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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Viriato Soromenho Marques Arrependimento
Diário de Notícias, 20 de Fevereiro de 2015
Quando Pôncio Pilatos quis lavar as suas mãos, Cristo ainda não tinha sido crucificado, mas os dados já estavam lançados. A confissão de Juncker sobre os "pecados" da troika, cometidos contra a "dignidade dos povos", na Grécia, em Portugal, e mesmo na Irlanda, talvez seja a mais inesperada confirmação de que Schäuble e os seus cúmplices no Eurogrupo já decidiram obrigar Atenas a escolher entre o ostracismo fora da zona euro ou a vergonha da rendição incondicional perante as grilhetas da austeridade. Se a Grécia for privada da "dignidade" de ser respeitada, apesar e por causa da sua escolha eleitoral recente, o projeto da construção europeia como foi gizado por Schuman, Monnet, mas também pensado por Habermas, estará definitivamente morto. A "Europa alemã", usando a expressão do saudoso Ulrich Beck, será breve, e os cenários que se lhe seguirão variam apenas na tonalidade sombria. Juncker, contudo, ainda envergará, para o juízo futuro da história, a consciência amargurada do "bom ladrão". Pelo contrário, Schäuble e todos os seus discípulos do Eurogrupo, ao condenarem os gregos a novos e imensos sofrimentos, e ao desistirem das dezenas de milhares de milhões de euros dos contribuintes europeus, que Atenas fora da zona euro não poderá pagar, acabam por deixar cair a máscara. Razão tinha o malogrado ex-presidente do Bundesbank, Karl-Otto Pöhl, quando em maio de 2010 acusou o resgate da Grécia de não ter em consideração nem o interesse do povo grego nem o da Europa, destinando-se apenas "a salvar bancos [alemães e franceses] e os gregos mais ricos" (Der Spiegel, 18-05-2010). O que parece iminente é mais do que pecado. Uma ofensa contra a humanidade, cuja reparação exigirá algo mais do que o tribunal da história.
Oliver Sacks "A minha vida"
DN Globo, 21 de fevereiro de 2015
Oliver Sacks, professor de neurologia da Universidade de Nova Iorque e autor de vários livros, como Despertares, publicou este texto no jornal The New York Times. O DN reproduz hoje em exclusivo.
Há um mês sentia-me de boa saúde, de perfeita saúde mesmo. Aos 81 anos ainda nado mais de mil e quinhentos metros por dia. Mas a minha sorte acabou - há poucas semanas fiquei a saber que tenho múltiplas metástases no fígado. Há nove anos descobriu-se que eu tinha um tumor raro no olho, um melanoma ocular. Apesar de a radiação e o tratamento com laser terem acabado por me deixar cego desse olho, só em casos muito raros é que esses tumores metastizam. Eu estou entre os pouco afortunados 2%.
Sinto-me grato por me terem sido concedidos nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. O cancro ocupa um terço do meu fígado e, apesar de o seu avanço poder ser retardado, este tipo específico de cancro não pode ser detido.
Agora está na minha mão escolher como viver os meses que me restam. Tenho de viver da forma mais rica, mais profunda, mais produtiva que conseguir. A este respeito sinto-me encorajado pelas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que estava mortalmente doente aos 65 anos, escreveu uma autobiografia curta num único dia de abril de 1776. Deu--lhe o título de A Minha Vida.
"Antecipo agora um fim rápido", escreveu. "Padeci muito poucas dores com a minha doença; e o que é mais estranho, não obstante o grande declínio da minha pessoa, nunca sofri um momento de abatimento do meu espírito. Possuo o mesmo ardor de sempre no estudo e a mesma alegria na companhia dos outros."
Tive a sorte suficiente para viver para lá dos 80 e os 15 anos que me foram concedidos para além das seis dezenas e meia de Hume foram igualmente ricos em trabalho e em amor. Durante esse tempo publiquei cinco livros e terminei uma autobiografia (um pouco mais longa do que as poucas páginas de Hume) para ser publicada nesta primavera; tenho vários outros livros quase acabados.
