Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Manuel Hermínio Monteiro Noite, a falua dos beijos
(fotografias de autores desconhecidos)
Sabe-se pela melhor poesia que o manto da noite não é diáfano. É envolvente, escuro e sedutor nos seus jogos e afagos. A noite ocupa-se do essencial e pulveriza em sombra a multidão de adereços que enfeitam os olhos do dia. Do mais fundo de si, liberta imprevisíveis sinais. Pode então navegar-se livremente pelo seu interior sem mapa ou terra à vista. Assim, e como diz a cantiga, Lisboa deitada ao lado do Tejo é toda uma lição. A cidade alonga-se. A febre das luzes des prende-lhe sensualidade e os sintomas de uma estranha beleza. A palavra silenciosa dos néons. As montras vertidas para a rua. As estátuas suspensas nos seus gestos. O interior iluminado dos cafés. Lentamente as ruas desfazem-se dos transeuntes. Brilha a luz no trilho dos eléctricos e na pele cinzenta das calçadas. As casas crescem no seu silêncio. Janelas acesas. As portas fechadas conferem às ruas uma intimidade que cresce e sobe abrindo-se nas copas de cada árvore. Tudo se afunda nas coisas e ela derrama-se na noite diluindo os seus contornos. A noite do Verão emaranha-se nos perfumes das laranjeiras, das magnólias e dos jasmi-neiros.
Da Estrela, do Botânico, do Torel, das hortas de Campo de Ourique, da Lapa ou da Rua da Academia de Ciências liberta-se uma silva de odores adocicados e mornos que se avolumam no ar.
Escolhemos ruas que levam a encruzilhadas. Encontros fortuitos e afastamentos, tudo como num livro lido muito depressa. O teu olhar ficou nuns outros olhos que se vão. E dizemos paradoxalmente que a noite dá mais sede que o sol do deserto. Bebemos pois. Para olear a conversa pontos ínfimos da noite de onde vem tudo o que desejamos. A serenidade, como escreveu Raul Carvalho, ou o que é antiquíssimo e idêntico, como queria Pessoa. É pela noite que vamos. Pelos seus «jardins subterrâneos» onde continuamos a encontrar-nos com o Al Berto e outros poetas à solta. Entramos em lugares sufocantes. Calor, música, fumo. Uns seios que passam no aperto, demorando de propósito contra outro peito, deixando na passagem inebriantes perfumes trazidos estrategicamente ao regaço desta noite. Escorregamos até perder o pé. Submersos, os nossos gestos exprimem-se envoltos pela substância afectiva em que navegamos.
Na noite de Lisboa só os morcegos não conseguem voar. Nesta electricidade, os pólos opostos provocam inesperados contactos e curto-circuitos. Os insectos, descontroladamente seduzidos, volteiam em torno das lâmpadas. E há peixes cegos seguindo o próprio desejo e os sentimentos mais exclusivos. Depois, «chegou ao fundo a falua dos beijos / Quem sair dela será o rei do mar», como escreveu o príncipe da noite de Lisboa, Mário Cesariny. Porque a noite elege os seus próprios reis e princesas. Assiste-se a permanentes actos de coroação. A noite dispõe de seus paramentos e códigos. Depois, esmorecida, vai abandonando os seus personagens. Nas portas dos bares, os barris vazios de cerveja. Os gatos que atravessam fugidiamente as praças. Sobe do Tejo e com pezinhos de lã, a luz do amanhecer. Recua a electricidade. O dia requisita a razão e os braços que envolviam um corpo amado. Nem tempo nos dá para agradecer os sonhos. Aumenta o trânsito e engarrafa na primeira esquina. Regressas às frases feitas a boca dormente pelo longo beijo da noite que se retirou para repousar. Voltará mais logo. E sempre. E, talvez nos traga uma lua enorme para compensar.
In Guia da Noite e Lisboa Noite Fora, 1999 |
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.