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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Expresso - Revista, 25 de Agosto de 2018
Luciana Leiderfarb (texto) e Rui Duarte Silva (fotografias)
Entra na sala, os óculos, a afabilidade, o sorriso de sempre. Mas há um elemento novo, um caderninho que pousa na mesa antes de iniciar a conversa. “Você desculpe, agora tem de ser assim.” E foi. Escreveu muitas palavras a fim de as descodificar devidamente, algumas só para ter a certeza, que isso de errar não está no seu ADN. Manuel Sobrinho Simões, patologista português, em 2016 eleito pelos pares o mais influente do mundo, autoridade no cancro da tiroide, tem 70 anos e vai a caminho dos 71, mas ainda não assumiu a reforma. “Não a ponho na biografia”, diz. Nem a inscreve no quotidiano, continuando a ir todos os dias para o seu escritório no IPATIMUP, o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto que fundou há quase 30 anos e que é um dos centros de excelência mundiais no que toca à investigação do cancro. É nessa paisagem que nos recebe, não fosse um homem de hábitos — que, no entanto, nunca ficou no mesmo lugar. Casado com a pediatra Maria Augusta Areias, pai de três e avô de seis, domina “o paleio” biológico mas sabe, cada vez mais, que não é isso o que o define. Afinal, quem é? Um homem com medo, racional e emotivo, “competitivo e orgulhoso”, “a ver a descida”, a aprender a descer, que valoriza mais as chegadas do que as partidas, que procura — e encontrou — uma forma de eternidade. E que, pragmático, vira para si mesmo a pergunta: “Para quê?”
Para que serve esse caderno?
Agora ando sempre com ele atrás. Por causa da minha chatice. Como sabe, tive um AVC.
E tê-lo ajuda-o de que forma?
Ajuda-me a separar as sílabas de certas palavras. Por exemplo, só consigo dizer ‘sussurrar’ ou ‘helicóptero’ se o escrever. Na verdade, poderia não ter o caderno, mas faço gosto de ter. É uma forma de disclosure: meus amigos, eu tive esta chatice, não sou um atrasado. Tenho só mais dificuldade.
Que dificuldade é essa?
Falo inglês e francês, e um pouco de espanhol. Agora, quando tenho de fazer relatórios, não sei se estou a escrever em inglês ou em francês. Se falar de coisas técnico-científicas, o inglês continua fluente. Mas se conversarem comigo a um outro nível, mais pessoal, fico perdido. Não consigo fazer small talk.
A ‘chatice’, quando aconteceu?
Foi a 13 de maio. O que tem graça, porque a minha mãe é devota de Nossa Senhora de Fátima e quando fiquei melhor pensou que era um milagre. Estava no Porto, em casa, era de manhã. Levantei-me e percebi que não estava a conseguir ler o Expresso. A Gu [Maria Augusta Areias, a mulher], que é médica, disse logo que eu tinha qualquer coisa. Ainda resolvi ir comprar vinho e ver a pressão dos pneus. Já estava a ter um AVC. Quando voltei a casa, enfiaram-me na ambulância para o São João.
Não se apercebeu de nada?
Não, porque não dói. A dor seria um grande sinal. O que senti foi uma dificuldade, um trocar os nomes. Descobriu-se que tive um ‘embolismo paradoxal’: a formação de trombos mínimos que se acumulam na aurícula direita e que poderiam não dar problemas, mas um deles passou para a esquerda e encravou numa arteriazinha cerebral muito periférica. A 8 de junho fecharam-me esse canal, e agora está tudo bem. Em setembro já me deixam voltar para o circo, tenho quatro viagens marcadas. É um desafio.
E ser um desafio é bom.
Há um elemento que não é só a vontade, é o risco. Eu, que nunca decorei nenhum número, mas que sempre decorei todos os nomes, perdi isso, esqueço-me. Tenho também parafasias, o que tem a sua graça. Ia oferecer três garrafas a uns homens que nos arranjaram uns pinheiros e eu disse que tinha três ‘gravatas’ para lhes dar.
Professor, eu acho graça a que ache graça. Muitos no seu lugar teriam ficado aterrorizados.
É a única forma de lidar com isto. Repare que, quando acordo no primeiro dia, os médicos mostram-me um cão. Eu digo “cão”. Mostram-me um gato e eu digo: “Não é tigre, mas não sei o nome.” Mostram-me uma caneta e eu sei o que é — é uma esferográfica, mas quero a outra palavra. E não a tenho. É um susto tremendo.
O susto de não ter palavras para nomear.
Apanha-se um susto porque são palavras que você sabe, só não as consegue dizer. No fundo, tinha uma lesão. E tive sorte. Por acaso isto também tem graça. Sou médico, e os meus amigos dos AVC dizem-me que, em Portugal, o AVC torna as senhoras mais faladoras enquanto os homens ficam patos mudos. Eu sou um tipo da biologia, tenho todo este paleio do cancro, mas para isto não tenho explicação. Dizia ao meu filho: “Traz-me o jornal”, e ele respondia: “Pai, porque é que me pede o elevador?” O que posso dizer é que depois do susto comecei a fazer esforços, a aprender. Às três da manhã acordava com o apelido ‘Wilde’ na cabeça, sem me lembrar do nome. Escrevia ‘Oscar’ e pensava: não reconheço isto. Ora, não reconhecer as palavras por escrito é estranhíssimo.