Hume disse ainda: "Sou... um homem de disposição suave, de temperamento controlado, de um humor alegre, aberto e social, capaz de criar laços, mas pouco suscetível a inimizades e de grande moderação em todas as minhas paixões."
Aqui afasto-me de Hume. Apesar de ter vivido relacionamentos amorosos e amizades e não ter verdadeiras inimizades, não posso dizer (nem o dirá qualquer pessoa que me conheça) que sou um homem de disposição suave. Pelo contrário, sou um homem de disposição veemente, com violentos entusiasmos e extrema imoderação em todas as minhas paixões.
E, no entanto, uma linha do ensaio de Hume atinge-me como particularmente verdadeira: "É difícil ser-se mais desligado da vida do que eu sou neste momento", escreveu ele.
Durante os últimos dias fui capaz de ver a minha vida a partir de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem, e com um sentido profundo da ligação de todas as suas partes. Isto não significa que a vida tenha acabado para mim.
Pelo contrário, sinto-me intensamente vivo e quero e espero que no tempo que me resta possa aprofundar as minhas amizades, dizer adeus àqueles que amo, escrever mais, viajar se tiver força para tal, atingir novos níveis de compreensão e discernimento.
Isso envolverá audácia, clareza e sinceridade; tentar acertar as minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para me divertir (e até mesmo para algum disparate ainda).
Sinto, de repente, uma perspetiva e um objetivo claros. Não há tempo para nada que não o essencial. Tenho de me concentrar em mim, no meu trabalho e nos meus amigos. Já não verei o noticiário todas as noites. Já não prestarei qualquer atenção à política ou a debates sobre o aquecimento global.
Isto não é indiferença, mas antes desprendimento - ainda me preocupo profundamente com o Médio Oriente, o aquecimento global, a desigualdade crescente, mas estas coisas já não me dizem respeito; pertencem ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens talentosos - até mesmo o que fez a biópsia e diagnosticou as minhas metástases. Sinto que o futuro está em boas mãos.
Nos últimos dez anos tornei-me cada vez mais consciente das mortes entre os meus contemporâneos. A minha geração está de saída e senti cada morte como um descolamento, um arrancar de uma parte de mim. Não haverá ninguém como nós quando desaparecermos, mas também não há ninguém igual a ninguém, nunca. Quando as pessoas morrem, elas não podem ser substituídas. Deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois é o destino - o destino genético e neural - de cada ser humano ser um indivíduo único, para encontrar o seu próprio caminho, viver a sua própria vida, morrer a sua própria morte.
Não posso fingir que não tenho medo. Mas o meu sentimento predominante é o de gratidão. Eu amei e fui amado; foi-me dado muito e dei algo em troca; li e viajei e pensei e escrevi. Eu tive uma relação com o mundo, a relação especial entre escritores e leitores.
Acima de tudo, eu tenho sido um ser senciente, um animal pensante neste belo planeta e isso, por si só, tem sido um enorme privilégio e uma enorme aventura.
Varoufakis: “Conseguimos evitar uma sequência de muitos anos de sufoco de excedentes primários”
Conseguido o acordo que permite à Grécia beneficiar de um prolongamento de quatro meses dos empréstimos europeus, o ministro grego das Finanças, Yanis Varoufakis, declarou que "conseguimos evitar uma sequência de muitos anos de sufoco de excedentes primários".
Mas apesar da satisfação demonstrada, Varoufakis não perdeu a ocasião para criticar aqueles que tentaram "asfixiar este novo Governo grego". O governante grego retomou a retórica do Executivo liderado por Alexis Tsipras sublinhando que "temos de dizer não a propostas" que contrariam o mandato atribuído pelo eleitorado grego.
Assumindo contentamento pelo acordo de quatro meses de extensão dos empréstimos, face aos seis meses requeridos por Atenas na proposta apresentada na quinta-feira, Varoufakis contrariou as palavras de Pierre Moscovici, comissário europeu para os Assuntos Económicos, que na conferência de imprensa imediatamente anterior à do ministro grego disse que o acordo alcançado "não é ideológico".
"Combinámos duas coisas que imaginámos contraditórias: lógica e ideologia", proclamou Varoufakis enaltecendo ainda o comunicado oficial resultante do Eurogrupo hoje reunido em Bruxelas que demonstra o "respeito pelas regras e pela democracia".
