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Jardim das Delícias



Quarta-feira, 22.07.20

ENTREVISTA DO ENG. NUNO FREITAS, PRESIDENTE DA CP AO JORNAL PÚBLICO, 21/07/2020

nuno freitas, nelson garrido.jpgFotogradia de NELSON GARRIDO.

   Nuno Freitas, presidente da CP, é crítico do modelo preconizado pela UE para o sector ferroviário, defende que deve ser a empresa a gerir a infraestrutura e não esconde o seu desagrado pelo desempenho da IP na modernização da rede. “CP perdeu 150 milhões de euros por causa da covid”, um número que está ainda “a ser revisto em alta”
Carlos Cipriano

"Incomoda-me que a CP não possa trabalhar como uma empresa normal”

Um ano depois de ter tomado posse como presidente da CP, a 18 de Julho, Nuno Freitas não disfarça o desencanto pelas dificuldades em gerir uma empresa na esfera do Estado e teme até que isso lhe faça extinguir a sua paixão pelos comboios. No entanto, o engenheiro que já foi especialista em Alfa Pendulares e depois foi trabalhar para o privado, conseguiu em 12 meses segurar um empresa que se estava a afundar: assinou o primeiro contrato de serviço público da história da CP, abriu oficinas, recrutou pessoal, recuperou material que estava desafectado e lançou as bases para um pólo industrial ferroviário que um dia poderá construir comboios.

É verdade que a CP comprou sucata a Espanha?

Não percebo essa pergunta. Eu já trabalhei com os caminhos-de- ferro alemães, noruegueses, finlandeses, suecos, suíços e asseguro-lhe que estas carruagens não são sucata em nenhum desses países. Aliás, muito recentemente, os suíços fecharam uma encomenda com a DB [caminhos-de-ferro alemães] para a reparação de 93 carruagens com 40 anos pelo preço de um milhão de francos suíços cada [930 mil euros]. Se calhar é também por causa destas coisas que a Suíça tem um PIB per capita que é quase quatro vezes superior ao nosso. Eles não deitam nada fora e fazem bem as contas. No nosso caso, uma carruagem destas, nova, custa mais de 1,5 milhões de euros e nós compramo-las por 130 mil euros. Algumas dessas carruagens têm um nível de conforto equivalente aos pendulares e ainda têm mais de meio milhão de quilómetros para andar antes de terem de fazer a revisão geral. Dentro de seis meses teremos oportunidade de demonstrar aos mais cépticos que a CP fez uma boa compra.

Essa “filosofia suíça” de recuperar material antigo é replicada na CP quando voltam a pôr em circulação as carruagens Schindler e Sorefame?

Sim. Nós não podemos confundir antigo com velho. Material antigo pode ser modernizado e ter muita qualidade. Nós tínhamos um défice enorme de material circulante e, por isso, pouca robustez nas nossas operações. Agora vamos poder pôr estas carruagens nas linhas do Minho e no Douro e retirar de lá as automotoras espanholas para as distribuir pelas restantes linhas não electrificadas e normalizar a oferta no serviço regional da CP. Vamos também utilizá-las em serviços de longo curso e no regional, libertando assim UTE [Unidades Triplas Eléctricas] para reforçar os serviços suburbanos.

Quanto tencionam gastar com as carruagens espanholas para as pôr a circular?

Dez milhões de euros. Nós tínhamos uma verba de 20 milhões para modernizar 40 carruagens Sorefame, mas já não as vamos modernizar todas porque esse dinheiro é mais bem aplicado na modernização das carruagens espanholas.

As 23 automotoras espanholas que alugaram à Renfe custam-vos 7,5 milhões de euros por ano. Vão começar a devolvê-las?

Não porque vamos continuar a precisar delas no curto prazo para reforçar o Oeste e porque vão servir-nos para substituir as UDD [Unidades Duplas Diesel] que estão no Alentejo e no Algarve, quando estas entrarem em oficina para serem modernizadas.

Tomou posse há um ano. Qual o balanço deste período?

