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Jardim das Delícias



Sábado, 30.04.16

Felicidade - Paulo Varela Gomes

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Paulo Varela Gomes  Felicidade

 

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(Paulo Varela Gomes deixou-nos hoje)

 

   As afinidades íntimas só são partilháveis com quem já as expe­rimentou. Quem nunca sentiu a paixão não pode jamais compreender o que experimenta um apaixonado.

Apesar de saber que é assim, impressiona-me sempre a maneira como muitas pessoas que não sentem qualquer afinidade íntima com os animais se recusam a tentar sequer compreender uma tal afinidade. Eu próprio só percebi o que são os animais passada já metade da minha vida. Lembro-me de que, quando chorei pela primeira vez a morte de um cão, não conseguia acreditar que tal dor fosse possível, pensei estar a enganar-me a mim mesmo, a chorar por outra razão qualquer que corporizava no cão que acabava de morrer. Mas percebi que não, percebi que dói muito a morte de quem amamos e que os animais são como nós, somos nós. Esta experiência é irreversível. Não há retorno para quem foi tocado por ela, como não há possível fuga à paixão para quem um dia se apaixonou.

É normal, portanto, que os outros não nos percebam, a nós que gostamos de animais, mas inquieta-me a recusa obstinada que por vezes entrevejo nessa falta de entendimento. Suponho que aquilo que a provoca é a nossa suave arrogância. Sentimo-nos moral­mente superiores e por vezes deixamos consciente ou inconscientemente que os humanos que não são como nós suspeitem de que é isso que sentimos.

Para este problema não consigo encontrar resposta. Sinto-me de facto moralmente superior a quem não gosta de animais ou a quem lhes é indiferente. Posso começar a tentar explicar um dos aspectos desse sentimento de superioridade com a famosa frase do revolucionário francês Saint-Just pronunciada em 1794: «A feli­cidade é uma ideia nova na Europa.» Saint-Just referia-se eviden­temente não ao sentimento de felicidade, mas à ideia — então de facto nova — de que é possível aos humanos serem felizes nesta vida e não apenas junto a Deus, depois da morte, e que essa pos­sibilidade cria um direito: o direito a ter condições para se ser feliz. Ninguém tem naturalmente a ilusão de que os homens serão alguma vez felizes. Desde que não padeçam de doença, fome, frio, podem, quando muito, ter momentos de felicidade. Um bebé humano pode até ser continuadamente feliz, mas acaba por che­gar o momento em que a lei lhe impõe os seus interditos. Há nos humanos um desequilíbrio congénito que se exprime numa insa­tisfação que não é constante mas é frequente.

Ora, não sucede isto com os animais. Se os alimentarmos, se lhes dermos abrigo, espaço e companhia, se lhes cuidarmos da saúde, se os amarmos, eles são felizes, esfusiantemente felizes, sempre. A infelicidade é a excepção na vida dos animais amados, e não, como no caso dos humanos, a regra. Isto quer dizer que nós, que partilhamos a experiência irreversível do gosto pelos animais, conseguimos por vezes trazer a felicidade absoluta a algumas cria­turas deste planeta.

A felicidade dos animais ainda é uma ideia nova na Terra. Esta­mos a tentar explicá-la e impô-la. Pedimos desculpa pelo incó­modo causado.

(in Ouro e Cinza, Tinta-da-China)

 

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por Augusta Clara às 22:00

Quinta-feira, 28.04.16

A paz num abrir e fechar de olhos - Marcos Cruz

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Marcos Cruz  A paz num abrir e fechar de olhos

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(Adão Cruz)

 

   Há um antes e um depois do respirar fundo assim que se chega ao cais de embarque para a Afurada. Podem o dia ou a noite, dependendo dos casos, ter sido cansativos, frustrantes ou até deprimentes, que ali, massajada pelo bater de asas das pombas, pela bricolage sonora das tainhas nas águas marginais (como elas), pela placidez distante da povoação em frente e pela milagrosa frescura de toda aquela velhice, uma pessoa esvazia-se de tudo. Sobretudo de si.

