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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Eva Cruz A gripe assassina
(Adão Cruz)
Hoje, dou o devido valor às tuas palavras, Mãe.
Das prateleiras, já amarelecidas do tempo, retirei o meu livro “Aurora Adormecida” e despertei para uma realidade vivida há mais de um século, a qual, quando a descrevi, não passava de ficção.
…“ A Primeira Grande Guerra provocou milhões de mortos e mutilados. Nessa mesma época, o mundo assistiu apavorado e assustado a outro flagelo, a gripe espanhola, também conhecida por pneumónica. Atacou de tal modo o planeta inteiro que dizimou mais de um por cento da sua população. Os sintomas eram os mesmos de uma gripe normal, mas depressa o vírus atacava os pulmões, tornando-se o acto de respirar quase impossível. Os corpos ficavam tão arroxeados que distinguir o cadáver de um branco ou de um negro não era fácil. A morte é democrática e anti-racista. Nivela tudo, mede todos por igual.”
Minha mãe, a heroína deste livro, contava e recontava as peripécias da sua vida, a que nós não dávamos o devido valor, e até gracejávamos com o que dizia. Tudo o que parecia tão longe e improvável, afinal está agora tão perto. Hoje, Mãe, dou o devido valor ao teu sofrimento.
Não te bastava ficares sem mãe ao nascer, “o maior amor que pode haver”. Tiveste ainda de assistir à morte dos teus dois irmãos, ele com dezanove anos, ela com dezassete, e também à morte do teu pai. Ficaste sozinha na vida, com dez anos de idade. “O meu paizinho chorava à janela com a Bíblia na mão, a olhar os fios negros que lhe subiam pelos braços acima e a dizer que chegara a sua vez e que fora o homem mais infeliz do mundo…”
O pai, juntamente com um alemão, era capataz das minas de volfrâmio do Couto Mineiro de Rio de Frades, ao qual estava ligada a Companhia Mineira do Norte de Portugal. A pouca distância dali, em Regoufe, a Companhia Portuguesa das Minas explorava, com os ingleses, os filões do minério, arrancando o ouro negro entranhado nesses tesouros brancos de quartzo. Para ali se desterraram mineiros, capatazes e exploradores por caminhos de cabra, a cavalo ou de carro de bois. Ali deixaram enterrados os seus corpos e os seus sonhos.
…” Morreu toda a gente que trabalhava na Mina. Todos foram enterrados na vala comum. Só o meu paizinho e o Alemão tiveram direito a sepultura, o Alemão no cemitério de Cabreiros e o meu pai no cemitério de Bouceguedim.”
Aurora tinha adormecido ao sol sobre o telhado de zinco da lavaria e tivera uma gripe forte. Talvez, por isso, ficara imunizada. Foram-na buscar de carro de bois àquele desterro, e a partir daí, juntamente com o seu “baú “ que atravessara os mares, começou a saga da sua vida.
Hoje, Mãe, entendo tão bem que o dia mais triste da tua vida tenha sido o dia da tua comunhão solene, em que te vestiram de negro no meio de todas as outras crianças vestidas de branco. Eras órfã de pai e mãe. Mais ainda, tinham-te roubado toda a família. Nunca valorizei tanto a tua luta e o teu sofrimento, como agora!
Sinto uma enorme felicidade porque do nada construíste outra família que te amou sem limites. Hoje faz anos um dos teus meninos, um dos que mais te arreliavam, mas que tanto te amava! Enfeitava-te como uma boneca, fazia-te tantas diabruras que só o excesso de ternura pode explicar. Mas tu gostavas…
Quando ele nasceu estavas ao meu lado. Eu já tinha um menino e esperavas que te desse uma menina. Por isso disseste: Paciência, um outro menino é também uma maravilha. E assim, com mais três do teu filho, dois meninos e uma menina, construíste o teu maravilhoso novo mundo.
Hoje, como tu, sou mãe e avó, e nunca tão bem compreendi o que sempre te ouvi dizer: Cabem todos os amores no coração, mas para filhos e netos há dentro dele um lugar à parte.