Em resposta a uma questão colocada por um jornalista sobre qual o excedente orçamental primário que Atenas terá de cumprir, Varoufakis não referiu valores e anunciou que tudo dependerá da evolução da própria economia grega.
"Vamo-nos referir a um excedente primário apropriado", elucidou Varoufakis antecipando aquilo que poderá vir a constar no documento oficial. Antes, porém, o Executivo helénico terá de apresentar, na próxima segunda-feira, uma proposta com as medidas que pretende implementar.
Ainda assim, o antigo professor de Economia revelou que "o excedente primário terá de ser positivo", mas "as instituições (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) aceitaram que 2015 é um ano difícil", pelo que será ajustado tendo em conta "a evolução da situação no terreno". Ou seja, o excedente deverá ser definido em consonância com aquilo que a economia grega for capaz de produzir.
Este é talvez um dos principais objectivos alcançados pelo Governo grego depois de semanas de avanços e recuos nas negociações mantidas com os restantes credores. No programa de assistência em curso na Grécia, estava previsto um excedente orçamental primário (sem contar com a dívida) de 3% em 2015 e de 4,5% em 2016.
Atenas pretendia redefinir o excedente para apenas 1,5%, garantindo assim folga orçamental que permitisse implementar algumas das medidas inscritas no programa de Governo com que o Syriza foi eleito nas legislativas de 25 de Janeiro.
"Um país afogado em dívida pode ter democracia"
Adão Cruz TABERNA DO DOUTOR
Há meses abriu na minha rua, Rua da Firmeza, no centro do Porto, mesmo em frente ao prédio onde vivo, a TABERNA DO DOUTOR.
O meu amigo de longa data, apesar de poder ser meu filho, o nosso Zé Carlos, resolveu por vontade própria dar este nome ao seu novo restaurante. Só quando tudo estava decidido eu soube que o “DOUTOR” se referia à minha pessoa. Claro que fiquei orgulhoso mas também um tanto acanhado. Sou um ser humano que prezo muito a humildade e a ausência de presunções de qualquer tipo, e tudo o que sejam actos de homenagem, e já tive alguns, me deixam embaraçado.
Por isso, só agora, passados uns meses, me sinto encorajado a dizer alguma coisa sobre a TABERNA DO DOUTOR. E o que pretendo dizer é que este lugar de amigos tem uma alma suficientemente grande para gerar muitos mais amigos. O Zé Carlos, pessoa com invulgares capacidades de trabalho e grande honestidade e integridade, é o dono e administrador, não só da TABERNA DO DOUTOR mas também do café SINATRA´S, com vida na mesma Rua da Firmeza há 25 anos. Não há nas redondezas quem o não conheça, e tanto quanto me apercebo, não há quem não goste dele e quem o não tenha na mais elevada consideração e estima. Para além da sua simpatia e grande amizade por todos os clientes, ele e o seu café, aberto até às duas da madrugada, constituem uma referência, um ponto de apoio e um porto de segurança nesta zona do nosso querido Porto, praticamente deserta durante a noite.
Claro que a TABERNA DO DOUTOR não é um estabelecimento hoteleiro perfeito, embora o Zé Carlos tudo faça para conseguir o melhor. Não é fácil, e só a sua persistência e amor à arte o levam a continuar em frente. E aqui eu apelo a todos os amigos para que façam tudo o que puderem no sentido de publicitar e privilegiar este futuro local de encontro das nossas vidas do dia-a-dia. Por mim, que tenho correspondência através de e-mail com muitos
amigos de vários locais do País, tudo farei para lhes levar a boa nova de que há no Porto um lugar amigo onde, sempre que cá venham, podem comer, conversar e sentir a poesia de estarem em boa companhia. Eu sou um amante da poesia e tento muitas vezes abraçá-la. Mas eu não sei verdadeiramente o que é a poesia, mas penso que a poesia é, entre outras coisas, o conjunto destes laços da nossa vida com tudo o que nos rodeia, especialmente este nosso encontro diário com todos os amigos a quem, nos entretantos de um café, damos um abraço e dizemos BOM DIA.