Assinámos o contrato de serviço público com o Estado, fizemos três novos acordos de empresa (o que já não acontecia há mais de 20 anos), reestruturámos a estrutura funcional da CP, melhorámos a limpeza dos comboios e diminuímos as composições grafitadas, recuperámos a estrutura dos ciclos de manutenção. Tudo isto dentro do espírito de que “o comboio aparece, a horas e limpo”.
Mas é claro que o mais importante foi a fusão da CP com a EMEF e a reabertura das oficinas de Guifões. Desde Dezembro já recuperámos seis locomotivas eléctricas e quatro a diesel, cinco carruagens Schindler, quatro Sorefame, três automotoras eléctricas (de um total de oito) para a linha de Sintra, uma carruagem VIP (que vamos comercializar alugando-a para grupos) e conseguimos aumentar o grau de disponibilidade da frota de carruagens dos Intercidades que tinha 30% paradas e agora está quase toda operacional.

Tudo isto traduziu-se na redução de supressões?

Na maioria dos serviços, praticamente já não temos supressões devido a falta de material. Nos urbanos de Sintra ainda temos algumas, mas acabamos de recuperar três UQE [Unidades Quádruplas Eléctricas] que vão atenuar o problema. E até ao fim do ano ainda conto recuperar mais três unidades para reforçar Sintra e Azambuja.
Mas ainda em relação à linha de Sintra e Azambuja estamos a trabalhar com a tutela para poder recrutar 17 pessoas para pôr as oficinas de Campolide a trabalhar em dois turnos e aumentar a disponibilidade do material. Estas são as linhas com mais passageiros do país e não podemos ter as oficinas com um turno de segunda a sexta das 8h00 às 17h00. Enquanto em Sintra trabalhamos com 41 unidades motoras num total de 56 (significa que 15 estão fora de serviço todos os dias), nós no Porto trabalhamos com 32 unidades em 34. É preciso maior disponibilidade em Sintra.

MAIS 68 COMBOIOS ATÉ 2030

Como está o concurso para a compra de comboios novos?

Esperamos resolver quanto antes a impugnação da adjudicação dos comboios regionais. Achamos que a alegação da CAF para impugnar o concurso têm pouca consistência, mas isso será o tribunal a decidir e não tenho ideia nenhuma de quanto isso acontecerá.
Mas no futuro a CP precisa de mais comboios. O planeamento para a compra de material circulante prepara-se a dez anos de distância e a CP nos próximos 20 anos vai precisar de 250 a 300 comboios, o que dá entre 1000 a 1200 carruagens.
O que está previsto no contrato de serviço público é a compra de 30 unidades para a linha de Cascais, 18 comboios para outras linhas suburbanas, 12 de longo curso e oito para a linha do Vouga. Isto representa um investimento de 500 milhões de euros a dez anos. Mas ainda estamos a trabalhar com a tutela num programa para aquisição de mais 100 comboios urbanos.
Há muitas empresas a vender comboios mas não se consegue adquiri-los no curto prazo. Por isso, temos de arranjar formas criativas de manter um serviço de qualidade e, ao mesmo tempo, dar tempo ao país para decidir o que quer fazer com o caminho- de-ferro.

Como é que pensam comprar comboios novos se querem fazer em Guifões um comboio português?

Uma coisa não é dissociável da outra, mas não quero acrescentar mais sobre isso.

Deduzo que seriam, pelo menos parcialmente, fabricados em Portugal?

Obviamente que vamos trabalhar nesse sentido.

Está prevista alguma parceria com os chineses da CRRC, que têm muita vontade de entrar em Portugal?

É uma hipótese. Mas não fechamos a porta a ninguém. Uma parceria com suíços, alemães, franceses também são hipóteses. Todos

PERDAS DE 150 MILHÕES COM A COVID-19

Quais foram os resultados da CP em 2019?

A CP vendeu 280 milhões de euros, mais 5% que no ano anterior. O EBITDA foi de 48 milhões e o resultado líquido foi dos mais baixos de sempre: -51 milhões. Mas atenção que nesse ano tivemos uma coisa que já não tínhamos, pelo menos desde 2013, que foram 40 milhões de euros de indemnizações compensatórias. Só que, desses 40 milhões, houve 20 que nem lhes pudemos mexer. Ficaram logo cativados.

Que resultados teve a CP nos anos anteriores?

Em 2017 foram -111 milhões e em 2018 foram -105 milhões. Se não fossem as indemnizações compensatórias, no ano passado teríamos tido prejuízos de 91 milhões, o que representa uma evolução muito positiva.
Podemos dizer que a CP perdeu 150 milhões de euros por causa da covid, número que está a ser revisto em alta à medida que nos damos conta do impacto da recessão económica.

Estava então tudo a correr bem quando apareceu a covid. Quais foram as perdas provocadas pela pandemia?