Eva Cruz Hino à Primavera
(Adão Cruz)
Começou ontem a Primavera. Os talos das videiras e talvez as gavinhas já começam a espreguiçar-se pelos arames fora, os fetos a desenroscar os gomos, as prímulas à beira do rego a mostrar o amarelo luminoso, as aleluias, os lírios a dar cor aos jardins, os pampilos a cobrir os campos, as violetas bravas a enfeitar as beiradas dos combros.
A Natureza está revoltada com o Homem, revoltada é palavra minha, porque a Natureza tem outra linguagem, exprime-se de outra forma. Será apenas uma metáfora, uma personificação ou uma simples figura de estilo. Eu sei que a Natureza é também o Homem, ele é fruto do seu ventre. Não me quero entregar a especulações filosóficas e muito menos metafísicas, porque me entendo melhor com a simplicidade do meu pensamento, e o momento que vivemos não me inspira transcendências dialécticas.
Os pássaros estão muito calados. Não os vejo nem os oiço. Estou longe dos parques e dos campos, mas na cidade também por cá costumavam andar. Por esta altura, a visita de pombas a poisar nas minhas varandas bem altas a arrulhar logo ao nascer da manhã desapareceu.
Espero que a Natureza apazigue a sua revolta, que seja apenas uma zanga, um puxão de orelhas à malvadez da Humanidade. Resta-me a consolação de que, numa situação tão inesperada e inimaginável, a Humanidade possa estar toda do mesmo lado, sem homens contra homens. Ingenuidade, talvez. Estamos todos no mesmo barco, onde não há bóias para todos e onde alguns vão ao fundo. Estamos todos do mesmo lado, e a abnegação dos que morrem para salvar a vida dos outros mostra a sublimidade a que pode chegar a alma humana. O simples acto de deixar uma saca de pão, uns biscoitos ou um jornal à porta dos que não podem sair de casa, mostra à Natureza que o Homem ainda pode ter cura.
A melhor vacina é a Esperança, uma esperança que faça renascer a Primavera em toda a sua beleza e esplendor. Que venham cucos e andorinhas, toutinegras, cotovias, poupas, que cantem rouxinóis ao fim da tarde, que as rãs coaxem nos regos e nos regatos, que as lagartixas se espreguicem ao sol, que zumbam as abelhas e as pessoas cantem todas da forma como souberem.
Eva Cruz Nobre Povo, Nação Valente
(Adão Cruz)
Os Portugueses às vezes surpreendem-me. Momentos houve e
momentos há em que me parecem mais desatentos ao que se
passa à sua volta e nem sempre têm o discernimento adequado
à solução dos problemas que atingem a sociedade em que
vivemos. Não tenho pretensões a analista sociológica ou política,
nem tão pouco me considero detentora da verdade. Sem
qualquer intenção moralista ou maniqueísta, baseio-me apenas
em factos e na minha relação com os mesmos. As conclusões são
pessoais, só minhas e por isso valem o que vale uma opinião.
No momento crucial, porque é disso que se trata, por mais
exageros que apontem a quem assim o considera, as medidas
são de estado de emergência, de estado de “guerra” para definir
esta pandemia. A origem etimológica é germânica “ werra” que
significa luta e substitui a latina “bellum”. Fala-se em guerra
psicológica, guerra informática, económica, etc. Como sabemos,
as palavras podem ter, segundo o contexto, um sentido muito
exacto e muito amplo ao mesmo tempo e a liberdade de se
entregarem ao arranjo que cada um delas pode fazer.
Para a combater, foram tomadas medidas sérias como se de uma
guerra se tratasse. O estado de emergência implica o perigo de
um inimigo muito sério. Ainda não chegámos ao recolher
obrigatório e espero bem que não seja preciso. As granadas
podem cair-nos dentro de casa com grande ou pequeno
estrondo. Pensando bem, cada um de nós pode ser uma bomba
a explodir em horas ou dias.
Sinto orgulho no Povo do meu país que, salvo algumas excepções
desnecessárias, tem acatado de forma exemplar as medidas que
os nossos governantes, serena e sabiamente têm vindo a adoptar. Queria apenas relembrar dois acontecimentos da nossa
história recente que mostram a forma exemplar, genuína e única
da reacção deste Povo:
A Revolução de Abril, a mais bela da nossa História e talvez da
História da Humanidade, sem mortes, sem vingança, vinganças
humanamente justificadas se a nobreza de alma a elas não se
sobrepusesse e a magnanimidade da causa não fosse a
Liberdade. Uma revolução em que as balas foram substituídas
por cravos vermelhos no cano das espingardas.