Pode ser mais confuso para um leitor, para um homem que lê.
Eu leio muito depressa, mas se agora me pedir para ler alto vou cometer muitos erros. Se tiver de dizer um poema, a preocupação por pronunciar bem as palavras faz-me deixar de o perceber.
Como é adaptar-se a uma realidade em que as palavras não são o que sempre foram?
Posso dizer-lhe o que faço: ponho-me à prova constantemente. Se às duas da manhã não me lembrar de quem era o mordomo no anúncio do Ferrero Rocher, não descanso até o encontrar. Vinha-me à cabeça Tenório ou Gervásio — era Ambrósio.
Qual a sensação de resolver o mistério? Alívio?
Arranja-se uma justificação. Afinal, os nomes tinham relação entre eles. As pessoas acham que fiquei muito bem, e estou bem. Mas se começar a ficar confortável baixo a defesa e os erros aparecem.
Que tipo de paciente é?
Sou muito fácil, faço tudo o que me mandam. Faço fisioterapia da fala, decoro lengalengas, gravo-me a ler em voz alta e verifico os erros... Todos os dias de manhã. E também tenho dito poemas cada vez mais difíceis. Porque sinto sempre, a todo o momento, esta nova fragilidade.
E não está habituado a falhar.
Sempre fui um performer. E já fiz o estudo suficiente para perceber onde é que me engano, quais são os sons que me levam a errar. Então procuro um sinónimo, para isso não acontecer.
“A minha grande descoberta foi que as explicações biológicas fazem sentido para muita coisa, mas não para explicar quem sou”
Uma vez disse que o seu maior medo é “ser menos eu”. Perder-se.
O AVC simboliza essa possibilidade. Já passei por outras situações-limite. Em 2003 estava em Oslo, onde recebi uma medalha do rei, e ia para Londres. Como sou um workaholic, levantei-me às 6h, não almocei e apanhei o avião. Na viagem, desmaiei. Ao chegar ao Porto descobriram um aneurisma congénito na ilíaca primitiva esquerda. Deram-me uma aspirina e pronto. Em 2017 tenho uma dor horrível, penso que é a anca e a artrose. Encontram um tumor que, afinal, era sangue proveniente da rotura do aneurisma. Mas fizeram-me o diagnóstico de cancro. E claro que me assustou, embora não fosse a mesma coisa.
Porquê? O que distingue o risco das duas situações?
Conheço a lógica do cancro. E o sofrimento. Mas não senti o medo de deixar de ser eu. Tinha pena, não queria morrer. Desta vez, a pergunta era: quem é que vou ficar a ser? Tenho muita curiosidade e acho graça às pessoas, e a minha grande descoberta foi que as explicações biológicas fazem sentido para muita coisa, mas não para explicar quem sou.
Não somos só genética.
Se contarmos a história da nossa família, o que é que isso tem de genético? É uma outra dimensão sobre a qual sabemos muito pouco. Cada vez mais percebemos que a divisão entre o lado natural e o cultural é ilusória e que as duas coisas estão ligadas. Mas, por estranho que pareça, tudo o que é psicológico ou sociológico escapa-me, não o domino — dominando o resto.
E isso que lhe escapa é o fundamental?
Não consigo explicar coisas como o gosto pela música, percebe? Dou-lhe um exemplo: com esta chatice toda, começaram-me a crescer as unhas mais depressa. Cortava-as uma vez por semana e agora faço-o a cada três dias. Tentei ver se isto já me aconteceu no passado. E de facto, quando ia para África ou para a Ásia demoravam a crescer. Mas quando ia para os Estados Unidos cresciam imenso. Era o stresse, tal como agora.
Afinal, o que lhe aconteceu não teve assim tanta graça.
Passei por um stresse brutal. E ainda estou nele, mas não tenho alternativa a não ser tentar perceber. E perceber que o stresse não me atinge de uma forma que eu possa explicar. Acontece, ponto.
Diz que a maior dificuldade é definir-se fora do biológico, mas também escreve: “A família aperta-nos como uma tenaz.” É toda uma definição.
O que sinto é que a definição do que sou é cada vez mais cultural e menos genética. Sabe o que acho extraordinário em Portugal? Não há país mais homogéneo geneticamente, porque estamos afastados do centro — e assim nos mantivemos. Porque é que ficamos diversos? Porque começamos a sair e a trazer genes. No entanto, as outras coisas que trouxemos — religiões, cultura, costumes — definem-nos mais do que os genes. Os portugueses são uns tipos que tiveram uma escravatura horrorosa, que não se pode contar a ninguém. E o problema do valor do trabalho em Portugal vem daí, não é genético.
Acha que Portugal tem um problema com o trabalho?
Estou a exagerar, mas durante muitos anos incorporámos formas alternativas ao trabalho. Como somos periféricos e não tínhamos facilidade de criar riqueza e competir, fomos para o Atlântico. Isso não é trabalho da forma como hoje o concebemos. Por outro lado, tínhamos escravos, dez por cento da população era negra. Nunca dizemos isso. E continuamos a ter uma tradição de pequenas tribos familiares, agora partidos políticos ou a maçonaria, que são fórmulas para substituírem a questão da competência.