Lá vem, então, um dos barcos. São dois, o Flor do Douro e o Flor do Gás. Partem de quarto em quarto de hora, para cá e para lá. E não se cansam. A história repete-se, mas as histórias dentro dela e deles têm sempre um dia mais, um gesto novo. As margens são como braços que nos restituem a idade em que do sossego ao espanto, e do espanto ao sossego, vai um abrir e fechar de olhos. É esse o tempo que dura a travessia.

Casimiro Manuel, Cristiana Marlene, Jesus Valei-nos, O Predador, Ricardo Filipe. Atracadas de um lado e do outro, as casquitas de noz têm nos nomes a única raiz, que os cabos também se desprendem. Apetece fazê-lo de cada vez que ali se está, suspenso da brisa e de todos os clichés que, simbolizados no pôr do Sol, essa incorrigível instituição do romantismo, nunca perdem o encanto. Naquele leito, o lodo é um fait divers, não mais que o mau princípio onde a vontade desenha a possibilidade dos sonhos.

Mas fiquemo-nos pelas flores, a do Douro e a do Gás. É uma forma de, atravessando o rio, mantermos os pés na terra. Bandeira de Portugal como cauda de cão feliz, lá vão e vêm uma e outra, envoltas no cheiro dos nomes que lhes deu a dona, D. Maria de Lurdes, 70 anos de vida sofrida, trinta e tal de dona das lanchas. E dos lanches, alegria dos reformados, muitos deles pescadores que ali se sentam para bater trunfos na mesa, beber uns copos e, se a maré estiver de feição, tirar peixes a rios antigos.

A paz revê-se nisto, superior à perturbação dos prédios feios que vão espreitando no cimo da encosta, por sobre a dita Afurada de casas francas e relações firmes. O rio propaga o som das sandálias que lhe marcam o ritmo e entra-nos na boca como a saliva do apetite, feito desejo de nos descozinharmos. A crueza acena dali. Crua e cruel, por se mostrar tão nossa e ser dos outros. A Afurada é esse espelho. Cortando o rio de sol a sol, o Flor do Douro e o Flor do Gás são vozes únicas em defesa da travessia. Um euro para cá, um euro para lá. Se euros maiores lhes cortarem o pio, respirar fundo nunca mais vai ser a mesma coisa.

 

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por Augusta Clara às 15:30

Quarta-feira, 27.04.16

Da bondade dos desconhecidos - Carla Romualdo

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Carla Romualdo  Da bondade dos desconhecidos

 

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(Adão Cruz)

 

        Quando comecei a subir a rua, o Vítor ainda não era o Vítor, mas um homem em queda. Eu ia apressada, muito apressada, e ao longe vi um corpo que se deixava abater. Poucas coisas impressionam mais do que o corpo de um homem caído no chão. Quando cheguei ao pé dele perguntei-lhe, reconheço que foi uma idiotice, se estava a sentir-se mal. Toquei-lhe no ombro, insisti, e ele abriu os olhos. Era difícil adivinhar-lhe a idade, cinquenta, sessenta anos, cabelo cortado muito rente. Balbuciava. Aproximei-me para perceber o que dizia e ouvi, distintamente: “Quero morrer.”

Foi nesse momento que apareceu outro homem, vinha a correr, ajoelhou-se logo junto ao corpo do homem deitado no chão, e começou a perguntar-lhe coisas simples, sorridente e com voz tranquila, como se levasse a vida toda a socorrer gente caída. Ouviu as mesmas palavras que me tinham sido ditas. Recordou ao homem cujo nome ainda não sabíamos que não há dificuldade na vida da qual não se possa fazer um degrau para um dia melhor. O seu discurso era comovedor, não porque parecesse capaz de fazer grande diferença àquele a quem se dirigia (e quem sabe? talvez fizesse), mas sobretudo porque era vibrante de esperança e fé nos outros.

Levantámo-lo do chão, tentámos mantê-lo equilibrado, perguntámos-lhe o nome. Do outro lado da via rápida estavam as urgências do hospital, mas como chegar ali? O Vítor cambaleava, alcoolizado, sem forças, e queria que o deixassem no chão. Eu estava a caminho das urgências, ansiosa por chegar lá, e embora não visse como poderia fazê-lo, a tentação de fugir e deixar o Vítor e os seus problemas para trás não me largava. Comentei-o com o meu parceiro de socorro, o Daniel. Contou-me que também estava a caminho do hospital, para visitar a mulher e o filho recém-nascido. Apesar disso, amparava o Vítor, que se agarrava a ele e já não o queria deixar ir embora.