Tivemos reduções na procura na ordem dos 95% e mantivemos a oferta, em média, nos 75%, com alguns serviços próximos dos 100%. Podemos dizer que a CP perdeu 150 milhões de euros por causa da covid, número que está a ser revisto em alta à medida que nos damos conta do impacto da recessão económica. A quebra média da procura ainda está na casa dos 50%, sendo que nos Alfas é de 80% e nos Intercidades de 75%. E são estes os serviços que proporcionam mais de 40% das receitas da CP.

Como é que vão tapar este buraco?

Nós até agora recebemos apenas um milhão de euros para suportar os acréscimos de custos nas limpezas, desinfecções, etc. Quanto a compensações, não sei. A única coisa que sei é que a CP continuou sempre a prestar serviço, mesmo com quebras de procura brutais. Era preciso transportar as pessoas que iam trabalhar: enfermeiros, médicos, polícias, bombeiros, empregados de limpeza e da logística... Eu espero que compensem a CP por isto.

A CP devia receber cerca de 85 milhões de euros por ano, mas o visto do Tribunal de Contas ao contrato com o Estado POSTO NOS BANCOSsó veio a 29 de Junho. Este ano só vão receber metade ou o contrato tem efeitos retroactivos?

Quase de certeza que não tem efeitos retroactivos. Contudo, esperamos receber indemnizações compensatórias por esse período em que a CP teve perdas de receitas bíblicas. Até lá temos vindo a recorrer a mais endividamento.

“DÍVIDA DA CP É UMA PEQUENA FRACÇÃO DAQUILO QUE NÓS TEMOS POSTO NOS BANCOS”

Como está o saneamento da dívida histórica da CP? Não era suposto ficar tudo a zeros quando o contrato de serviço público entrasse em vigor?

Sublinho precisamente isso: dívida histórica! É de há muitos, muitos anos. E é de 2,1 mil milhões de euros. Mas é uma pequena fracção daquilo que nós temos posto nos bancos. Efectivamente, devia ter sido saneada com a assinatura do contrato de serviço público porque condiciona fortemente a nossa actividade. Fizemos um estudo com a Parpública para o saneamento da dívida em que há uma proposta que já está nas tutelas. Vamos ver em que percentagem é que será saneada.

Não será, então, na totalidade, como previa o contrato de serviço público?

Não. O Ministério das Finanças entende que a CP pode ficar com uma dívida que possa ser gerível.

Um dos argumentos para sanear a dívida história era para, com a liberalização, a CP poder concorrer com os novos operadores. Como vê isso?

A CP não tem medo da liberalização, mas se quiser sobreviver terá de ser mais eficiente e aumentar a fidelização dos seus clientes. Além disso, teremos sempre de trabalhar com o nosso parceiro preferencial que é a Renfe.

Os comboios suburbanos sobrelotados são um mito?

Depois do PART e antes da covid não eram um mito. Era verdade, mas só nas linhas de Sintra e Cintura. Neste momento a redução da procura na linha de Sintra é de 50%. Não quer dizer que não haja um comboio ou outro mais cheio, mas na generalidade andam vazios.
Não há nenhuma empresa que tenha as suas frotas dimensionadas para andarem com 50% de taxa de ocupação, mas sim com 100% nos períodos de pico. Um comboio de Sintra (as duas UQE juntas) está dimensionado para transportar cerca de 2000 pessoas. Um terço de 2000 pessoas a sair em Sete Rios é um mar de gente. Portanto eu admito que possa existir a percepção de que os comboios andam sobrelotados.
Mas deixe-me dizer que a CP tem 3700 trabalhadores e até hoje, 13 de Julho, a empresa só tinha 19 infectados, dos quais quatro são revisores, que é quem está mais em contacto com o público. Isto é elucidativo da baixa probabilidade de se ser infectado num comboio.

A aposta que têm feito na recuperação de material histórico não dispersa meios que poderiam ser utilizados na reparação e manutenção de material regular?

