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Jardim das Delícias



Sexta-feira, 07.05.21

A Masculinidade Dominante - António Guerreiro

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António Guerreiro  A Masculinidade Dominante

 

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Ípsilon, 7 de Maio dev2021
   Era de prever: a longa história da dominação
masculina, que se manteve quase intacta
mesmo depois de todos os combates pelas
liberdades e emancipações nos mais diversos
domínios políticos e sociais iria desencadear,
quando os ventos soprassem de feição, um
ambiente de guerra dos sexos e dos géneros. Esse
ambiente está instaurado e não há tréguas à vista.
Os vários feminismos, do século XIX ao nosso
tempo, foram ainda tentativas pacíficas de
reivindicar a igualdade entre homens e mulheres.
Tratou-se sempre de reclamar os direitos que os
homens já tinham, mas sem pôr em causa
verdadeiramente as prerrogativas masculinas. O
feminismo procedia pela nomeação e interrogação
das mulheres, sobre si próprias e os seus direitos. O
movimento #MeToo introduziu um aspecto
diferente: nomeou e apontou com o dedo a
sociedade patriarcal, masculina; objectivou o que
sempre tinha tido o estatuto de sujeito. E fê-lo com
uma fúria que tem sido, nalguns momentos,
associado a um terror delator. O #MeToo pôs os
homens causa, declarou guerra à permanência do
patriarcado, assaltou as fortalezas que guardavam os
privilégios de género. Não é propriamente um
movimento de reivindicação, como foram os vários
feminismos, mas de ataque; tem um pensamento
estratégico e não se fica pelas tácticas. Em suma:
recorreu a alguma violência contra o que jamais se
transformaria por meios pacíficos.
Nomear e objectivar o masculino, interrogá-lo e
pô-lo em causa, é uma operação da maior
importância, na medida em que lhe retira o
privilégio que sempre teve: o de ser o próprio lugar
da razão (daí, a mulher como bruxa, histérica,
irracional, “continente negro”). Trata-se de uma
autêntica revolução que muitos ainda não
compreenderam ou que relacionam apenas com a
guerra em curso e as suas tropas mais avançadas.
Mas essa operação alargou-se, está a ser levada a
cabo também por outros meios, mais serenos e
reflexivos, o que é uma prova de que, para além de
todo o ambiente de guerra, há algo muito mais
profundo e irreversível que veio a de cima. Ou do
qual essa guerra é um sintoma. Um historiador e
escritor francês, Ivan Jablonka, tem dado um
contributo enorme para uma crítica da sociedade
patriarcal, da dominação masculina, tão alienada do
exercício de introspecção. No seu último livro, Des
hommes justes. Du patriarcat aux nouvelles
masculimités, ele define uma moral do masculino,
capaz de instaurar uma “justiça de género”.
Trata-se, como se diz logo na introdução, de uma
utopia. Mas de uma utopia que deve guiar o
pensamento e a acção. Essa “justiça de género”
obriga, por exemplo, a pensar muito a sério o que se
tem revelado muito difícil de pensar, a diferença
entre a sedução e o assédio, sem que se acuse de
operação “policial” o que é uma prática justa ou,
inversamente, sem que a justiça de género se
transforme em polícia de género. Ivan Jablonka
mostra que não tem nada de bizarro — e responde
adequadamente a uma necessidade terminológica —
o conceito de “masculinidade tóxica”. É um modo
de definir certas formas de masculinidade que
consistem na adesão, responsável por modos de
alienação masculina, a um certo número de
estereótipos. O que é que a masculinidade tóxica
aliena? Aquilo a que Jablonka chama as
“masculinidades dissidentes”. A masculinidade
tóxica coincide com o modelo do macho tradicional
(cujo reinado, diz Jablonka, chegou ao fim) como
máquina de dominação, não apenas das mulheres,
mas também dos homens cuja masculinidade é
considerada ilegítima, dissidente ou débil. Por isso, é
importante que aquilo que dantes era designado
como “drama passional” seja hoje dito com a palavra
“feminicício” porque é disso que se trata: uma
mulher que é morta pelo cônjuge ou ex-cônjuge
enquanto mulher. A masculinidade criminosa é uma
tipologia que não tem equivalente no feminino, o
que mostra bem até onde chega a masculinidade de
dominação.
A utilização do plural, masculinidades e não
masculinidade, é da maior importância no discurso
de Jablonka. Desde logo porque permite dissociar a
masculinidade da virilidade (a primeira tem um
sentido muito mais lato), e depois porque é um
modo de dizer que não existe o “eterno masculino”,
há muitas formas de ser homem. Na verdade, o
“eterno feminino” foi uma operação retórica através
da qual era o masculino que se eternizava, até
porque o que sempre se disse, antes e depois de
Verdi, é que “la donna è mobile".
 

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por Augusta Clara às 17:04




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