O outro momento foi a onda de solidariedade gerada à volta da
Independência de Timor Leste. Os governantes fizeram o seu
papel, muito importante sem dúvida, mas a reacção do povo
Português deu lições de solidariedade ao mundo. Recordo
apenas os três minutos de silêncio às três da tarde em ponto,
hora em que todo o país parou, trânsito, lojas, transeuntes
dando lugar a um cordão humano vestido de branco. As pessoas,
os carros, as ruas, as janelas geraram em todo este país uma
onda branca de solidariedade sem mácula, num histórico “Viva
Timor Loro Sae”.
Como pedagoga, sempre gostei de começar pelo elogio. Por isso,
parabéns a todos nós. Continuemos a mostrar a nossa
maturidade cívica.
Eva Ceuz O cravo branco
(Gustav Klimt)
Olho através da janela a rua deserta. O dia chuvoso retarda a primavera tão ansiada. Nas varandas, alguns catos floridos e as azálias brancas e rosa enchem-me os olhos com a saudade do meu jardim. Adivinho-o pintado de todas as cores à mistura com o branco das ameixieiras, já acordadas do inverno, a desafiar a primavera.
Confinada a estas paredes, por quarentena imposta pela idade, situação nunca imaginada, não posso senti-lo na intensidade dos seus cheiros e cores. Ligo o televisor, e as notícias de Itália soltam-me lágrimas pela cara abaixo. Não vivi a Grande Guerra. Nasci quando terminou. Sou mulher de paz. Porém não me saem da cabeça as imagens a preto e branco de todas as guerras, os horrores de Auschwitz e de tantos outros campos de extermínio, a luta inglória e o sofrimento da guerra colonial, o negrume dessa minha juventude que sempre me parecera sem futuro. E cá está a guerra de novo. Um inimigo estranho, invisível, uma luta desigual, novas armas para o combate. Dá que pensar!
Quando hoje acordei, pouco animada, uma amiga, do outro lado da linha, recordou-me um poema de Carl Sandburg, mais velho do que eu, mas por acaso nascido no mesmo dia em que nasci. Leu-mo ao som de uma caixinha de música que parecia saída do realejo de algum músico ou poeta da resistência.
“Grass
Pile the bodies high at Austerlitz and Waterloo,
Shovel them under and let me work
I am the grass; I cover all.
And pile them high at Gettysburg.
And pile them high at Ypres and Verdun
Shovel them under and let me work
Two years, ten years and the passengers ask the conductor:
What place is this?
Where are we now?
I am the grass.
Let me work.
(Empilhem os corpos até ao cimo em Austerlitz e Waterloo/
Ponham-lhe por cima pazadas de terra e deixem-me trabalhar/
Eu sou a relva; Eu cubro tudo./E empilhem-nos até ao cimo em
Gettysburg/ E empilhem-nos em Ypres e Verdun/ Ponham-lhe
por cima pazadas de terra e deixem-me trabalhar/ Dois anos, dez
anos e os passageiros perguntam ao condutor:/ Que lugar é
este?/ Onde estamos agora?/ Eu sou a relva/ Deixem-me
trabalhar.)
Não me apetece fazer nada, nem ler nem escrever, de que tanto gosto. A Páscoa vem aí, ou virá se o vírus deixar. Decidi recriá-la em minha casa como sempre o fiz. Mas desta vez só para mim. Das caixas saíram galos e galinhas de loiça, de pano, lebres e coelhinhos, ovos grandes e pequenos de todas as cores. Excluí tudo o que se referia a outras datas que sempre tradicionalmente celebramos. Deixei ficar apenas um cravo branco, ainda viçoso, que encontrei à porta no dia da Mulher. Adivinhei logo quem foi a vizinha autora da oferta e corri a abraçá-la. Felizmente, ainda nenhum vírus nos impedia de manifestar assim a nossa admiração e afecto mútuo. A relva nem sempre arrasa, nem cobre tudo. Também ela vive no jardim e nela também crescem cravos brancos e…vermelhos. Havemos de vencer.
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...