
Joaquim José Magalhães dos Santos PORTUGUÊS LEVEZINHO

(Adão Cruz)
Já que lhes falei de "pôr",
Vou-lhes falar de "tirar"...
Mas ESTOU é que está certo,
Mas hoje é "só" NAMORAR...
Foi só pra simplíficar...
Deu-lhe a AFÉRESE no E...
Já aí anda á luz do dia!!!
Se a SÍNCOPE dá na gente...
Pois se a LUA já foi luNa
Assim mesmo! À Portuguesa!
Já foram CANES, outrora,,,
Deu a SÍNCOPE ao triste N
E o que temos? CÃES agora...
Mas o bom é que estas SÍNCOPES
MALU veio a dar em MAU...
E então no fim das palavras
Não há qualquer proibição!!!
Pois se até o triste SANTO
Mas não se julgue... Oh! Não!
Por aqui se ficam os cortes!
Nem há fracos nem há fortes...~
Que até nos faz gaguejar!
Caso especial de SÍNCOPE!
A alguém assim tão guloso?!
20 de Novembro de 2020

Eva Cruz Castanhas

(Giacomo Ceruti, 1698-1767)
As castanhas são castanhas, de um castanho retinto, a cor em toda a plenitude. São lindas e femininas. Fruto e semente no mesmo coração. Nascem de um parto, às vezes prematuro, outras vezes natural, outras vezes com ajuda. O ouriço, o capote, abre-se e deixa ver dentro o casaco, adivinhando-se a camisa coladinha ao corpo. As castanhas aninhadas no útero, brilhantes e a sorrir. Umas soltam-se lá de cima do castanheiro, caem ao chão e abrem-se naturalmente, ou são abertas com os tacões dos sapatos de quem as quer apanhar. As mais renitentes só vêm a luz do dia depois de uns tempos na choça, quando os ouriços abrem de livre vontade. Para além das nozes e dos dióspiros, as castanhas são talvez o fruto mais tardio, e talvez por isso, o menos atacado pelos pássaros rabaceiros que tudo comem e tudo picam.
Um mar de castanhas espalha-se pelo chão. O ritual de as apanhar faz doer as costas, mas a beleza das cestas cheias de brilho recompensa. Estendidas na varanda, abertas ao sol da manhã, tornam-se menos inchadas, mais baças e mais doces, prontas para assar, para cozer ou mesmo roer. Algumas são gémeas e quando alguém encontra uma diz - "Bom dia filipina", com o sobressalto de quem ganha e o sorriso de quem perde. Jogo infantil de grande ingenuidade, na memória dos que há muito foram crianças. Parece que teve origem na Alemanha – Vielliebchen ou Phillipchen e serviu de inspiração a alguns poetas.
Da chaminé sai fumo com cheiro a resina. A lareira está acesa e bem cheia de lume. Às achas grossas, junto lenha seca de vide que a tudo dá um calor diferente. Quando a fogueira acalma, puxo com a tenaz umas brasas ao rubro para a boca da lareira. Dou um golpe nas castanhas, escolho as que me parecem mais sãs, e coloco-as sobre as brasas. Cubro-as de cinza branca e deixo-as assar lentamente. Enquanto espero, os meus olhos param naquele lume quase tão antigo como o tempo, e o pensamento voa em todas as direcções. E vejo a cidade, onde fumegam os carrinhos do assador e o cheiro adocicado se espalha pelo ar do Inverno, numa mistura de fumo e nevoeiro. Cobertas de cinza branca, vendidas em cartuchinhos de jornal, fazem a delícia de quem as saboreia ao longo da rua.
Com a tenaz, vou-as descobrindo uma a uma, fazendo-as pular nas mãos para arrefecerem, abro-as ao meio e ponho dentro uma pitada de manteiga, como fazia minha mãe. A camisa sai facilmente e o sabor…não tenho dúvidas de que é a saudade.

Eva Cruz A bateira submersa


(fotografias de Adão Cruz)
Desta vez não fomos só ver a Ria e espreitar os flamingos se os houvesse. Movia-nos a ideia de petiscar umas enguias fritas na célebre Taberna d’Alcina. Como estava uma bela tarde de Verão de S. Martinho, caminhámos um pouco até à ponta do cais da Béstida, saboreando a frescura das águas antes de saborear a nossa merenda.
Entretanto, a paz que por ali costuma reinar foi perturbada por um vozear de pescadores, de um lado e outro do cais. Um pequeno barco a motor tentava a todo o custo levantar do lodo uma bateira submersa que nem se mexia. Mas era tão grande o esforço do barco e a teimosia da barcaça afundada que a corda partiu. Sugestões e ordens de todo o lado, quer dos homens dentro de outros barcos quer dos veteranos displicentes que, de mãos nos bolsos passeavam as horas pela beira do cais, de nada valeram. A bateira estava como que amarrada ao fundo da ria.
Foi então que demos conta de um homem novo e corpulento, uma figura hercúlea vestida de fato impermeável de borracha, que desceu o paredão e se enfiou na água escura e lodosa, agarrando-se à ponta da proa e tentando movê-la com força de gigante. A bateira deu de si, ao som do ela aí vai, de todos os circunstantes, deixando a descoberto um dos lados. No meio daquela vozearia, o homem pede um canedo e começa a retirar o lodo do fundo da barcaça para aliviar o peso, quase enfiando a cabeça dentro de água. Depois de muito tempo de luta em vão, surge um novo barco de motor mais potente, amarra de novo a corda e consegue arrastá-la vagarosamente pelas águas fora, com o homem de pé, metido na água até ao pescoço, a empurrar e orientar a bateira. Parou na rampa por onde os barcos acedem à Ria e ali ficou, esburacada e velha à espera de nova sepultura.
No fim da merenda regressámos à contemplação da ria, batida pelo sol da tarde reflectido nas águas mansas, em suaves jogos de luz dourados e prateados. Rodámos lentamente pela margem, e poucas aves vimos nos sapais. Uns passaritos, uma ou outra garça pousada ou abrindo as asas e voando suavemente com a elegância própria de uma dança. Flamingos, apenas um, solitário. Eles vêm em tempo mais agreste, já nos tinha dito o pescador, e aquele dia era um dia de Verão em pleno Outono. O que terá levado aquele flamingo a ficar por ali sozinho? Saudades da Ria, como nós, ou já não ser capaz de “ O último voo do flamingo”, e por ali morrer como a bateira. Mia Couto talvez saiba, quando diz, na voz dos que falam dentro dos seus livros, que há-de vir um outro tempo e um outro…até que os flamingos empurrem o sol do outro lado do mundo.
<

