveita-se o que deu. É a selecção natural. E assim, naturalmente também, os que falharam questionam-se sobre as razões de terem falhado. Uns aceitam, não sem culpa, que não foram talhados para o que se lhes pedia; outros reconfiguram-se para voltar à guerra. E então o que deixam estes pelo caminho? O mercado esclarece-os: valores morais, princípios éticos, dependências afectivas e tudo o mais que dificulte a criação de riqueza (entenda-se, material). O problema, claro, é que isto configura uma espiral recessiva no capítulo humano da existência. Quem alinha vai para cada vez mais longe daquele ideal de Espinosa da felicidade imperecível, enredando-se na lógica cumulativa e viciante dos desejos; quem não alinha não tarda a aperceber-se do custo prático dessa decisão. Aqueles e estes tornam-se adversários, numa luta desigual em que os primeiros são premiados pelas instâncias de poder e os últimos relegados ao conforto da sua própria consciência. Quem lucra com esta luta? Como acontece em qualquer guerra, quem está acima dela. Há gente a lançar gente contra gente. As apostas já não precisam de enquadramento intrassocial, o tabuleiro mais apetecido é a própria sociedade. E porque, nesta luta fratricida, quer uns quer outros vão deixando que se esboroe do seu interior o significado de quase tudo, uns por falência anímica ou física, outros para que a missão de que o exterior os incumbiu possa ser cumprida com distinção, a vida humana, ela própria, vê a sustentação do seu valor migrar da consciência colectiva para a arbitrariedade do sujeito – e, assim, em duplo sentido, sujeitar-se. Houvesse, neste jogo, a faculdade de se pedir ao mundo um desconto de tempo, de modo a instruir os contendores sobre aquilo que, em última instância, deles se pretende e estou convencido de que uma “remontada”, como dizem os espanhóis, era possível. Poder-se-ia começar por lembrar-lhes o sabor das coisas. Relacionar a insipidez crescente da experiência de estar vivo com aquilo que fomos deixando pelo caminho e, assim, restituir ao aparentemente acessório a essencialidade de que se viu espoliado. Veja-se, por exemplo, o romantismo. Onde anda ele? Nas suas formas mais nobres, entregue à condição de novo pobre, cuspido pela máquina da eficácia; no seu estereótipo, usado como pólvora para o fogo-de-artifício da cultura pimba. Observe-se a comunicação. Escamada, aberta, reduzida ao lombo. Se fosse vinho, dir-se-ia a martelo: sem notas de elegância, deferência, identidade. A verdade é que, fazendo um voo rasante pelos circuitos imprescindíveis à tão verbalizada coesão social, constatamos que têm sido lascados como madeira, em ataques cadenciados que visam destituí-los das camadas que lhes dão vida, sentido, sabor. Talvez percebamos melhor isso nesta quadra, em que trazemos esse vazio à mesa e o devoramos, bem regado, como nenhuma outra refeição. Mas fazemo-lo por necessidade: ele justifica-nos uns perante os outros, cauciona as distâncias, irmana-nos na presunção de inocência. A ira e a meditação nostálgica expõem, mais do que disfarçam, o estado de lassidão a que chegou a nossa alma. Porém, nenhum horizonte é o último. Em causa, admitamo-lo, está a recolocação do homem no centro do projecto humano. Face a isto, o que mais poderá valer a pena?
Todos perdemos
Do seu posto de liderança do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres tem uma visão global e real da desordem que impera no mundo. O ACNUR tem hoje a seu cargo o maior número de refugiados e deslocados desde a II Guerra Mundial.
António Guterres vive o lado mais trágico dos conflitos: o seu lado humano. Tem hoje a seu cargo o maior número de refugiados e deslocados desde a II Guerra. E, por isso mesmo, o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados tem uma visão global e real da desordem que hoje impera no mundo.
Há um dado que nos choca particularmente: o número de refugiados e deslocados em 2014 é o maior desde o fim da II Guerra.