Quanto à oferta da TABERNA DO DOUTOR, apesar do afecto e de variados petiscos, muita coisa há e muita coisa falta, mas mais coisas haverá à medida que os amigos começarem a aparecer e a motivarem com a sua presença o natural desenvolvimento da oferta. Não faltam com certeza a competência da cozinheira D. Fernanda e a amabilidade da D. Ana, esposa do Zé Carlos, e da mãe da Ana, cozinheira veterana do Ginjal do Porto, bem como a amabilidade e profissionalismo dos colaboradores, ambos “João”.
A título de exemplo, no início da época da lampreia, o Zé Carlos convidou-me para comer o tal bicho com ele, cozinhado na Taberna, onde nunca havia sido confeccionado. Como, sem qualquer armanço, me considero um perito apreciador de lampreia, no fim do repasto eu disse ao Zé Carlos que não tinha qualquer dúvida em afirmar que comi uma belíssima lampreia. Recomendada como prato a apresentar, quer à bordalesa quer com arroz, já tem sido procurada por muitos apreciadores. Nesta Baixa do Porto, e mesmo noutros lugares, não é fácil encontrar boa lampreia, pelo que aqui fica uma garantida referência.
Quando eu era criança, diziam-me os meus pais que eu tinha de fazer tudo para “ser gente”. “Ser gente”? Mas o que é “ser gente”?
Ao ver hoje o que se passa à nossa volta, ao ver a deterioração mental, a total ausência de escrúpulos, o desprezo da honra e da dignidade, a proliferação de criminosos, corruptos e vigaristas de toda a espécie, mais evidentes nos estratos superiores da sociedade e nos sectores da Administração e do empresariado, eu penso que “ser gente” é viver a vida com dignidade e respeito pelos outros, nunca esquecendo que o viver dos outros é também o nosso viver. O Zé Carlos e a vida que ele trouxe a esta rua ao fim de um quarto de século é uma mais-valia social e bairrista, é um “ser gente” que não podemos esquecer.
Deixo aqui algumas das quadras ditas aquando da inauguração da TABERNA DO DOUTOR:
Ao entrares nesta casa
Deixa lá fora a vaidade
Cá dentro bebe-se a vida
Pelos copos da humildade.
Cá dentro não há pelintras
E todos somos doutores
Bem formados pela vida
Com mais de vinte valores.
Quem quer que entre nesta casa
É para nós um senhor
Basta entrar de cara limpa
Na TABERNA DO DOUTOR.
Aqui aprende-se a vida
Mais que na universidade
Ninguém aqui troca a honra
Ninguém perde a dignidade.
Entre uns copos de alma cheia
O vinho é irmão da amizade
Na TABERNA DO DOUTOR
Todos bebem a verdade.
Fora da escola da vida
Ser doutor é muito pouco
Um copo é toda a diferença
Entre o sábio e o louco.
Prescrição por DCI
Alteração das receitas nas farmácias pesa mais nos bolsos dos doentes portugueses
Tal como a Ordem dos Médicos prevenira, há mais de dois anos, a prescrição de medicamentos por Denominação Comum Internacional (DCI) deixa os doentes completamente desprotegidos nas farmácias, com graves riscos e prejuízos clínicos e financeiros.
Senão vejamos. De acordo com uma notícia publicada esta semana pelo Jornal de Notícias (notícia intitulada «Utentes pagam três milhões a mais por mês na farmácia», publicada na edição de 16 de Fevereiro de 2015), os utentes da região Norte de Portugal "estão a optar ou a serem induzidos a optar por medicamentos mais caros na farmácia".
A monitorização feita pela Administração Regional de Saúde do Norte revelou que "40% das embalagens vendidas com prescrição por DCI tinham preços superiores aos do quinto medicamento mais barato". O que se traduziu numa perda de poupança próxima dos três milhões de euros.
Tal como o Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos alertara, ao definir a prescrição por DCI sempre que um medicamento tenha um equivalente no mercado de genéricos, os interesses dos doentes não são devidamente protegidos já que, no limite e alegando a falta de medicamentos genéricos mais baratos, a farmácia pode "prescrever" um fármaco mais caro do que aquele que o médico indicou.