Adão Cruz Ser médico. Observar e tratar doentes

O exercício da medicina é, sem dúvida, uma arte. Uma arte nobre e extremamente delicada. Assenta num pilar central e fundamental: a Competência. Mas a competência é multifactorial. Para além do inegável factor saber-conhecimento, outros há, sem os quais a competência poderá, simplesmente, não existir. Estes são muitos, mas podemos destacar como mais importantes uma sólida estrutura da consciência, a dignidade, a honestidade, o espírito de sacrifício, a humanidade e o BOM SENSO, indispensável em toda esta integração. Sabemos que o médico, como ser humano que é, está sujeito a erros, vicissitudes e até desvirtudes. Mas como todo o ser humano, tem direito a compreensão e perdão, quando as suas falhas são desvios meramente incidentais. O mesmo não acontece, como é óbvio, quando a sua conduta entra no campo lamacento da desonestidade, da irresponsabilidade e da perda dos valores éticos que integram esta incomparável profissão.

Eva Cruz O relógio e o chá

(A. Still)
Quando poiso os olhos naquele mostrador muito branco com algarismos muito negros é como se abrisse a cortina de um palco e a memória reencarnasse real e viva num horizonte de luz crepuscular sem princípio nem fim. Sempre mexeu comigo aquele relógio preto pendurado na parede da sala grande. Talvez por me fazer pensar que o tempo não pára. Recordo o meu pai a acertá-lo à noite antes de se deitar, ouço o rodar rezingão do torniquete a dar corda, o ranger leve dos ponteiros e o bater das horas a cada hora. E Invade-me nessa altura uma espécie de saudade sonâmbula, embalada pelo tic-tac do relógio que me leva a qualquer recanto da minha infância.
Esta tarde estou só. A minha única companhia é a lareira que acendi este ano pela primeira vez. A chama das vides é mais brilhante e parece conversar comigo. Em cima da mesa antiga, a toalhinha de linho muito lavada e bem passada a ferro. Do velho bule de porcelana vermelha acastanhada solta-se um cheirinho a saudade e a limonete. Lá fora, cai uma chuva miudinha em fios tão finos que lembram uma cortina de renda. Os ténues raios de sol parecem brincar às escondidas com a chuva, e ao longe um arco-íris atravessa a serra de lés-a-lés. A chover e a dar sol na cabeça do rouxinol.
E, com isto, se aconchegou a hora do chá. A hora do chá foi sempre, para mim, sagrada. Mais do que uma pausa, é um ritual. Desde pequenina que gosto de chá. Detestava leite, e minha mãe via-se aflita para o substituir por outra bebida. Fazia-me banacau (farinha feita à base de banana e cacau), cacau com limão e canela, cevada fervida à lareira numa infusa de barro, com tempo de espera para a mistura assentar. Mas a única bebida de que muito gostava era o chá. Naquele tempo, chá de hortelã ou cidreira, ervas secas ou verdes, colhidas de madrugada antes das orvalhadas, ou até de cascas secas de cebola. De manhã, acompanhava o chá um pãozito com manteiga feita em casa, batida num cântaro de barro e depois guardada em papel vegetal. Comia pouco, era muito biqueira, como diziam na aldeia. Por isso, ia trincando o pão ao longo do carreiro da escola que atravessava o mato, mais directo e menos perigoso, acompanhada da minha gata com quem repartia o pão aos bocadinhos. À tarde voltava ao meu chá.
Tenho uma variedade enorme de chás em caixas ou latinhas, desde os verdadeiros chás pretos, blended or not, infusões e tisanas. Os meus preferidos são o Earl grey, o chá de limonete e o de erva de príncipe. Ainda hoje me dá um prazer enorme prepará-lo com toda a beleza e requinte que ele merece. Basta-me, porém, tomá-lo com pão e manteiga, mel e compota, para ser um manjar. E se for com as amigas, muito maior é o prazer. Mas hoje estou só. Lá fora deixou de chover e a noite começou a cair. Dentro de mim e à minha volta, só silêncio e solidão. Apenas o crepitar da fogueira e o tic-tac do velho relógio preto na parede, a iludir-me, dizendo que o tempo não passou e parou na minha infância.