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Jardim das Delícias



Sexta-feira, 22.05.20

Senhora do Desterro - Eva Cruz

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Eva Cruz  Senhora do Desterro

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(Foto de Adão Cruz)

 

   O cansaço invadiu os dias rotineiros que vivemos. Parece que depois do confinamento obrigatório, se perdeu a vontade de sair à rua. O tempo quase sempre chuvoso e cinzento também não convida a pôr os pés fora de casa. Dá ideia que o hábito ao isolamento nos cortou a vontade de manter os laços sociais. Se saímos, ninguém nos conhece e quase não conhecemos ninguém atrás da máscara. Afastamo-nos o mais possível uns dos outros, atravessamos para o outro lado da rua se alguém tosse ou espirra, andamos assustados, temerosos, desconfiados. Passamos os dias colados ao computador ou à televisão esperando números e resultados para matutar sobre a quantidade de mortos e infectados graves.

De vez em quando lá me meto no carro e vou até à aldeia, respirar o ar puro, o cheiro a verde, ouvir os pássaros, ver o nascer e o crescimento de algumas “novidades” há pouco plantadas, e que os pombos-rolos não param de depenicar. Pequenos e grandes prazeres para quem desde criança “se vestiu de sol e despiu de luar.” Oiço as pessoas do campo e outras que por lá encontro e todas ditam sentenças sobre o vírus que nos assusta. Para uns, isto já estava nas Escrituras, para outros, é a Eutanásia que todos desejavam “- queriam a Tanásia, ela aí está”. Há quem acredite que é um castigo de Deus, que eu, em vão, tento contestar. Outros acham que a ciência não sabe nada e que nada resolve. Quando lhes digo que acredito na ciência e só ela nos pode resolver os problemas, por mais argumentos que use, não os convenço. Para eles, só a Senhora do Desterro nos pode valer. Só ela pode desterrar este mal para “monte maninho onde não haja pão nem vinho, nem raminho de oliveira.” E com isto me calo.

Quando era menina fui muitas vezes à romaria da Senhora do Desterro, uma capelinha no cimo da serra, com meia dúzia de casitas de pedra solta aninhadas ali à volta. O farnel era para mim o ponto alto da festa. Lembro-me de lá ter deixado, a mando de minha mãe, um porquinho de cera para pagar o milagre de ter salvado um porco da peste, uma vez que, nesse tempo, perder um porco era grande prejuízo para a economia familiar. Era de tal modo importante a ceva que me recordo de ouvir contar que uma devota prometera dar os brincos pela salvação de dois porcos. Como só um foi garantidamente salvo, deu apenas um brinco, esperando que o outro sobrevivesse para entregar o par que restava. Antes prevenir que remediar.

Crenças de outros tempos, mas que ainda hoje permanecem. O desânimo e a pouca esperança são de tal ordem que, pelo sim e pelo não, até aconselhei, que, movidos de tal crença, levassem à Senhora do Desterro, não um porquinho, como eu fiz quando era menina, mas uma velhinha de cera, para ver se a Senhora desterra para sempre este vírus que tanto “gosta” de pessoas idosas. Tal como Santa Bárbara com a trovoada, empurrando-a para” lugar maninho onde não haja pão nem vinho, nem raminho de oliveira ou bafinho de menino”.

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por Augusta Clara às 14:47

Sexta-feira, 22.05.20

Mãe - Adão Cruz

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Adão Cruz  Mãe

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(Adão Cruz)

 

Mãe
a palavra universal
a palavra mais consensual da humanidade.
Nem Deus…
Deus é de uns e não de outros
Deus é conceito de muitos
e negação de outros tantos.
A mãe é de todos sem excepção
a mãe é de todos e é só nossa
a mãe é do crente e do ateu
a mãe é do pobre e do rico
do sábio e do ignorante.
A mãe é dos poetas
dos filósofos e artistas
dos bons e dos maus
a mãe é do amigo e do inimigo.
Não há mãe de uns e não de outros
não há ninguém sem mãe
e não há mãe de ninguém.
A mãe é de toda a gente
a mãe é de cada um
a mãe é do mundo inteiro
e do nosso mais pequeno recanto.
A mãe é do longe e do perto
da água e do fogo
do sangue e das lágrimas
da alegria e da tristeza
da doçura e da amargura
da força e da fraqueza.
A mãe é certeza e aventura
medo e firmeza
dúvida e crença
a haste que se ergue no céu
ou se aninha rente ao chão
para que a morte a não vença.
A mãe é a outra parte de nós
sem mãe somos metade
sem mãe nada é exacto
igual a um
igual a infinito
onde se tocam princípio e fim
onde os tempos se encontram
sem presente passado e futuro.
A mãe é a lágrima que não seca
no sorriso que não se apaga
a nuvem que chove no sol que aquece
a mensagem da luz e da harmonia
e dos acordes matinais
com que abre o nosso dia.
A mãe levanta-se nas lágrimas da noite
e mesmo cansada
não perde a voz nem a cor da madrugada.
A mãe é a voz que se não teme
a voz que se confia
a voz que tudo diz
nas consoantes do grito
nas vogais do silêncio
nos abismos da agonia.
Mãe
primeira palavra a nascer
a última palavra a morrer.
A mãe é sempre a mesma
a mãe nunca é outra
na sua infinita diferença.
A mãe é criação
a mãe é sempre o fim
da obra-prima inacabada
a mãe nunca é ensaio
nem esboço nem projecto.
A mãe é um milagre
no milagre do mundo
o único milagre concebido
real e concreto.
Chora para que outros riam
ri para que a dor a não mate
mistura-se com a luz das estrelas
para vencer a escuridão
devora as nuvens por um raio de sol.
A mãe é beleza e poesia
aurora fulgurante
aurora adormecida
a mãe é bela porque é simples
porque nasce da silenciosa lógica da vida.
A mãe é fragilidade da semente
a força do tronco
a beleza da flor
a doçura do fruto
o dom de renascer.
A mãe é tudo numa só coisa
AMOR.