Desde início que o CRNOM e a Ordem dos Médicos alertaram o Ministério da Saúde, que pela falta de acção é cúmplice da actual situação, que a prescrição por DCI não só não aumentou a taxa de penetração dos genéricos em Portugal, além da curva ascendente que já se verificava, como tem provocado todo o tipo de iniquidades na hora dos doentes levantarem o seu receituário. Desde logo porque as receitas de prescrição electrónica indicam não o preço mais baixo possível para um princípio activo mas “o preço máximo possível” em cada caso, enviesando a mensagem e confundido propositadamente o doente na hora da escolha.
Depois porque apesar da lei exigir que as farmácias dispensem um dos cinco medicamentos mais baratos existentes no mercado, a verdade é que a esmagadora maioria dos doentes não tem conhecimentos técnicos que lhes permita fazer esta escolha informada. Em última análise, será sempre o farmacêutico a fazer a opção pelo medicamento a comprar.
Não obstante todos os alertas feitos pela Ordem dos Médicos, o Ministério da Saúde não tomou uma única medida no sentido de proteger adequadamente os reais interesses dos doentes.
Numa altura em que a monitorização do mercado farmacêutico vem, infelizmente, provar a pertinência dos alertas feitos pela Ordem dos Médicos, por uma questão de transparência e qualidade é fundamental que:
No limite das suas competências, o Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos continuará atento a esta matéria e tomará todas as medidas que entenda como necessárias e pertinentes para continuar a defender e proteger os interesses e direitos dos doentes.
O Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos
Porto, 19 de Fevereiro de 2015
Carlos Matos Gomes Em busca do pai do D. Quixote
Anda uma equipa de arqueólogos espanhóis a tentar identificar os ossos de Cervantes na cripta do convento das trinitárias de Madrid, onde estarão misturados com os de muitos outros seres humanos. É uma estranha tarefa. Gastamos dinheiro e energias na impossível e inútil tarefa de reparar uma injustiça secular em vez de investirmos em evitar as do presente. Muito mais importante que a descoberta dos ossos do «manco do Lepanto» é o texto de José Manuel Caballero Bonald, Premio de Literatura Miguel de Cervantes 2012, publicado no dia 14 de Fevereiro no El País e que eu traduzi o melhor que pude. Importante seria encontramos muitos D. Quixotes, porque moinhos, salteadores, corruptos, prepotentes, hipócritas há por aí muitos:
“Andou sempre a escapar de qualquer coisa: da justiça, da falta de amor, da penúria, do aborrecimento. Não fugia, ausentava-se, largava de um porto desagradável para atracar a outro igualmente pouco acolhedor. As etapas do infortúnio assinalavam um caminho que conduzia a uma inevitável derrota. Que o levava ao triste refúgio de vencido. Sofreu os males de guerras, cativeiros, descalabros e desdéns. A família desfeita, a vontade esgotada, o destino mutilado foram as únicas credenciais com que pretendeu chegar ao inalcançável. Nunca fez carreira em nenhuma confraria porque não era adepto da lisonja nem condescendeu com a iniquidade dos poderosos. Residiu de modo vulgar em cidades impensáveis e executou tarefas desprezíveis. Com pouca prosápia e enfatuamento, com muita humilhação, solicitou trabalhos vásrios, nunca concedidos. Defendeu os valores dos homens decentes e lutou contra os dos falsos, era amigo dos perseguidos e abominava os perseguidores. Um dia, cansado de privações, desiludido por não ter conseguido ser o que sonhara, regressou ao refúgio de onde partira como um combatente aquebrantado pela derrota. Publicou então, quase sexagenário, um livro que haveria de constituir até hoje uma das obras primas da literatura universal. Nem sequer se conhece o paradeiro dos seus ossos. Mesmo que um dia sejam encontrados, tal descoberta jamais remediará a obstinação da injustiça.”
Carlos Matos Gomes
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Texto e foto deliciosos, parabéns!
Palavras como dinamite.E passados 50 anos sobre os...
Lindo!
Um testemunho enternecedor.Eva
Grande texto que nos faz refletir... Muito!