No livro “Os Portugueses” [Ed. Gradiva] , publicado em dezembro, diz que “Portugal só evoluirá se partir do concreto para as grandes sínteses; se partir das pessoas, da sua literacia, para a sociedade”. Quer explicar?
Em Portugal pergunta-se pouco ou não se pergunta. Mas o aspeto mais negativo é a burocratização da sociedade, desde o Parlamento — em que os partidos não representam realidades comuns — ao ministério que não percebe nada do hospital. Temos uma tradição de centralização assustadora. E há uma ausência de mecanismos de recompensa. Não temos a tradição de recompensar o mérito. Por outro lado, vinha agora a ouvir na rádio que há 12 mil professores em baixa prolongada. E, nos hospitais, o absentismo de técnicos atinge os 50%. Não temos, portanto, qualquer controlo do sistema. E não só não perguntamos porquê como começamos por cima em vez de começar por baixo.
‘Porquê’ é a pergunta-chave?
Não, a grande pergunta é ‘para quê’. E a maior parte das pessoas não sabe responder. Existe a tradição de ter uma camada de capatazes que se misturam de forma promiscua com os edis, e essa gente não está a responder a esta pergunta. Está a responder a uma necessidade de cima para baixo que tem a ver sobretudo com benefícios eleitorais, informalidade e corrupção. Não temos hierarquia nem mérito, somos todos primos e cunhados, ou membros do mesmo clube. Pergunte-me porque é que Portugal é um país tão assimétrico.
Considere a pergunta feita.
É a periferia, a pobreza, era a religião, o clima, ninguém casava connosco. E hoje é o rescaldo de tudo isso, a que se acrescenta uma organização tribal e de capelas que mantém tudo na mesma.
Há pouco falou do “paleio do cancro”, como se fosse simples. Não imagina a estranheza dessa frase para um leigo.
É simples. À medida que tivermos uma intervenção mais precoce, o problema vai desaparecer. O mesmo não se pode dizer do Alzheimer, das demências cognitivas, das falências do sistema. Não vamos morrer do coração nem de cancro, mas de doenças degenerativas, de infeções. No cancro, as células são filhas da mesma mãe e hoje compreendemos bem os seus mecanismos. Não sabemos é como tratar doentes em que o cancro já deixou de ter fronteiras e recriou um novo organismo.
Em que se torna um ‘outro’, um invasor.
E que é muito parecido connosco, e mais eficiente do que nós. Então, o problema é tratar — mas perceber, percebemos.
“Células com uma perturbação nos mecanismos de regeneração, que se tornam mortais.” A frase é sua e há nela um toque de admiração. O cancro como algo admirável.
Mas é admirável! Por isso é difícil de curar. Se as células fossem proliferativas, tratávamos com venenos. Mas não é tão fácil tratar pessoas com uma reserva de células que são mantidas sem dividir e que são extremamente resilientes. Como é que ganhamos isto? Quando começamos a estudar os animais, percebemos que, à exceção do homem, a maioria não tem muita capacidade de sobreviver. Onde há essa capacidade? Nas plantas. Basta lembrar os plátanos, que voltam a crescer após podas mutilantes todos os anos, e que desenvolveram mecanismos extraordinários para serem quase imortais. E repare que são proteínas muito próximas das nossas, não são outras. Não são alien.
As plantas e o cancro têm algo em comum?
Há uma grande semelhança entre todos os organismos que tenham como grande aspiração não morrer. A proliferação das plantas é um espanto: o crescimento faz-se com respeito das fronteiras e só temos de colher ou fazer podas. E não há nada no reino animal que seja mais proliferativo que um novo ser a partir do ovo. Esse crescimento, do qual sairão jovens que mais tarde vão ter crianças, é um processo que se faz com regras: não há invasão, isto é, respeitam-se as fronteiras dos tecidos, e as células dividem-se, crescem e morrem. O cancro aparece porque se acumulam proteínas que bloqueiam o suicídio natural das células. E estas, uma vez em número aumentado, migram para outros sítios — deixam de respeitar fronteiras. Tanto os seres vivos como os cancros são organismos únicos, daí ser tão difícil passar um cancro para outro ser vivo. Um ser vivo, assim como o seu cancro, tem uma identidade.
Quer dizer que o cancro é algo de muito pessoal.
É a prova de que ainda temos capacidade de evoluir. No fundo, se pudéssemos evoluir, poderíamos ter mecanismos seletivos mais eficientes. O cancro gostaria de ser mais eficiente, mas quando fica mais eficiente perde a capacidade de respeitar fronteiras. Se não nos metermos em guerras, resta-nos a ocorrência cada vez mais frequente de cancro. E se os homens viverem 100, 120 anos, teremos todos um ou mais do que um cancro. Somos cada vez mais superprotetores do homo sapiens, embora estejamos a engordar demasiado, a ficar diabéticos, hipertensos, com problemas da coluna... São dezenas de anos de exposição a agressões físicas, químicas, microbiológicas. Sabe, o homo sapiens rebentou com tudo. A passagem do homem coletor e caçador para o agricultor e domesticador, com um cérebro de 1500 cm cúbicos, fez-se à custa da destruição absoluta de tudo o resto. E vai acabar por morrer quando esgotar tudo — o desafio será a revolução da genética germinativa, não o cancro. O homo sapiens não tem grande imaginação, há é alguns tipos geniais. Os poetas, os músicos. Isso, sim, é algo que me deixa espantado. Como é que uma pessoa treina para ser pianista?
