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Jardim das Delícias



Quinta-feira, 22.05.14

Delacroix: A cauda de um fóssil varrendo - Jorge Silva Melo

 

  Jorge Silva Melo  Delacroix: A cauda de um fóssil varrendo

 

(Eugène Delacroix, A barca de Dante)

 

 

   Só o vi ao vivo este Inverno, Inverno de 2003, em extraordinária exposição em Karlsruhe, e não me esqueci ainda deste trabalho pe­queno, de 32 x 40 cm, soturno, literário, denso, escuro. É trabalho relativamente juvenil de quem foi mais do que muito precoce, se pensarmos que tinha vinte e muito poucos anos o Delacroix de A Barca de Dante, obra-prima arrebatada e manifesto. Agora, olho muitas vezes a reprodução medíocre que comprei, postal, como tantos empastelado, deste pequeno quadro, Rebelde Ferido Matando a Sua Sede, de 1825 (Delacroix tem 27 anos e já pintou majestáticas composições de sabedoria imensa, O Massacre de Quios, inclusive, ou a belíssima Aspasia, inquieta como a Bergman em Rossellini), este quadrinho de um moribundo que ainda tenta beber, na volúpia de um colorido que vem de Ticiano e de Veneza, na construção tão simples do triângulo com que ainda a vida se ergue e não rasteja, naquele vermelho que escorre da boca do rebelde e tinge a água, na transparência verde da poça infecta, na noite profunda, noite azul daquela distante planície, é quem mais me acompanha, a sua tristeza sem melancolia, a sua extrema dignidade perante a dor.

Haverá outros trabalhos, as esplendorosas argelinas que nem um dia chega para analisarmos, os fogosos cavalos, ai os tigres!, mas é neste homem que morre e nesta perspectiva de negrume que uma poesia mais interior se desenha, mais nocturna, a poesia que o leva à maior rapidez, àqueles cristos quase sem corpo e só carne (consegui­rei. em Oslo, ver a sua Piedade, que, quando lá fui, não estava?) ou a rapidez da Batalha de Taillebourg, o mais veloz dos épicos, como o Falstaff de Welles, badaladas da meia-noite. Como Godard o quis, Delacroix mantém a frescura do esquisso na obra acabada, a impre­cisão do ensaio, a procura do tom — que mestre do imperfeito, que rápido olhar tão feroz, que técnica tão desprendida para este vento?

Se, no final dos anos 60, se falava de Câmara-Stylo, se propa­gandeava a montagem-cut, um cinema manual tão fácil, tão veloz como a Bic, não era a esta pintura, suavemente nua de sombras, bru­talmente voluptuosa, que se queria responder? Que ânsia é esta, que calma clara, que desprendimento o deste quadrinho? E que gesto é este, sabedor, conhecedor de tanta pintura que veio de trás, Rubens, claro, a curva imparável das cores, Ticiano, sempre, que gesto é este que perdura e se transforma, gerando pintura na sua prestezza, imparável, apoteoses de construção, composição, cor, rapidez, mundo novo?

Lembro-me de uns versos eléctricos de Luiza Neto Jorge, essa parisiense:

 

Vi num traço a lume oposto

ao ponteiro das horas

a cauda de um fóssil

varrer o céu.

 

Delacroix pinta varrendo o céu, a história, a morte. E a urgência do desenho toma conta do quadro.

Público, 8 de Maio de 2004

 

(in Século Passado,Cotovia)

 

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por Augusta Clara às 15:00




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