– Estou aqui, amigo, conte-me o que lhe aconteceu na vida para ficar assim.

Do outro lado da estrada, as urgências a que não conseguíamos chegar, muito menos com o Vítor. Estávamos os dois presos a este homem, o Daniel que queria ir ver o seu filho, eu que queria ir ver o meu pai, qual dos dois tinha melhor justificação para ir embora?

Combinámos um plano. Eu ia às urgências, encontrava alguém a quem contar a história, ficava a saber se tínhamos de ligar para o INEM ou se alguém poderia ir buscá-lo, afinal era só atravessar a estrada. O Daniel ficava com o Vítor, e eu ligava-lhe assim que tivesse notícias. A ideia foi do Daniel, claramente o mais generoso de nós, que me ofereceu maneira de ir embora sem levar um peso na consciência. Fiz tal como ele sugeriu, e a primeira pessoa que encontrei foi o segurança que guarda o acesso às urgências, um homem gigantesco, de braços musculados, que reconheceu o Vítor assim que eu comecei a contar a história.

– É a quarta vez que o INEM o traz hoje mas ele foge sempre. Os senhores têm de chamar o INEM, ninguém pode sair daqui para ir buscá-lo.

Telefonei ao Daniel e contei-lhe tudo. Ficou, como eu, desiludido. Esperávamos, de forma um tanto ingénua, que chegar ao hospital fosse o final feliz possível, isto é, que a intervenção de um profissional de saúde pudesse ser o início da solução para os problemas do Vítor, que haveria de vir um psiquiatra falar com ele, que daí seria encaminhado para um assistente social, que uma rede de apoio poderia traçar o melhor caminho para ajudar este homem. Agora nem sequer sabíamos se o Vítor aguentaria por ali o tempo suficiente para chegar a ser consultado. Quem poderia ajudá-lo? Um médico que conseguisse deitar-lhe a mão antes de fugir? A polícia? Um padre? Dois desconhecidos, como nós?

Despedimo-nos ao telefone. O Vítor, suponho, deu novamente entrada nas urgências. Quando saí não o encontrei. Fiquei a pensar nele e fiquei a pensar no Daniel. A bondade dos desconhecidos, essa a cujo braço se agarrava a pobre Blanche DuBois, é a humanidade no seu melhor. O Daniel estava ansioso por ver a mulher e o filho, tinha nesse facto uma desculpa perfeita para fugir dali, ninguém poderia censurar um pai impaciente por pegar no seu recém-nascido ao colo, mas deteve-se e ficou porque achou que havia ali um desconhecido que ainda precisava mais dele, naquele momento, naquela beira de estrada, mesmo em frente às urgências, mas muito longe delas.

Com os melhores desejos para o Vítor, este texto é para o Daniel, que me deu uma bela lição naquela tarde.

 

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por Augusta Clara às 14:00

Segunda-feira, 25.04.16

Tanto mar - Chico Buarque

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Chico Buarque  Tanto mar

 

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por Augusta Clara às 14:00

Segunda-feira, 25.04.16

Hoje é Dia 25 de Abril.

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A Revolução dos Cravos faz 42 anos

 

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por Augusta Clara às 07:00

Segunda-feira, 25.04.16

Canto moço - Zeca Afonso

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Zeca Afonso  Canto moço

 

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por Augusta Clara às 00:01

Domingo, 24.04.16

Portugal - Georges Moustaki

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Georges Moustaki  Portugal

 

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por Augusta Clara às 20:00

Domingo, 24.04.16

Concerto para Violino (2015) - António Pinho Vargas

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António Pinho Vargas  Concerto para Violino

 

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por Augusta Clara às 17:45

Domingo, 24.04.16

Casinha branca - Maria Bethânia

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Maria Bethânia  Casinha branca

 

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por Augusta Clara às 15:00

Sábado, 23.04.16

Livros - Caetano Veloso

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Caetano Veloso  Livros

 

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por Augusta Clara às 20:00

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