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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Tomas Transtromer Lisboa
(Nobel da Literatura sueco morreu no dia 26)
No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas calçadas íngremes.
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões
Acenavam através das grades.
Gritavam que lhes tirassem o retrato.
“Mas aqui!”, disse o condutor e riu à sucapa como se cortado ao meio,
“aqui estão políticos”. Vi a fachada, a fachada, a fachada
e lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.
Roupa branca no azul. Os muros quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa:
“será verdade ou só um sonho meu?”
(in 21 Poetas Suecos, Vega, org. de Vasco Graça Moura e Ana Hatherly, 1981)
António Lobo Antunes Carta aos meus pais
Visão, 19 de Março de 2015
Em primeiro lugar quero dizer que estou farto de ser orfão, eu que, em criança, tantas vezes desejei a vossa morte, durante umas horas, quando ralhavam comigo ou não me deixavam fazer o que me apetecia e obrigavam-me a actos desnecessários tais como lavar os dentes, comer sopa ou pegar nos talheres como deve ser. A ordem
- Pega nos talheres como deve ser
ainda ecoa, horrível, dentro de mim, tal como a sinistra pergunta
- Não lavaste as mãos antes de vir para a mesa?
ou a resposta
- Um dia falamos sobre isso
quando calhava interessar-me pelo modo como as crianças apareciam dentro da barriga das mães. Apesar de tudo eu tinha alguma cultura: sabia, claro, que os rapazes faziam chichi pela pilinha, que as meninas por um buraquinho mas um dia vi uma mulher de cócoras no pinhal em Nelas e fiquei banzo: fazia por uma escova. Naturalmente interessei-me:
- Porque é que as mulheres fazem por uma escova?
e os meus pais primeiro banzos também e depois a lutarem para ficar sérios. Não me explicaram nada e vários mistérios subsistiram durante muito tempo. Primeiro, porque é que as mulheres têm uma escova ali. Segundo, porque é que as escovas, que passei a olhar com desconfiança, fazem chichi. Terceiro, isto acontecerá ao conjunto das meninas, ao crescerem, ou só àquela? Quarto, o exame minucioso a que submeti todas as escovas que encontrei em casa não me deu nenhum resultado esclarecedor: não havia uma que não estivesse seca. As de escovar a roupa, as de escovar o cabelo, as de esfregar o chão. E os meus pais sem responderem. A minha mãe ainda abriu a boca mas não chegou a falar, embaraçadíssima. O meu pai não abriu a boca mas qualquer parte dele parecia divertir-se às escondidas, quando qualquer parte dele parecia divertir-se às escondidas a minha mãe a censurá-lo
- João
e ele logo sério, ausente, a interessar-se pelos meus estudos que, em geral, o desgostavam porque os meus resultados escolares costumavam roçar o trágico e constituíam uma preocupação constante para a família. O facto de eu ser escritor
(sempre fui escritor desde que me conheço e a minha mãe previa-me um futuro de miséria negra)
não desagradava inteiramente ao meu pai, que tinha um respeito sagrado pelos artistas, mas os meus resultados escolares preocupavam-no, queria que eu tivesse uma profissão sólida que me amparasse as veleidades criativas. Para ele, a única profissão sólida e digna era ser médico
- E depois, nos intervalos, escreves
como Júlio Dinis ou Duhamel. Acabei por lhe fazer a vontade, pai, tornei-me médico, mas o meu curso foi um tormento para ele: reprovações, notas baixíssimas, os seus colegas, professores também, lá me iam deixando passar por amizade. Lembro-me que no fim da prova de Medicina Operatória o catedrático me disse com bonomia, diante do anfiteatro cheio:
- Olha, filho, tens treze e diz lá ao pai que não pôde ser mais.
Isto para além de cartas que ele me mostrava com desgosto, género
O seu rapaz esteve aqui e não sabia nada
ou, comparando-me com o meu irmão
- O Lobo Antunes tem dois filhos, um é bom, o outro é uma nódoa.