Não percebo essa pergunta, porque a CP passa a vida a ser criticada pelo abandono de material histórico de valor inestimável... Há é um aproveitamento de meios porque as cargas de trabalho nas oficinas têm altos e baixos e isto permite alocar os recursos aos períodos fora dos picos. Por outro lado, se o país quer apostar na diferenciação no sector do turismo, isso não se faz com tuk tuks. Há um mercado mundial de turismo ferroviário com muito dinheiro e o benefício para o país de uma empresa de caminhos-de-ferro estatal a funcionar em pleno não se esgota só nas suas demonstrações financeiras. Há externalidades sociais e económicas muito relevantes associadas à produção destes serviços com material histórico. Por exemplo, a CP foi contactada por associações estrangeiras de entusiastas que querem fazer comboios charter no Vouga. Esses serviços são muito bem pagos e mexem também com a economia local. E é também por esse motivo que nós fazemos o comboio histórico no Douro. É porque traz benefícios para a região.

O que é que estão a recuperar em termos de material histórico?

Já recuperámos duas carruagens de via estreita (uma “napolitana” e uma nacional do Barreiro) e estamos a pôr a Allan de via estreita do Vouga em estado de marcha. Além disso, já recolhemos para as oficinas várias carruagens que estavam ao abandono desde há décadas.

Quando é que reabre o serviço internacional?

Estamos a fazer reuniões com a Renfe e ainda não temos conclusões.

Mas o que impede a CP de avançar já com o Sud Expresso, que não é feito em parceria com a Renfe?

Ainda não avançámos por causa das obras do lado espanhol [entre Salamanca e Vilar Formoso] que vão decorrer agora em Agosto.

Mas admite retomar em Setembro por conta da CP, independentemente do que acordarem com a Renfe?

Sim. Apesar de ser um serviço que dá um enorme prejuízo. Mas estamos a estudar soluções com a Renfe que até podem passar por fazer um serviço diurno. Se continuarmos a fazer os dois comboios [Sud e Lusitânia] juntos, temos enormes poupanças.

Quando reabrem os bares dos comboios?

Logo que tenhamos condições para isso. Neste momento, estamos a fazer a gestão da crise dentro das cláusulas contratuais.

MAIS SETE MINUTOS ENTRE LISBOA E PORTO

Qual o impacto dos atrasos do Ferrovia 2020 na operação da CP?

É significativo. Para nós é um problema. A nossa grande preocupação agora vão ser as obras na linha do Norte, no troço Ovar – Gaia.

Vai atrasar os comboios?

Sim, vai ser uma grande chatice.

E vão assumir esses atrasos alterando os horários e prolongando os tempos de percurso?

Sim, é isso que está previsto. Mas nós sabemos como é que são estas obras e temos medo dos imponderáveis que possam aparecer.

Qual a previsão do aumento do tempo de trajecto entre Lisboa e Porto?

Mais sete minutos.

Isto é para começar quando?

Este ano e até 2023 ou 2024.

Mas agora que se fala numa variante entre Gaia e Soure não seria melhor começar por fazer a variante, ganhar uma redundância e só depois intervencionar a linha do Norte?

Claramente que é essa a minha opinião, mas há verbas avultadas de financiamento comunitário que estão em jogo e a obra tem de ser concretizada num determinado prazo.

A CP vai sentir na pele os prejuízos dessas obras, mas depois disso nem sequer haverá uma melhoria dos tempos de percurso. Será apenas para repor o que já existia.

Pois... espero que voltemos aos melhores tempos de antigamente.

A não melhoria das velocidades nos projectos do Ferrovia 2020 penaliza a CP?

É óbvio que sim. Se andamos mais devagar, demoramos mais tempo a fazer o percurso e a optimização do material circulante é menor. Obviamente que as velocidades comerciais são importantes.

O que está a fazer a CP para que no PNI2030 não se repita o erro de investir na ferrovia e não se aumentar velocidades?

A única coisa que a CP pode fazer é participar nos fóruns e junto das tutelas tentar influenciar e dizer que isso é importante para o negócio.

Do que conhece do PNI2030 quais são os projectos mais importantes para a CP?

Claramente a variante Gaia – Soure, que é muito importante para dar robustez ao sistema. Também a quadriplicação dos troços Areeiro – Braço de Prata e Contumil – Ermesinde, e também a linha de Leixões deve merecer uma atenção especial porque pode revolucionar por completo a mobilidade e o serviço da CP na cidade do Porto. E depois, claro, prosseguir com as electrificações no Oeste, Douro e Algarve.

Acha normal que duas empresas públicas como a CP e a IP tenham processos em tribunal?

Acho que não. Mas as empresas são feitas por pessoas, que às vezes não se entendem e isto depois acaba assim.

A CP teria um melhor interlocutor se o gestor da infraestrutura fosse exclusivamente ferroviário como o era a Refer?