Como é que alguém treina para ser um patologista, um médico?
Isso tem um output que é medido pela sua aplicabilidade. E essa é a diferença entre o material e imaterial. No domínio material, introduzimos muita coisa que é facilmente mensurável. A arte não é mensurável. A beleza.
Mas em qualquer domínio existe o elemento surpresa. Mesmo na ciência.
Claro, por isso existem as ordens e as corporações. Indecentes, porque servem para defender os profissionais e não os desgraçados que os procuram.
Já cometeu algum erro?
Muitos, até demais. Conto-lhe um. Há muitos anos, o meu chefe tinha um doente do esófago. Fez-se uma biopsia e achei que era cancro. Entretanto, fui para férias e, ao voltar, ele tinha tirado o esófago ao doente — uma cirurgia horrível à qual por acaso sobreviveu. Afinal, não havia cancro nenhum, era um processo inflamatório grave e eu tinha feito sobrediagnóstico. O que se faz hoje? Pede-se segunda opinião. Sempre.
Foi para não correr riscos desses que decidiu não fazer clínica?
Sim, pela incerteza. Vejo-me à rasca, tenho medo. É um equilíbrio muito frágil entre a dificuldade de arriscar e o não resolver por excesso. Porque a prática médica é sempre baseada na noção de que as pessoas, perante a dúvida, devem ser tratadas. Há uma tendência horrível para o sobretratamento, que assenta no sobrediagnóstico.
Falou muitas vezes nas IDLE [indolent lesions of epithelial origin]. Lesões que, se forem vistas, são consideradas cancro. Como se lida com isto?
A evolução atual nos países civilizados é o watchful waiting. É poder dizer à pessoa para voltar daqui a três meses para ver se a lesão aumentou. Os japoneses estão a fazê-lo maravilhosamente. Nós não. Nós não resistimos a enfiar uma agulha. E desde o momento em que enfiamos a agulha encontramos lá células. São células atípicas ou malignas, mas com possibilidades ínfimas de virem de a ser clinicamente um cancro, de se espalharem.
Como não querer arrancar esse maligno que está em nós?
Repare, seria mutilante. Dávamos cabo de toda a gente. Todos nós temos sempre células deste tipo, sobretudo nos sistemas digestivo, respiratório e urinário, na mama e na próstata — na maior parte das vezes, conseguimos destruí-las. Não sei se sabe isto mas, em Portugal, o norte tem oito vezes mais cancro da tiroide do que o centro e o sul. E a mortalidade é a mesma. Isto quer dizer que há sobrediagnóstico no norte — cancros muito pequeninos nos quais não deveríamos mexer, nem deveríamos sequer nomeá-los como tal.
O mero nome leva à ação. O médico tem o direito de não nomear?
É uma discussão em aberto. Propusemos que se chamassem ‘microtumores’, mas os americanos não quiseram, argumentando que há um risco. Pois há: um em dez mil. Respondendo à pergunta, uma vez que se encontra um cancro não se consegue ignorar. Nem pelo médico nem pelo doente. E os processos acabam sempre com a mutilação, com custos brutais em todos os sentidos.
Há uma pulsão de vida que nos leva a agir, mesmo que não seja necessário.
Só que nós agora temos capacidades extraordinárias de diagnóstico de coisas minúsculas. E se me pedirem para jurar que aquilo nunca vai ser um cancro, não o posso fazer. Continuo a pensar que o problema em Portugal é termos senhoras a quem não são diagnosticados cancros do colo do útero porque não fazem os exames ou os fazem tarde demais. Nos países subdesenvolvidos, ainda temos a questão do cancro demasiado avançado e da falta de acesso. No entanto, temos já uma população substancial com excesso de tudo, até no acesso aos mais avançados meios de diagnóstico. O português adora fazer TAC — somos, depois da Grécia, o país com mais aparelhos de TAC da Europa.
Afirmou que o cancro é a prova de que ainda temos capacidade de evoluir. E já o tinha ouvido dizer que é “o preço que temos a pagar por mantermos a espécie viva”. Em que sentido?
É que nós não temos nenhuma razão para acabar. Quando eu era estudante, vigorava uma lógica muito linear: o homem pôs-se de pé porque desenvolveu o cérebro. A descoberta de hominídeos que se puseram de pé antes do homo sapiens significa que a espécie, tal como os lobos e os cavalos, teve uma grande variedade. A evolução foi fruto de uma competição entre diversos hominídeos, e isto significa que a espécie continuaria a evoluir. O cancro significa que o homem tem células capazes de evoluir. No limite, só temos capacidade de progredir se tivermos células de reserva capazes de ir mais longe do que foram até agora. Nós não deveríamos ter parado no sapiens.
O cancro é uma espécie de sintoma evolutivo que nos mata?
Não, é um sintoma da existência de dinâmica evolutiva — que já não conduz a evolução nenhuma. Ponha a questão desta forma: porque é que não há mais cancros no cão ou no gato? Primeiro, eles não vivem tanto como nós. Segundo, o cancro neles não é um mecanismo que tenha algo para selecionar. Temos cancro porque temos a possibilidade de gerar instabilidade genética, e esta é a única maneira de evoluir. Ainda temos essa energia. O cancro é o preço que pagamos por isso.