Ainda me espanta a razão pela qual o meu pai não me matou. Mas sei que lia às escondidas o que eu escrevia e tinha muitas esperanças literárias no filho, embora nunca me tivesse falado nisso, porque não era dado a confidências ou elogios. A mim não me disse nada mas dizia aos meus irmãos
- O António tem faísca, o António tem faísca
e que, quando comecei a publicar, se orgulhava dos meus produtos. Eu acho que os meus irmãos e eu tivemos muita sorte com os nossos pais, que eram pessoas de uma honestidade irrepreensível, inteligentes, cultas, complexas, rigorosas, com qualidades muito superiores aos defeitos que obviamente também possuíam. Tivemos muita sorte, manos. Agora somos orfãos e não tenho jeito para orfão. Eles também não. E depois perdemos há pouco o Pedro que será sempre uma ferida aberta para nós. E depois da morte do Pedro a nossa mãe informou que não tinha o direito de estar viva com um filho morto. E morreu de puro desgosto, sem doença. Somos orfãos do Pedro também. Sobramos cinco e eu não quero que nenhum deles morra antes de mim. Gostamos uns dos outros sem palavras, com o imenso pudor que herdámos dos nossos pais. Não suporto a ideia da morte do João, do Miguel, do Nuno, do Manuel, como continuo a não suportar a ideia da morte do Pedro. Vou dizer uma coisa. Não devia dizer mas vou dizer. Quando fomos contar à nossa mãe que o Pedro se tinha ido embora ela pronunciou só uma frase:
- Tenham misericórdia de mim.
Sentada na sua cadeira, na sua sala:
- Tenham misericórdia de mim.
Agora está com o nosso pai, a contar, entre muitos outros episódios
- Lembras-te daquela história da escova?
e o meu pai a responder
- Ah
que, no seu caso, às vezes, era um discurso muito comprido. Esta crónica saiu toda descosida e mal feita. Não importa, de que outra forma podia fazê-la? É a minha maneira aselha de pedir que tenham misericórdia de mim, porque não sou o adulto que pensam. Peguem-me ao colo. Às vezes tenho tão poucos anos nos meus anos todos e fico tão leve nessas alturas.
Carlos Esperança Violência doméstica
No início deste mês, um homem de 33 anos matou a mulher de 29 e, a seguir, atirou-se da Ponte 25 Abril, deixando o filho de 3 anos que assistiu ao crime. A monótona notícia que se repete, à média de 40 mulheres por ano, é um ferrete de ignomínia que nos marca com o estigma da brutalidade, um desmentido feroz da brandura que alardeamos.Sei que também há homens que são vítimas da violência doméstica e que o assassinato não é a única forma de violência, mas são as mulheres que estão na vanguarda destacada da estatística das vítimas.
Falar do ‘país de brandos costumes’, expressão cunhada pelo frio ditador que deixava os adversários entregues às mãos criminosas dos esbirros ou o ao gatilho rápido da polícia política, e sabermos que, nos últimos dez anos, a violência doméstica deixou 700 órfãos, é sermos percorridos por um frémito de desconfiança e revolta, sentirmos em cada órfão o filho que a violência abandonou aos baldões da sorte e o remorso da indiferença.
Que raio de genes conservamos ainda das cavernas da nossa ancestralidade, da miséria de um povo que foi sempre pobre e onde o pão se disputava numa leira de terra ou num rego de água para a cultivar, à custa da vida de um irmão ou do pai que teimava em não morrer?
É deste povo que somos que nasce a violência que nos envergonha, a morte que nasce na ponta de uma faca, na lâmina de uma sachola ou no gume de uma foice por motivos que a inteligência repudia ou ciúmes que a educação há muito devia ter erradicado.
Que raio de genes e de gentes, moles com os fortes e violentos com os fracos, incapazes de pensar nos outros, descarregando frustrações e impotência em quem se habituou a ser culpada pela família, Igreja e sociedade que mais facilmente desculpam algozes do que protegem as vítimas.
Fonte: Comissão de Proteção às Vítimas dos Crimes (CPVC)
Adão Cruz A morte do poeta
(Adão Cruz)
O dilema entre o silêncio e a palavra
invade a lógica discursiva que há no ridículo do poema.
Quem tudo vê e nada sabe ou é poeta ou patético peregrino
da teatral mentira que emoldura a poesia
mascarada nos buracos negros das palavras.
Morre a razão e a mente no espaço vazio do poeta
engolido nas areias movediças da estupidez do verso.
Nasce a poesia na semântica farsa das palavras
escondida nos simbolísticos restos do dilema
entre o silêncio do mundo caído em pedaços
ou erguido nos absurdos de um poema.
Ninguém conhece a metáfora da verdade e da mentira
só o poeta na sua indomável vertigem da ilusão
assim descobrindo a poesia nos avessos da razão.
Morre o poeta em suas manhãs de pedra e gelo
entre a verdade da mentira e a mentira da verdade
e todos lhe cobrem o corpo com lençóis de pétalas e sedução
primeiro e último poema do silêncio e da razão.