Eu sou um estudioso do sistema ferroviário e sou de opinião que o operador incumbente deve ser dono da infra-estrutura. A UE desenhou a liberalização do sector numa perspectiva de que o comboio deve concorrer com o comboio. Mas isso é errado porque o comboio concorre com todos os meios de transporte, o avião, o carro, o autocarro, etc.
A separação da infra-estrutura da operação é um desastre para o desenvolvimento do caminho-de-ferro. E felizmente ninguém me vai apontar o dedo porque não é só na minha opinião. Basta olhar para o que acontece nos caminhos-de-ferro mais importantes e desenvolvidos a nível europeu, na Alemanha, França, Itália, Áustria, e até a nível mundial, na Rússia, Índia, Japão, Austrália... E até no país mais liberal do mundo, os Estados Unidos. Nada impede que a infra-estrutura seja partilhada por diferentes operadores sem ter que separar o operador incumbente da gestão da infra-estrutura.
No caso português essa questão é agravada pelo facto de o gestor de infraestrutura ser uma empresa que
resultou da fusão de uma empresa ferroviária com uma empresa rodoviária? Sim, porque se for uma empresa só ferroviária estará 100% focada na infraestrutura ferroviária, mas se também for rodoviária, provavelmente o foco não será o mesmo.

O presidente da CP está mais voltado para as oficinas e para operação do que para a gestão da empresa como um todo?

Se em vez de dizer “voltado para as oficinas”, disser “voltado para a fiabilidade e disponibilidade do material circulante”, eu aceito. Isto é uma empresa activo-intensiva e se o nosso maior activo físico não estiver disponível nem tiver fiabilidade, de certeza que o nosso empenho vai ser péssimo. Mas a sua pergunta fala em “oficinas” e eu prefiro chamar-lhes “área de engenharia e de manutenção”. Quanto à “operação”, se disser que é um presidente mais voltado para o serviço prestado aos clientes, também aceito. É que estas é que são as partes core do negócio.

Mas acusam-no de passar pouco tempo na sede da empresa, no Rossio, e muito tempo nas oficinas... Não sei se isso é uma crítica ou um elogio.

No Rossio estão 5% dos trabalhadores da CP e eu esforço-me por passar bastante tempo onde estão os outros 95%. Não creio que passar tempo no Rossio seja condição necessária para fazer um bom mandato. Sou o que os ingleses chamam um walk around manager. O meu escritório está na minha mochila. Acho importante o presidente estar muito próximo da actividade da empresa porque muita informação sobre a saúde e a produtividade da CP obtém-se fora da Calçada da Duque.

Em que é que se sente mais compensado como presidente da CP?

É ver os ferroviários felizes e ver que a grande maioria volta a ter orgulho de ser ferroviário. E ver que, progressivamente, estamos a conseguir prestar um melhor serviço aos passageiros. Tudo o resto desgasta-me profundamente porque estando a empresa no perímetro orçamental do Estado, temos muitas dificuldades na gestão. Incomoda-me que a CP não possa trabalhar como uma empresa normal, ou seja, com um plano de actividades e um orçamento discutidos e aprovados pelo accionista Estado, com o conselho de administração a implementá-los e no fim a prestar contas.

E não é isso que ocorre?

É tudo muito difícil, a parte burocrática e administrativa envolve sempre duas tutelas, perde-se imenso tempo e isso é muito desgastante. Eu sou um concretizador e sinto alguma frustração em que as coisas não avancem como gostaria, para bem da empresa e dos seus clientes.

É sócio da APAC (Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro). Até que ponto a paixão pelos comboios pode prejudicar o desempenho do presidente da CP, cuja gestão se pretende fria e racional?

Eu não sei gerir sem paixão, seja na CP, seja noutros sítios onde desenvolvi a minha actividade profissional. Contudo, temo que a pressão e as lutas políticas, às quais sou alheio mas em que estou envolvido, acabem com a minha paixão pelo caminho-de-ferro.

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por Augusta Clara às 15:07

Domingo, 05.07.20

Adão Cruz, "Palestina", 2020

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por Augusta Clara às 23:21

Sexta-feira, 03.07.20

Serra Mágica - Eva Cruz

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Eva Cruz  Serra Mágica

   A Serra da Gralheira é uma catedral de pedra e xisto, estendendo-se ao longo dos céus por entre quatro contrafortes, a Serra da Freita, a Serra da Arada, a Serra do Arestal e a Serra de S. Macário. Cordilheira de côncavos e convexos, berço e leito de rios e riachos, tecida de uma rara e abundante fauna e flora, rasgada pela rudeza das lajes e das fragas, vestida pelas mil cores das plantas rasteiras, urze, giesta e carqueja ou pelo manto luxuriante de soutos, carvalhos, pinheiros, medronheiros, azevinhos, em matas cerradas onde quase não entra o sol.