“Nunca assumi que me jubilei. Porque para alguém com uma atividade intelectual, essa palavra tem qualquer coisa de humilhante”
Então, a energia do cancro é a mesma que nos mantém vivos.
Exatamente a mesma. E o homem nisto é a grande novidade. As outras espécies têm a fase reprodutiva e depois morrem. Nós esticamos a vida, e isso é cultural. Mas sobre isso não sei o suficiente.
Vai fazer 71 anos em setembro. Sentiu os 70 como uma fronteira?
Apanhei um susto. Nunca tinha percebido que isso me ia acontecer. No dia seguinte fui para o [Hospital] São João, pus o dedo no scanner para entrar e o sistema começou a apitar. “Nome desconhecido”, veja lá. Foi muito humilhante. Eles tinham-me estimulado a concorrer a emérito, coisa que fiz. Agora tenho um gabinete pequeno, não recebo ordenado, mas faço as reuniões com os alunos.
Que outras idades foram marcantes para si?
De longe, o momento mais sério de todos foi o nascimento da minha neta mais velha. Foi quando percebi que eu ia morrer.
Porque é que essa compreensão adveio de um nascimento?
Em geral, eu percebia que as pessoas morriam. Fazia autópsias, lidava com a morte. O que nunca tinha percebido é que eu próprio ia morrer. E este sentimento que tive em relação à minha neta até nem foi triste, foi de ternura.
Era a segunda geração depois de si, aquela que ia abandonar a meio.
Provavelmente era isso, sim. Já não os ia ver formados, crescidos. Outra fase terrível foi quando o meu pai morreu. Tinha 71 anos e um cancro. O processo não foi fácil, e aí sim houve muita tristeza, porque eu adorava o meu pai. Mas o interessante é que não percebi que aquilo tinha a ver comigo, que me falava diretamente. Se quiser, há aqui alguma inconsciência. Uma negação da evidência.
E mais para trás?
Éramos quatro irmãos — três irmãs e eu. Quando a mais nova teve uma criança também foi uma surpresa. Já ser eu a tê-los era natural. É inexplicável, porque ter uma criança faz sentido nos dois casos.
Os filhos não o confrontam com a sua mortalidade e sim com a sua eternidade.
É a fase boa. Eu safei-me sempre por ter alunos e ter internos, jovens que são treinados por mim. Ter uma escola tem um toque de eternidade.
E ter uma neta é ser um avô.
É ser aquele que fica para trás, que já está noutra fase. Esse futuro que ela representa você já não vai ver. Enquanto antes andava inebriado e não pensava no futuro, era um pai com crianças, com filhos, de repente com a neta olho para a frente e há menos caminho. O caminho está curto.
Inebriado é uma palavra bonita aplicada aos filhos.
Tive sempre uma relação muito engraçada com eles. Nunca fui muito atento, mas tive muita proximidade ao longo do seu desenvolvimento. O crescimento deles era paralelo ao meu, eu também estava a crescer. A diferença é que um avô está a descer. Está a ver a descida. É uma pena, tenho pena.
Pouco antes de se jubilar, disse: “Estou a correr aquela coisa do fim.” É isso?
E com uma fuga em frente do caraças! Acho até que tive esta chatice pelo exagero. O número de coisas que aceitei era obsceno, parecia doido. Não conseguia parar.
Nem sequer deu a última aula.
Não, e tenho vergonha disso. No limite, aquilo é aldrabar.
Aldrabar ou aldrabar-se?
Claro, só a mim, a mais ninguém. Nunca assumi que me jubilei, não o ponho na biografia. Porque para alguém com uma atividade intelectual, essa palavra tem qualquer coisa de humilhante. Há uma associação com a perda de qualidades, com dar barraca. Sou muito orgulhoso, o meu grande medo é perder.
Mas isso não é inexorável?
É. Só que eu fiz por me esquecer sempre, está a ver?
Um dia contou a história de um ratinho muito inteligente que não aprende porque não consegue esquecer-se. O grande truque é o esquecimento.
Esse foi sempre o meu truque. Eu vivo muito de histórias, porque acho graça. Podem não ter significado nenhum, mas é o mais humano que há. E a gente só lhes acha graça enquanto não tem a pressão de que tudo vai acabar. Ora, eu estou a achar cada vez mais graça. Mas sei que estão a acabar.
Vem todos os dias ao Instituto?
Venho, só que em vez de chegar às 8h, chego às 11h, porque de manhã faço os exercícios de linguagem. Demoro mais tempo a fazer as coisas, porque perdi eficiência. E estou a tentar recuperar. Sou muito competitivo, sou assustador.
Um assustador assustado.
Muito assustado, e não era. Embora esteja a reagir. Desde o início soube que esse era o caminho.
Qual é a sua primeira memória?
Não tenho. Só consigo reconstruir a memória a partir de fotografias. Com os avós, com os meus pais, as minhas irmãs. Não tenho memórias muito minhas, tenho sempre uma reconstrução. É mau e bom, torna-me um contador de histórias. Em vez de factos, tenho a interpretação. Mesmo agora, tenho tido cenas muito cómicas. Tudo quanto é antigo está presente — até com alguma tonalidade sépia, alterada. Continuo a fazer diagnósticos, e isso faço bem. É uma coisa muito autoritária fazer um diagnóstico, não tem nada de científico. E estou mais à vontade nessa área do que no resto. Tenho dificuldade em pensar noutras direções, otherness. Ou se calhar tenho menos tempo. Se calhar não vou ter tempo para viver tanto tempo.