 

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por Augusta Clara às 13:34

Terça-feira, 19.05.20

Adão Cruz, 2020

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por Augusta Clara às 17:58

Terça-feira, 19.05.20

Adão Cruz, 2020

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por Augusta Clara às 17:47

Sábado, 16.05.20

Uma joaninha - Eva Cruz

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Eva Cruz  Uma joaninha

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(Evelina Oliveira)

 

   Com todos os problemas que a pandemia nos trouxe, há um indubitável benefício, pouco valorizado, que a humanidade lhe deve. Poder-se-ia falar da melhor qualidade do ar, da água, das boas transformações da natureza, do reaparecimento de aves e insectos, do ressuscitar das coisas belas que se perderam pela destruição e desumanização daquilo a que chamamos progresso. Deixo, porém, este campo para os cientistas e académicos que com rigor e precisão o fazem melhor do que eu. Limito-me a observar outro campo, aquele a que os meus olhos sempre se habituaram a contemplar, a conhecer pelo cheiro e pela cor, pela beleza pujante ou agreste, pelo brilho do sol ou pelo fustigar do vento, bravio, manso, cultivado pelas mãos carinhosas que o amanham ou revoltado pelo desprezo e abandono.

Há dias ouvi o cuco: Cu-cu, cu-cu. Não o ouvia há anos. Espreitava-me, empoleirado num ramalho. Como fazia em criança, respondi-lhe: cu-cu, cuco ramalheiro quantos anos tenho solteiro. Só que vai tão longe esse tempo…que o cuco se deve ter fartado de rir. Nesse mesmo dia, uma poupa cor de toupeira, com uma crista matizada de branco, caminhava pelo campo fora, garbosa e imponente, como se fosse a dona do mundo. Depois cantou: poupa, poupa, tudo é pouco. Mau sinal, diziam os antigos, ano de fome. Ela lá sabe. Voando pelos ares vê melhor e mais longe do que aqueles que se passeiam cá por baixo. Pegas, melros, pombos-rolos são aos bandos. Fazem estragos, depenicam tudo o que nasce da terra e das árvores, mas é o preço que cobram por dar vida e beleza à natureza adormecida. Porém, o que mais me surpreendeu foi uma joaninha, poisada na haste de uma espiga de centeio, ali nascida de alguma semente trazida pelo vento. Joaninhas, grilos, cigarras, alfaiates, louva-a-deus, pirilampos… desandaram por completo. A joaninha, pequenina, vermelhinha, luzidia, cheia de pintinhas pretas, poisada na haste, libertava em mim um mundo de visões e sensações indescritíveis. Joaninha, Ladybug, Marienkäfer, aqui ou lá, sempre feminina e distinta.

A arte é o expoente máximo da expressão do sentimento. Particularmente a arte de escrever, a arte da palavra, por vezes tão difícil e dolorosa. Criar pela escrita o que aquela joaninha trazia no vermelho luzidio do seu vestido às pintinhas pretas, as recordações que o tempo levou, os reflexos dos olhos que viram searas de trigo e centeio a ondular ao vento, as vozes e os rostos tão distantes não é tarefa para mim. Fica a vontade e o sonho.

Quando me aproximei da Joaninha ela voou, mostrando por baixo das asas vermelhas um outro par de asas sedosas e rendadas. Joaninha aboa, aboa quo teu pai foi pra Lisboa, com uma faca de latão, espetada no coração.

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por Augusta Clara às 14:00

Sexta-feira, 01.05.20

Adão Cruz, 2020

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por Augusta Clara às 18:57



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