É verdade. No final de 2013 tínhamos mais de 51 milhões de pessoas internamente deslocadas ou refugiadas por causa de conflitos, o que aconteceu pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Só que 2014 não vai ser melhor. Vou dar-lhe apenas uma breve descrição de alguns dos acontecimentos que tivemos de enfrentar no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Logo no princípio do ano houve o agravamento dramático da situação na República Centro-africana e no Sudão do Sul. Na RCA a explosão de violência resultou até hoje em meio milhão de pessoas internamente deslocadas e mais de 200 mil novos refugiados nos quatro países à volta. E isto, não contando com os mais de 200 mil que já lá estavam de crises anteriores. No Sudão do Sul, a erupção de violência começou a 15 de Dezembro e já levou a 1,4 milhões de pessoas internamente deslocadas e a cerca de meio milhão de novos refugiados na Etiópia, Quénia, Uganda e Sudão.
Esses são aqueles a quem muitas vezes quase não prestamos atenção.
Essas são as crises de alguma forma negligenciadas pela comunidade internacional, uma vez que as atenções estão essencialmente concentradas no Médio Oriente e, em particular, a crise sírio-iraquiana.
Que aumentou muito o número de refugiados a que tem de responder.
Entre Síria e Iraque temos cerca de 13 milhões de pessoas deslocadas internamente ou refugiadas nos países vizinhos. Logo em Janeiro, tivemos a violência em Anbar (Iraque, na fronteira com a Síria), que originou cerca de 600 mil pessoas deslocadas no interior do Iraque. Depois, em Fevereiro, houve a evacuação de Homs e a complexidade da situação da Síria. Logo em Abril o número de refugiados sírios no Líbano atinge um milhão e podemos imaginar o impacte que teve num país que está, ele próprio, em crise política e com uma situação de segurança extremamente precária. Um terço da sua população é hoje composto por sírios e palestinianos. Ainda em Abril, no Líbano, ocorreu o rapto de vários soldados libaneses no campo de refugiados de Azraq, que têm vindo a ser horrivelmente degolados pelo Estado Islâmico.
Esse é o novo método de terror dos fundamentalistas
Embora com muito menos publicidade do que os ocidentais que tiveram o mesmo destino. Tudo somado, temos hoje 3,3 milhões de refugiados sírios e 7,6 milhões de pessoas internamente deslocadas. Nessa altura, tivemos de enfrentar a crise aguda de falta de financiamento do Programa Alimentar Mundial (PAM), que fornece a alimentação aos campos de refugiados e que, por falta de fundos, anunciou que iria reduzir a alimentação a cerca de 800 mil refugiados em vários países africanos. Foi um momento extremamente dramático como pode calcular.
A entrevista ao Padre Anselmo Borges, no JN, a respeito do seu livro “Deus ainda tem futuro”, teve o mérito de avivar algumas das minhas convicções.
Do que se trata não é das palavras e da atitude, louvável e bem intencionada, do Papa Francisco. Do que se trata não é da coragem do Papa Francisco em denunciar, ainda que pela rama, os comportamentos nada respeitáveis da Cúria Romana, alguns deles criminosos, como crimes de sangue, astronómicas fraudes económico-financeiras ou a vergonhosa pedofilia dos vastos clérigos, “a miséria moral da Igreja”, como diz o Padre Anselmo.
Do que se trata não é do afrouxamento de uma santidade que raramente existiu, nem da “Alzheimer da espiritualidade e do terrorismo da má-língua”, como diz o Papa, nem dos vícios e desvirtudes da natureza humana, eventualmente corrigíveis, mas da vida e dos históricos actos mundanos do Vaticano, secularmente camuflados. Penso que o Padre Anselmo não deve acreditar naquilo que seria o seu desejo, na renovação institucional da Igreja, pois não há reforma possível na Cúria Romana, não pode haver transparência na ultra-secreta estrutura capitalista do Vaticano nem verdadeira contribuição para a justiça no mundo, pois trata-se de uma doença crónica, secular, incurável, A MENTIRA.
