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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Adão Cruz A Maria
(Adão Cruz)
Os olhos vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência,
casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não
conseguia.
O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos
errantes fugiam da testa cada pedaço para seu lado.
A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem
baça do avesso da vida.
Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente
trémulos, como se estivessem prestes a chorar.
Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo,
apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade.
A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos
meus, como que a dizer: tu entendes-me tu és capaz de me
compreender.
Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos
vencidos.
Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria,
ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa,
uma pisava o teatro outra o anfiteatro.
Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade
da noite.
As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por
entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento, a
mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira.
A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem
depois, era apenas instante.
Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma,
escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares e
vidrando o espaço em seu redor.
Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino.
Apesar da mão trémula, nem um pingo deixava cair no
desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso.
Se moedas cresciam da sopa, não dispensava o brande, sua
única bebida.
Por detrás do corpo sujo de Maria mordiscava uma beleza
intrigante, tivesse ela banheira e emergiria da espuma como
sereia das águas.
Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da
sombra.
Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela...ou
terá sido um sonho?
A Maria nunca mais apareceu.
A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro,
não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira
o violino, e a música era uma dispneia sibilante, cântico
fúnebre gemido pelas entranhas.
Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la.
Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo
com a mão.
Afastei-me, com a sensação de que tinha profanado um
sacrário.
A Maria nunca mais apareceu.
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