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Jardim das Delícias



Sexta-feira, 20.09.13

Noite, a falua dos beijos - Manuel Hermínio Monteiro

 

Manuel Hermínio Monteiro  Noite, a falua dos beijos

(fotografias de autores desconhecidos)

 

 

 

 

   Sabe-se pela melhor poesia que o manto da noite não é diáfano. É envolvente,   escuro e sedutor nos seus jogos e afa­gos.   A noite ocupa-se do essencial e pulveriza em sombra a multidão de adereços que enfeitam os olhos do dia. Do   mais fundo de si, liberta imprevisíveis sinais. Pode então navegar-se livremente pelo seu   interior sem mapa ou terra à vista. Assim,   e como diz a cantiga, Lisboa deitada ao lado do Tejo é toda uma lição. A   cidade alonga-se. A febre das luzes des­

prende-lhe   sensualidade e os sintomas de uma estranha be­leza. A palavra silenciosa dos   néons. As montras vertidas para a rua. As estátuas   suspensas nos seus gestos. O interior iluminado   dos cafés. Lentamente as ruas desfazem-se dos transeuntes. Brilha a luz no trilho dos eléctricos e na pele cinzenta das calçadas. As casas crescem no seu   silêncio. Ja­nelas acesas. As portas   fechadas conferem às ruas uma inti­midade   que cresce e sobe abrindo-se nas copas de cada ár­vore. Tudo se afunda nas   coisas e ela derrama-se na noite diluindo os seus contornos. A noite do Verão   emaranha-se nos perfumes das laranjeiras, das magnólias e dos jasmi-neiros.

 

Da Estrela, do Botânico,   do Torel, das hortas de Campo de   Ourique, da Lapa ou da Rua da Academia de Ciências liberta-se uma silva de odores adocicados e mornos que   se avolumam no ar.

 

Escolhemos ruas que levam a encruzilhadas. Encontros fortuitos e afastamentos, tudo   como num livro lido muito depressa. O teu olhar ficou nuns outros olhos que se vão. E dizemos paradoxalmente que a noite dá mais sede que o sol do   deserto. Bebemos pois. Para olear a

conversa pontos ínfimos da noite de onde vem tudo o que dese­jamos. A serenidade, como escreveu Raul Carvalho, ou o que é antiquíssimo e idêntico, como queria Pessoa. É pela noite que vamos. Pelos seus «jardins subterrâneos» onde continuamos a encontrar-nos com o Al Berto e outros poe­tas à solta. Entramos em lugares sufocantes. Calor, música, fumo. Uns seios que passam no aperto, demorando de pro­pósito contra outro peito, deixando na passagem inebrian­tes perfumes trazidos estrategicamente ao regaço desta noite. Escorregamos até perder o pé. Submersos, os nossos gestos exprimem-se envoltos pela substância afectiva em que nave­gamos.

 

Na noite de Lisboa só os morcegos não conseguem voar. Nesta electricidade, os pólos opostos provocam inesperados contactos e curto-circuitos. Os insectos, descontroladamente seduzidos, volteiam em torno das lâmpadas. E há peixes cegos seguindo o próprio desejo e os sentimentos mais exclusivos. Depois, «chegou ao fundo a falua dos bei­jos / Quem sair dela será o rei do mar», como escreveu o príncipe da noite de Lisboa, Mário Cesariny. Porque a noite elege os seus próprios reis e princesas. Assiste-se a perma­nentes actos de coroação. A noite dispõe de seus paramen­tos e

códigos. Depois, esmorecida, vai abandonando os seus personagens. Nas portas dos bares, os barris vazios de cer­veja. Os gatos que atravessam fugidiamente as praças. Sobe do Tejo e com pezinhos de lã, a luz do amanhecer. Recua a electricidade. O dia requisita a razão e os braços que envol­viam um corpo amado. Nem tempo nos dá para agradecer os sonhos. Aumenta o trânsito e engarrafa na primeira es­quina. Regressas às frases feitas a boca dormente pelo longo beijo da noite que se retirou para repousar. Voltará mais logo. E sempre. E, talvez nos traga uma lua enorme para compensar.

 

In Guia da Noite e Lisboa Noite Fora, 1999

 

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por Augusta Clara às 17:00


3 comentários

De Beatriz Santos a 21.09.2013 às 18:31

Achei tão bonito este texto! Tão bonito mesmo. Que não acrescento.

De Augusta Clara a 21.09.2013 às 19:06

E morreu cedo demais :(
Hei-de ir publicando mais textos dele.

De Beatriz Santos a 22.09.2013 às 00:10

morrem sempre cedo os que não morrem.

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