Há um otherness que também foge desta conversa. Como se não se deixasse apanhar nesse outro lado.
Porque deste lado está o palpável, o utilitário. Uma colega sua perguntou-me o que me faz correr e eu não sei, talvez o medo da morte. A única coisa que é verdadeira para mim, e que agora se tornou mais nítida, é o medo da morte.
E o amor?
Foi muito bom, mas não me resolve esse problema. E até sou muito afetivo, gosto muito de pessoas. Mas já não me sossegam.
É como se de repente houvesse só presente.
É interessante quando penso, por exemplo, na ligação com os meus filhos. Somos muito próximos, andavam sempre comigo nas minhas viagens. No entanto, não me lembro deles até os dez anos. E eu fazia tudo, tomava conta, e não me lembro. O que é estranho.
Onde estava para não se lembrar?
Exatamente, onde estava? Eram três crianças, eu mudava fraldas, dava banho, dava de comer. Uma vez por semana ficavam por minha conta. E durante a infância deles alternávamos as férias, e passavam um mês sozinhos com um de nós, enquanto o outro ia só ao fim de semana. Já agora, em relação ao que não me lembro, isso acontece-me também com as casas. Lembro-me da dos meus avós, mas não das casas onde eu vivi.
“Andei por todo o lado, mas tinha sempre a certeza de que ia lá voltar. Agora, sei que isso pode não acontecer. E não é amargo, é doce”
O que tem a casa dos avós?
Não sei, mas é mesmo marcante, profunda.
Em “Os Portugueses” coloca muito esta questão: “De onde vimos?”
É o ovo. No outro dia, numa reunião em que estava o Presidente Marcelo, disse-lhe: “Já viu que o Sr. Presidente foi um ovo?” Já viu o que é ter duas células, que se subdividem em quatro, oito, até ficarmos isto?
Nunca o pensamos, de facto.
Fomos uma célula! Agora, eu sou muito bom a pensar em termos biológicos, mas não percebo nada sobre como é que a gente aprende. Sabe-se muito pouco disso.
Mas sabe de onde vem, quem o influenciou.
Claro! Tenho o meu pai, o professor Daniel Serrão, o Vincents Johannessen, um génio que se doutorou comigo. São pessoas com quem aprendi muito. Mas nunca percebi o que é que nos faz mudar. Que as unhas cresçam mais rapidamente por causa dos nervos é extraordinário. Do ponto de vista biológico percebo, mas não chega. Toda a minha vida quis ser melhor aluno, melhor professor, melhor médico. Nunca tive é uma aproximação filosófica às coisas. Agora, neste mundo em que sou muito bom, eles não me topam.
Parece que abre a porta mas afinal é só um centímetro, é isso?
É, sim. E esperam que diga coisas do caraças sobre o que é o homem, percebe?
Sente que há muita expectativa sobre si?
Sou um profissional e faço muitas conferências. Dou muita atenção às pessoas e às suas perguntas, mas não sei se me dou a conhecer. Não tenho uma aproximação teleológica nem ontológica. Sou um animalzito.
Mas uma coisa é não saber o que é o homem, outra é saber quem se é. Quem é?
Voltamos sempre ao mesmo. Descrevo-me sempre pelo output, o mensurável. Sou um tipo sério, decente, bom profissional... Sou muito mais o que é possível caracterizar de fora, do que o que eu possa dizer de mim a partir de dentro.
Um homem racional que chora e que tem medo. Estamos no bom caminho?
Admito que sim. Tenho muito medo e é verdade que choro, mas sem sofrer. Choro muito por estímulos primários de ternura. Emociono-me mais a ver chegar uma pessoa do que a ver um barco a afastar-se. No aeroporto, comove-me mais a vinda de alguém do que a despedida. Agora vai perguntar-me porquê. E eu acho que se deve a mecanismos meus de defesa, para não sofrer.
Ia perguntar isso, sim. Pelo tal truque de que falou antes.
Todos vivemos de truques para sofrer o menos possível. Nunca fiz medicina clínica, e uma das razões é o medo de lidar com doenças. Eu sei que posso diagnosticar uma coisa muito má, mas sou mediado pelo médico que me traz o relatório. Agora estou a pensar que, se calhar, a razão por que me emociono quando uma pessoa chega é porque é mais seguro e bom. Não acho graça nenhuma à incerteza.
Ao irreversível?
Ao ‘posso não voltar a ver esta pessoa’.
O sentimento de não voltar a atrás afeta-o?
Mais recentemente, sim. Passei muito tempo da minha vida a circular. Andei por todo o lado mas tinha sempre a certeza, mesmo na Patagónia, de que ia lá voltar. Agora, quando vou, sei que posso não voltar. E não é amargo, é doce.
Tem sempre a memória — ou uma fotografia que a ative.