Aninhadas nas dobras dos montes ou nas íngremes encostas, cresceram desde remotos tempos pequenas aldeias ou povoados, junto a ribeiros mansos, ora rebeldes e tumultuosos, que se enroscam e furam por entre pedregulhos e fragas, à procura de irmãos mais velhos que os hão-de levar ao mar. Merujal, Albergaria da Serra, Mizarela, Manhouce, Cabreiros, Bouceguedim, Rio de Frades, Covêlo de Paivô, Regoufe, Drave, Aldeia da Pena, Covas do Monte, Coelheira, Candal são algumas entre as muitas que por lá vivem, algumas recuperadas, bem tratadas e com belos recantos de sossego e lazer.

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Foi Rio de Frades que levou estes quatro amigos a tão longínquas paragens, guiados pelas mãos hábeis do nosso amigo condutor do jeep, subindo e descendo por rendilhados fios de estreitíssimas estradas, profundos vales e altas montanhas, ajudado de mapas e GPS, o qual, no meio de tal labirinto, muitas vezes perdeu o tino, e já baralhado, se reduziu ao silêncio, provavelmente a pensar onde se meteu e a descobrir como sair dali.

Rio de Frades foi um importante Couto Mineiro, no tempo das duas Grandes Guerras Mundiais, essencialmente explorado por alemães. Para ali se deslocaram mineiros, capatazes, exploradores, por caminhos de cabra, a pé, a cavalo ou de carro de bois. Não havia electricidade. Geradores forneciam a energia necessária às minas e à povoação. Munidos de brocas e martelos esventravam as montanhas, cavando galerias e furando túneis, para arrancar às suas entranhas o tesouro branco de quartzo, encastoado de volfrâmio, o minério ou ouro negro como lhe chamavam, usado na têmpera e blindagem de armamentos como canhões e endurecimento de munições. Um quilo de volfrâmio chegava a valer mil escudos, uma verdadeira fortuna para aquele tempo. Muitos lá morreram e por lá sepultaram os seus sonhos. Meu avô materno foi um deles. Era capataz, juntamente com um alemão, e ali perdeu a vida com toda a sua família, incluindo os seus dois filhos mais velhos, ele com dezanove anos e ela com dezassete, vítimas da pneumónica. Salvou-se a menina mais nova, com dez anos, nossa mãe. Ali morreu também o alemão e a família. O nosso avô e o alemão tiveram direito a sepultura. Todos os outros foram enterrados na vala comum. Ainda hoje lá se encontram as casas quase arruinadas onde viveram o meu avô e o alemão.

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Regoufe, não muito longe dali, a cerca de cinco quilómetros, foi outro Couto Mineiro. A Companhia Portuguesa de Minas explorava juntamente com os ingleses os filões do minério. Curiosamente, os alemães e ingleses entendiam-se bem no campo da exploração do volfrâmio, apesar de inimigos. Hoje, Regoufe é uma cidade fantasma feita de esqueletos de casas, lavarias, tanques e túneis. Mais tarde, com a segunda Grande Guerra, foi aberta uma estrada de macadame pelos alemães e levada a electricidade às minas. A iluminação era tal que Rio de Frades e Regoufe pareciam cidades. Enquanto em Rio de Frades as casas já estão muito adulteradas, em Regoufe tudo está mais preservado, conservando a sua autenticidade. Por lá se mantêm ainda de pé muitos esqueletos do passado, quase intactos.

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“À la recherche du temps perdu”, quase tivemos a sensação de recuperar aquele espaço fantasma e encontrar o tempo perdido daquelas ruínas, nos meandros da memória, da lembrança, da reflexão e dos trilhos da arte. Sentir a Arte é também encher a alma de saudade e os olhos de beleza, a beleza daquela Serra Mágica.

Terminámos a viagem, entremeada por um excelente farnel saboreado nas margens cristalinas do Rio Paivô, oferecido pelo casal nosso amigo, assim entoando de novo o hino à amizade de muitos anos.

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por Augusta Clara às 15:03



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