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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Anabela S. Carvalho Adão Cruz, poeta da natureza, pintor da liberdade
Labor (S. João da Madeira), 3 de Abril de 2014
Médico, poeta e pintor, Adão Cruz exibe na biblioteca um excerto da sua intimidade. Razão para uma conversa que começou nas artes e atravessou, de forma ligeira, uma vida que se cruza com a história recente do país
Adão Cruz cresceu no lugar de Figueiras, freguesia de São Pedro de Castelões, Vale de Cambra, em completa harmonia com a natureza. Essa infância, que tanta nostalgia lhe traz, transborda facilmente para os versos, que escreve desde catraio. É talvez o único tema, por assim dizer, da poesia de Adão Cruz, que, na verdade, não tem tema nenhum.
Já a pintura surgiu mais tarde. O médico tentou transpor os mesmos sentimentos para a tela e saiu-lhe uma espécie de “expressionismo ficcionista do sentimento”. Um figurativo à sua maneira, ou seja, “rude” e “espontâneo”, sem regras ou preocupações técnicas e académicas que, como disse Júlio Pomar, “é a doença congénita das artes”. Uma espontaneidade e liberdade que o médico mantém também quando escreve e que, na sua opinião, mais fielmente respeita o sentimento que o move.
Falar com Adão Cruz sobre poesia e arte é falar sobre o próprio conceito de uma e de outra. A questão tem-no ocupado nos últimos anos. “Qualquer expressão artística tem na sua essência o sentimento poético”, afirma. O que é o mesmo que dizer que a poesia está em todas as formas artísticas. O que é a poesia? Defini-la é como tentar definir o próprio amor, exemplifica. “O sentimento poético e o sentimento artístico não nascem do dia para a noite. Pode haver algum componente genético mas têm de ser vividos, esculpidos pela vida”, explica. E essa depuração só se faz através daquela que para o médico de 77 anos é a maior riqueza dos homens: o pensamento e a razão. Depois o desafio é expressar esse sentimento, sem tender para o sentimental. “Costumo dizer que somos uma espécie de garimpeiros a peneirar o cascalho das palavras”, afirma.
Para Adão Cruz, na poesia e na pintura, de pouco vale a forma. É no efeito das suas palavras ou traços em quem os observa que está o real valor da obra. Por isso não dá nomes aos quadros, por exemplo. “Essa coisa da obra ser nossa, é de facto. Mas depois é de toda a gente que a vê”, revela. Essa gente verá no poema ou no quadro algo que não estaria na sua origem mas é uma interpretação válida porque gerada através dos estímulos que o artista criou. A consciência disto alicia Adão Cruz, avesso a descodificações que muitas vezes “empobrecem a obra e as capacidades de interpretação” da mesma.
O seminário, a guerra e o 25 de Abril
A vida do médico cardiologista está repleta de episódios que marcam e definem um rumo de vida. Aos 11 anos, depois de uma infância em total “ordenação com a natureza”, foi internado num seminário jesuíta, donde fugiu três anos depois. “Aquilo foi a trucidação da minha vida de infância. Foi um corte radical que me marcou a vida toda. Até hoje!”, revela. Na hora de rezar o jovem Adão brincava com o terço e na hora de meditar olhava irrequieto em volta. Estava entre os piores comportados do seminário e o reitor, resignado, até já tinha concluído pela ausência de vocação no jovem. Numa manhã, Adão pirou-se.
Daí foi para Colégio de Vale de Cambra mas as boas vindas do reitor - outro padre que, numa das primeiras abordagens ao novo aluno, deu-lhe uma chapada - não o convenceram. Acabou por mudar-se para o Colégio de Oliveira de Azeméis, que frequentava com a irmã, a professora Eva Cruz.
Fez-se médico e andou seis anos a calcorrear montes e vales de Vale de Cambra e da região, numa altura em que a medicina transitava para a era moderna. “Foi a minha grande escola de medicina”, comenta. Chamado para a guerra colonial, esteve destacado na Guiné durante dois anos. Nesse período, o jovem médico, que já levava de Portugal sentimentos antifascistas e anticolonialistas, despertou a consciência social e política. Assistiu à exploração dos agricultores, fez-se amigo dos nativos e até hoje troca correspondência com alguns.
Quando voltou, foi recebido em apoteose. Os habitantes de Vale de Cambra receberam o médico com a pompa e circunstância da época: banda de música e missa solene. Mas o 25 de Abril virou o bico ao prego. A oposição de Adão Cruz ao regime fascista e os ideais de esquerda empurraram-no para a presidência da comissão administrativa da câmara de Vale de Cambra, período do qual não guarda especial saudade. Em pleno PREC, os ânimos estavam acerbados e o extremismo eclodia. A população estranhou ver o médico ao lado dos comunistas e, estimulada pelos líderes de direita, começou a contestá-lo. Adão Cruz chegou a correr para Vale de Cambra a meio da noite porque uma multidão de 300 pessoas ameaçava invadir a câmara. Quando lá chegou, nenhum dos contestatários o olhava de frente. O episódio não deu em nada porque o respeito que granjeou no passado acabou por falar mais alto.
A ruína dos sonhos
Desiludido, um ano depois de tomar posse, candidatou-se à Assembleia Constituinte. Era a única forma de abandonar o cargo e o médico estava decidido a fazê-lo. “Fiquei muito magoado porque dei tudo para dar alguma dignidade àquela gente”, recorda. Lembra nomeadamente as reuniões de câmara com representantes das freguesias e com quem mais quisesse aparecer, em oposição ao que acontecia durante o fascismo. “O nosso empenho era democratizar”, conclui, ainda com mágoa.
Por esta altura, o médico já vivia em S. João da Madeira, onde até hoje mantém um consultório modesto e discreto na Rua do Visconde. Desde que se mudou para o Porto, é o consultório com 40 anos que o traz à cidade duas vezes por semana.
Aposentou-se há anos mas esporadicamente ainda volta ao Hospital Santo António, onde fez o grosso da carreira. Olha com muito desalento para a evolução do Serviço Nacional de Saúde em particular e do país em geral. “Estou convencido que qualquer pessoa vê que isto é a destruição de tudo o que se adquiriu até aqui”, lamenta, convencido de que só muito mais tarde se voltará a adquirir tudo o que se perder agora. Teme que a ganância, a escassez e a pressão sobre a população façam emergir uma sociedade pobre e individualista onde os seus filhos e netos viverão. “Dos direitos mais importantes do homem é o direito ao trabalho. Qualquer sociedade devia tê-lo como prioritário”, comenta, lembrando que o SNS chegou a estar na 12.ª posição mundial mas hoje não dá resposta a quem precisa. “Nunca pensei que os meus sonhos ruíssem desta forma”, confessa.
A conversa com Adão Cruz esteve para terminar neste tom mas a fotografia dos netos e o regresso à poesia rapidamente lhe mudaram a expressão.
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