Mariana Mortágua A caçada
Expresso Online, 27 de Março de 2015
Lucas é um educador dedicado e respeitado na pequena comunidade onde vive e trabalha. Até ao dia em que, chamado ao gabinete da responsável pela escola, e vítima de uma mentira fortuita e aleatória, vê o seu mundo ruir. Abandonado pelos amigos mais próximos, despedido, humilhado e agredido na rua, todos lhe viram as costas e os que não fazem é porque querem fazer justiça pelas suas mãos. Lucas não cometeu crime algum, mas a violência da suspeita (abuso sexual de uma criança) e a repugnância que esse crime justamente nos provoca, transformou o seu dia-a-dia entre a desesperada tentativa de se reabilitar e a de se manter vivo. Lucas é um personagem fictício, de um filme demasiado vivido e real para ser ignorado no preciso momento em que o governo português defende a criação de uma lista, de acesso público, com o nome dos abusadores sexuais de menores. "A Caçada", é esse o nome deste filme dinamarquês, foi premiado em Cannes, e é um poderoso retrato do inferno que se pode esconder ou alimentar das nossas melhores intenções e preocupações.
Como dizia José Soeiro, no Facebook, a proposta do Governo aproveita a boleia da legítima repugnância social generalizada contra o abuso de menores, para colocar em causa direitos cívicos básicos, assumindo-se como um precedente que não pode ser aceite num Estado de Direito. É à boleia das melhores intenções, como é o caso, que começam os piores abusos. Não é por acaso, de resto, que todos os pareceres (Ordem dos Advogados, Ministério Público, Conselho Superior da Magistratura, entre outros) rejeitam a ideia que uma eventual lista de abusadores de crianças possa ser consultada por terceiros - neste caso pais de menores de 16 anos.
Antes de nos determos na lei, e na forma atabalhoada e até interesseira como foi preparada e apresentada, é preciso referir o dado mais relevante - mas talvez mais desconhecido - sobre este crime. Nove em cada dez dos abusos sexuais cometidos sobre crianças acontecem no contexto familiar. É por isso que o principal instrumento no seu combate não é fazer de cada pai, legitimamente preocupado, um voyeur em potência, mas o reforço das redes sociais de acompanhamento e sinalização de menores em situação familiar de risco. Ora, o que o Governo fez foi precisamente o contrário. Agita o populismo fácil de uma lista que, incidinde sobre um crime propenso como mais nenhum a criar agitação e mesmo violência social e local, mas despediu há poucos meses mais de 400 educadores e assistentes sociais. Grande parte destas pessoas trabalhavam precisamente com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. O populismo tem este problema. Agita e esbracej mas não oferece soluções, ou, pior ainda, aparece para esconder as verdadeiras políticas que deixam mais vulneráveis enquanto comunidade.
Se dúvidas existissem sobre a despreocupação com o que realmente se passa no terreno, a Procuradoria Geral da República dá um exemplo gritante. O mesmo Governo que acha bem permitir o acesso de qualquer à identidade de um agressor sexual, mesmo que tenha cumprido pena há 20 anos, não inclui as comissões de proteção de crianças na lista de entidades com acesso direto à mesma.
Que é preciso proteger as crianças nem se discute. Que é preciso melhorar a legislação, nomeadamente nos riscos exponenciados pela internet, vamos a isso. Que é preciso cruzar dados e fornece-los às autoridades competentes, como defende a Directiva Comunitária que o Governo treslê, certíssimo. Que é preciso uma rede social capaz de defender as crianças, estamos todos de acordo menos este Governo - que despediu essas pessoas. Mas entre partir deste consenso e fornecer o acesso quase indiscriminado a essa informação, vai um passo gigante e um risco ainda maior. É o da diferença entre a preocupação e o populismo.
Para quem pense que o início deste texto só acontece num filme, deixo uma citação do parecer da Procuradoria Geral da República. "Já há registos - pelo menos um - de casos de tal natureza. Um pai foi violentamente agredido porque erroneamente tomado como estando a abusar sexualmente da sua filha quando brincava com ela, a aguardar a abertura do infantário onde a deveria deixar. Irrompeu a fúria popular descontrolada".
Nota: A proposta do Governo, bem como os pareceres referidos ao longo deste texto podem ser encontrados aqui
Ossip Mandelstam "Schubert nas águas, nos pássaros Mozart ..."
(Gerhard Richter)
Schubert nas águas, nos pássaros Mozart,
Goethe assobiando pela senda serpejante,
Hamlet em seu passo assustadiço a cogitar
- À turba tomavam pulso nela acreditando.
Talvez antes dos lábios o murmúrio já nascera,
Sem arvoredo caísse a folha baloiçada.
A quem a dádiva de uma obra se faria
Antes da obra já tinha forma traçada.
(in Guarda Minha Fala Para Sempre, Assírio & Alvim)
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...