Tenho sempre os outros. No início era a minha mulher que me acompanhava, depois foram os filhos. Agora são os netos, levo-os comigo, adoro. Porque eu só vivo por interposta pessoa. Sabe que nunca me sentei num restaurante sozinho? Nunca na minha vida. E com os netos há aquela coisa que já houve com os filhos, embora menos consciente: mostrar-lhes as coisas. Irmos à Noruega e vermos a neve.
Fazer parte das primeiras experiências de alguém.
E se quiser, a tentativa de refazermos as coisas, de voltarmos a elas. Eu não vou a sítios novos, vou é com pessoas diferentes. Detesto sítios novos. Sou daqueles que vai ao mesmo barbeiro, aos mesmos restaurantes, aos mesmos hotéis. Porque gosto e porque receio as experiências negativas.
Dizia que leva os netos consigo, o que quer refazer por meio deles?
Uma ligação, que é uma ligação com eles. Aquilo a que chamamos a eternidade.
Criar com eles uma memória de si?
No limite, construir neles uma ideia de mim. É como um espelho: vejo-os e, algures, sou também eu. Se calhar é uma recherche du temps perdu.
E o tempo ainda por perder? Em setembro vai fazer quatro viagens, é esperado por muita gente.
Sabe qual é a minha grande dúvida? É se continuo a ter vontade. Capacidade posso ter mais ou menos, mas... E se deixasse de me apetecer? Isso é que tinha graça. É o meu pavor. Esta coisa de ir para as conferências, para o circo, ainda terei paciência? Quão importante será para ti ir? É a minha pergunta.
Para quê?
Para quê.
Goli Mahallati (Irão) Butterfly romance
William Henry Margetson A water sprite
Adão Cruz
Adão Cruz Em jeito de resposta à CARTA DO PAPA FRANCISCO AO POVO DE DEUS
Meu caro amigo Papa Francisco
Desculpe tratá-lo assim, sem formalidades. Tenho por si respeito, consideração e sinto que sou seu amigo. Tenho, sobretudo, alguma compreensão. Compreensão pela enorme dificuldade que sente em lidar com a doença da sua igreja, pela obrigação que lhe cabe de limpar a infecção que a instituição que chefia vai deixando pelo caminho e pela impossibilidade de apresentar as medidas concretas que toda a gente reclama. Não tenho dúvidas de que é um homem sério, honesto e bem intencionado, mas também não tenho dúvidas de que é um homem incapaz de curar este cancro bem mais difícil do que o da menina a quem deu um beijo. Mas não é por isso que o quero acusar, nem tenho o direito de o fazer. A carta que escreveu foi dirigida ao Povo de Deus, ao qual não pertenço. No entanto, convivo diariamente com esse mesmo povo e navegamos no mesmo barco, o que legitima, até certo ponto, a minha resposta.
Somos mais ou menos da mesma idade, ambos fomos enjaulados num seminário de jesuítas onde me cortaram as asas da minha infância e adolescência, dos dez aos catorze anos. Em vez de desenvolverem em mim a liberdade de pensar com que “Deus nos dotou”, sempre me alimentaram com o secular e religioso paínço com que se domesticam as aves engaioladas. Com o Papa Francisco, nessa idade, provavelmente aconteceu o mesmo. Simplesmente o Papa Francisco chegou a Papa e eu não passei de um percevejo igual aos que subiam pelas pernas da cama da nossa camarata. Felizmente! O que me valeu foi pirar-me daquele inferno onde deram cabo da minha liberdade, galgando os altos muros da cerca do seminário, numa qualquer madrugada em que a minha vida deixou de ser a mais grotesca forma de não ser. Em relação ao tema que motivou a sua carta e a minha resposta, não tenho consciência de algum dia ter sido assediado sexualmente, mas lembro-me de certos gestos, atitudes e palavras como “amizades particulares”, entre padres e alunos e mesmo entre alunos, coisa que eu na altura não entendia e hoje entendo perfeitamente. Fui uma violentada vítima da religião mas nunca fui vítima sexual.
A sua carta ao Povo de Deus é uma montanha de eufemismos e de subterfúgios. O seus eufemismos, ainda que pacificadores, não conseguem esconder que o abençoado e teórico coração da igreja foi sempre um coração falso, hipócrita e obscurantista. E isso é tanto mais grave quando toda a gente sabe que o Papa Francisco é uma pessoa inteligente. Fala de abusos sexuais de crianças “cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas” quando devia falar de um número incomensurável e intercontinental de vis e obscenos criminosos, capazes de agressões cujas características até arrepiam um ser humano normal, e que deviam ser julgados e eventualmente encarcerados. Fala em olhar para o futuro no sentido de “gerar uma cultura capaz de evitar que estas situações aconteçam e não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas”. Situações e espaços são o que não falta nos milhões de sinistros alvéolos deste secretíssimo labirinto que é a igreja. O problema não está nos espaços nem nas situações mas na mente perversa, sórdida, talvez doente em muitos casos, de milhares de cabeças que encimam qualquer traje eclesiástico, nomeadamente os ridículos e espalhafatosos trajes cardinalícios. As suas palavras, para além de eufemismos, são palavras ocas. O meu amigo Papa Francisco sabe perfeitamente e muito melhor do que eu que essa cultura, essa dignidade, esse carácter, essa ética humana religiosa, os sagrados princípios e mandamentos que deveriam ser o coração da igreja a que preside, nunca existiram e dificilmente poderão existir, porque a árvore está podre há séculos. A sede de poder, a ligação à riqueza e à vaidade, a demagogia, a falsa caridade, a lavagem cerebral, a manipulação de massas que é exercida diariamente pela pérfida organização, com objectivos económico-financeiros acima de tudo, as monumentais fraudes financeiras, a colaboração em actos bélicos com ditaduras e opressões, a escandalosa luxúria de grande parte da cúria romana, por vezes a expensas de esmolas e fundos caritativamente doados para fins humanitários, a profunda hipocrisia reconhecida por muito do “Povo de Deus”, a perda da liberdade de pensamento e a ditadura religiosa são o tronco dessa árvore que não pode deixar de dar ramos criminosos de que é exemplo o inadmissível crime universal da pedofilia.