Do que se trata, não é só da dignidade humana, que o Padre Anselmo diz ter nascido em Jesus Cristo. Muita gente católica tem a ideia pequenina e pouco inteligente de qua a Igreja é o único reduto dos valores humanos. Há muitos e muitos ateus, sem precisarem da Igreja para nada, com grande dignidade, com grande nobreza de carácter e possuidores dos mais sólidos princípios ditos cristãos, como há muitos e muitos cristãos, mesmo nas altas hierarquias eclesiásticas que não têm ponta destes valores.
Diz o Padre Anselmo que “a Igreja está em crise”, o que é uma verdade, não só de agora, e que é preciso sair da crise recuperando as pessoas de fé, sobretudo os jovens. Volto a pensar que o Padre Anselmo não se deve iludir. Se os jovens vão perdendo a fé é porque outra luz se vai acendendo, a da sua razão e da sua consciência. Julgo que não deve ter esse tipo de esperanças, pois os jovens já há muito que andam à procura do seu caminho, difícil, mas vão progressivamente reconhecendo que ele nunca mais será o pérfido e obscurantista caminho da Igreja.
Ao fim e ao cabo, do que se trata não é da boa vontade do humano Papa Francisco em mudar o que não é mutável, em recuperar um Cristo que se perdeu ao longo dos séculos, mas do significado e da realidade que estão muito para além das estranhas, incomuns e repreensivas palavras de um Papa. Do que se trata é da farsa de uma doutrina para a qual muitos dos altos responsáveis se estão borrifando. Do que se trata é da falsidade e da ancestral hipocrisia da Igreja e das suas hierarquias que desde sempre trocaram o caminho de Cristo, o caminho da pobreza, da humildade e da verdade pelo caminho do luxo, da arrogância e da mentira.
Do que se trata, como diz o Padre Anselmo, é da crise da Igreja, é da Igreja em si mesma.
O que está em causa é a própria Igreja. O que está em causa é a VERDADE.
Se fosse eu a dar o título ao livro do Padre Anselmo talvez escrevesse “Deus já não tem futuro”.
António Lobo Antunes O herói
Visão, 20 de Novembro de 2014
Tinha estado em África, numa guerra que quase toda a gente esqueceu, e voltou de lá virado do avesso. Magrinho, penteadinho, sempre de gravata, com um andar lento, solene, quando lhe vinha a guerra à ideia mudava por completo: desatava a combater, pontapeando caixotes do lixo e insultando as pessoas, isto já com uma pinguita a estimular-lhe os entusiasmos bélicos, agredia paredes, passava rasteiras a prédios, se por acaso descobria um africano avançava de peito feito a disparar com a boca, ferindo as pessoas de cuspo, e toda a gente sabe, a começar pelas cobras, como o cuspo é mortal, até que, de repente, estacava, o corpo esvaziava-se-lhe como um balão furado, e sentava-se no passeio a chorar por si mesmo. Comia, aqui e ali, o que lhe davam por esmola, ao fumar comia o cigarrito também, e disparava-me em cima uma carga letal de emboscadas, minas, canhões sem recuo, camaradas agonizantes e aldeias a arderem:
- Matei tudo o que pude
afiançava ele, a bater a palma no peito
- Caiam-me os olhos em gotas no chão se não matei tudo o que pude
na certeza, entre todas nobre, de salvar Portugal do comunismo ateu.
- O mal foi a revolução explicava-me
- Olhe a porcaria em que este país se tornou porque
- 0 que não faltava aqui eram traidores de Moscovo e a polícia do Salazar a fingir que não via
porque
- Sempre fomos brandos, percebe?
enquanto ele e os camaradas dele davam o corpo ao manifesto em África, a morrerem que nem tordos
- Que nem tordos, amigo a dignificarem a Pátria (palavras dele)
- Ninguém me agradece ter dignificado a Pátria, entende?
e continuar a dignificá-la assaltando a pontapé os sacos de plásticos de restos, que as pessoas deixavam à porta, com inimigos dos portugueses, muito agachadinhos, escondidos lá dentro.