Diz o Papa Francisco que “a dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido e silenciado. Mas o seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram silenciá-lo”. Mais eufemismos, mais subterfúgios. Ignorado, escamoteado, emudecido, silenciado. O Papa Francisco sabe que foi a igreja e só a igreja a calar esse gemido, criando inclusive uma espécie de catecismo ou de mandamentos que continham as regras e a conduta a seguir pelos clérigos para silenciar, esconder e abafar tais crimes. Foi a igreja que sempre tentou emudecer e silenciar não só o grito das vítimas mas sobretudo o ribombante clamor de tanta gente honrada e horrorizada, mesmo dentro do Povo de Deus, a denúncia amplamente difundida por numerosos jornalistas e investigadores de grande prestígio (Eric Frattini, Gianluigi Nuzzi, Emiliano Fittipaldi, David Yallop e tantos outros) que escreveram dezenas de livros profundamente documentados, sendo muitos deles levados a tribunal pela própria igreja e de lá saindo absolvidos.
Não vou comentar toda a carta do Papa Francisco, até porque grande parte dela é tecida de conceitos e questões religiosas que não me dizem rigorosamente nada. Mas quando o meu amigo Papa Francisco se dirige ao Povo de Deus sabe a quem se dirige, e sabe que, apesar de haver muita gente de fé que pensa e julga, a maior parte das pessoas cuja fé ninguém tem o direito de condenar são pessoas que, de uma forma ou de outra, perderam ou desleixaram a capacidade de pensar pelas suas próprias cabeças, nunca tiveram interesse e curiosidade na análise dos fenómenos que as rodeiam nem alimentaram a necessidade de julgamento, prescindem do conhecimento da verdade, fugindo mesmo dela quando pressentem que ela espreita e não querem dar à consciência o valor que ela tem, porque foram ensinadas e formatadas para não duvidarem de uma integridade e de uma sacralidade que a igreja nunca teve.
António Gedeão Saudades da terra
(fotografia de Eduardo Gageiro)
Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.
A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas ... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.
ANTÓNIO GEDEÃO - "Máquina de Fogo" - 1961
Diana Krall Boulevard of broken dreams
Augusta Clara de Matos Complacência, o cancro mole dos democratas
Algum bom senso prevaleceu naquela organização denominada Web Summit para anular o convite a Marine Le Pen a vir discursar durante o evento. Mas não creio que se deva ao bom senso dos organizadores senão à pressão de muitos portugueses que deitam fascismo pelos olhos, à posição de alguns, raros, elementos do PS que não do seu partido, tal como à de outros do PCP. Que eu me tenha apercebido, a posição do Partido Comunista Português, como organização política, foi tão suave que quase não se deu por ela. Apenas um partido por inteiro, o BE, tomou uma posição forte ao interpelar o Governo no sentido de impedir Marine Le Pen de vir participar como oradora no evento.
Pela CML, na pessoa do seu presidente Medina, sempre tão efusivo a acarinhar estrelas mundiais, já não ponho as mãos no fogo.
Mas muitos comentários que por aqui li fazem-me lembrar a Alemanha, em particular, e a Europa das democracias dos anos 30 e começo a duvidar que a História, de facto, nos tenha ensinado alguma coisa. Se bem se lembram os que se interessam por saber como o mundo caminha e caminhou, tanta complacência e medo de ofender os nazis, mais o convencimento da sua fraqueza nunca os deixar chegar ao poder, levaram à derrota da República Espanhola e à sanguinária Guerra Civil que se lhe seguiu bem como aos horrores da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto.
Quando uma pessoa chega aqui e vê pessoas a dizerem que somos democratas e, por isso, é preferível arvorarmos aquela postura de S. Jorge a combater o dragão, neste caso o fascismo da Le Pena, mas na reunião, para ela aprender e ver como temos razão, eu pergunto das três uma: ou nasceram já depois do 25 de Abril, ou não sabem nada da História da Europa do século passado ou estão-se nas tintas porque se convencem de que a elas nunca acontecerá nada se os fascistas voltarem ao poder.
Os mal intencionados poupem-nos a essa cangalhada argumentativa sobre extrema-esquerda, extrema-direita, comunismo, etc., etc. com o objectivo de criarem a ignorante turbulência como única actividade em que demonstram competência.
Aos outros a ingenuidade, no melhor dos casos, leva-os a esquecerem-se de que para sermos todos livres, o que implica muita coisa, temos de impedir a liberdade de alguns só a quererem para muito poucos à custa, se for preciso, da vida de muitos outros.
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...