Dormia na entrada dos prédios, umas velhotas piedosas ajudavam-no com trocos que o vinho
Comia, aqui e ali, o que lhe davam por esmola, ao fumar comia o cigarrito também, e disparava-me em cima uma carga letal de emboscadas, minas, canhões sem recuo, camaradas agonizantes e aldeias a arderem:
- Matei tudo o que pude afiançava ele, a bater a palma no peito
- 0 vinho, para os combatentes como eu, devia ser de graça
anda pela hora da morte e, quer a gente queira quer não, sempre estimula as artérias e clareia o pensamento, se o deixassem, mas não deixavam, já não há alma nesta gente, tornava a partir lá para baixo
- É lá em baixo, na primeira fila, o meu lugar, não é aqui, amigo e lá em baixo, na selva, metia o mundo nos eixos e o mundo
- Não se está mesmo a ver? incluindo os americanos
- Os americanos de joelhos diante da gente, que remédio têm eles
com receio das caravelas de antigamente e da sua valentia de agora.
A mulher abandonou-o ao voltar, farta de bravura e copos
- Umas jibóias é o que elas são, umas jibóias, amigo
Abraçava-me, dado que os verdadeiros heróis são sensíveis
- Aperte-me estes ossos
e, realmente, eram só ossos que eu apertava, empurrava-me com desconfiança
- Não é maricas por acaso, você?
jurava-lhe que não, ele recuava um passo a fim de me avaliar melhor
- Há os que são e não parecem
consentia
- Pronto, vá lá, aperte os ossos, seja o que Deus quiser
seguido de
- Não me paga uma sopinha, por acaso?
interrompia-se a meio da sopinha, levantando a cabeça
- Não os ouve, amigo? eu ouvia colheres contra dentes, ele mais ruídos suspeitos, todo de orelhas alerta
- O batuque
dado que, antes dos tiros, os pretos se estimulavam com tambores em homenagem aos deuses obscuros mas, ao que parece, eficazes em matéria de matanças, explicou-me com simplicidade
- Se por acaso ganham depois comem a gente
após o que regressava, tranquilo, à sopa, pedindo um pão a fim de o esfregar na tigela e aproveitar o que sobrava, o alumínio do prato até brilhava sem necessitar de lavagem, saíamos os dois e sentávamo-nos no passeio
- É melhor ficarmos aqui um bocadinho, pelo sim pelo não, a espiar
ambos acolá na esquina, a tomarmos conta de Portugal até que me agarrava de súbito o ombro
- Camarada
Numa cumplicidade que crescia, com ele a fitar-me, a meia pálpebra
- Se calhar pensa que eu sou maluco não é?
e não pensava, limitava-me a espreitar a possibilidade de me ir embora, que ele interrompia para informar
- Sou um pobre
numa voz sumida, triste
- Não passo de um pobre
a exibir-me o desgaste das solas
- Um pobre
a aperfeiçoar a definição
- Um pobre que não tem ninguém
nem mulher nem filhos, ninguém a não ser a guerra, os cadáveres dos camaradas, as emboscadas, um Portugal grandioso afinal tão estreito, a sua vidinha de loucuras e esmolas
- Um pobre
o fatito, a gravata, o lenço que tirou do bolso, a assoar-se, e nunca vi ninguém assoar-se durante tanto tempo.
- Não acha?
Perguntou-me ele.
Adão Cruz Nudez total
(Adão Cruz)
Penso que é difícil pintar a nudez total
Óleos águas fortes e aguarelas de nada servem
Entre a paixão e a fruição vive o jogo imaginário uma
espécie de sonho que não tarda em acordar
Entram em luta o rosto e a máscara a arte e a vida a verdade
e a mentira a realidade e a ilusão
Para criar a nudez total não vejo pintor que tenha mão
(in Adão Cruz, VAI O RIO NO ESTUÁRIO. Poemas de braços abertos, ediçõesengenho)
Jorge de Sena Natal de 1971
(Vyssí Brod,mestre Boémio,1350)
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?...
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...