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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Jorge Silva Melo Delacroix: A cauda de um fóssil varrendo
(Eugène Delacroix, A barca de Dante)
Só o vi ao vivo este Inverno, Inverno de 2003, em extraordinária exposição em Karlsruhe, e não me esqueci ainda deste trabalho pequeno, de 32 x 40 cm, soturno, literário, denso, escuro. É trabalho relativamente juvenil de quem foi mais do que muito precoce, se pensarmos que tinha vinte e muito poucos anos o Delacroix de A Barca de Dante, obra-prima arrebatada e manifesto. Agora, olho muitas vezes a reprodução medíocre que comprei, postal, como tantos empastelado, deste pequeno quadro, Rebelde Ferido Matando a Sua Sede, de 1825 (Delacroix tem 27 anos e já pintou majestáticas composições de sabedoria imensa, O Massacre de Quios, inclusive, ou a belíssima Aspasia, inquieta como a Bergman em Rossellini), este quadrinho de um moribundo que ainda tenta beber, na volúpia de um colorido que vem de Ticiano e de Veneza, na construção tão simples do triângulo com que ainda a vida se ergue e não rasteja, naquele vermelho que escorre da boca do rebelde e tinge a água, na transparência verde da poça infecta, na noite profunda, noite azul daquela distante planície, é quem mais me acompanha, a sua tristeza sem melancolia, a sua extrema dignidade perante a dor.
Haverá outros trabalhos, as esplendorosas argelinas que nem um dia chega para analisarmos, os fogosos cavalos, ai os tigres!, mas é neste homem que morre e nesta perspectiva de negrume que uma poesia mais interior se desenha, mais nocturna, a poesia que o leva à maior rapidez, àqueles cristos quase sem corpo e só carne (conseguirei. em Oslo, ver a sua Piedade, que, quando lá fui, não estava?) ou a rapidez da Batalha de Taillebourg, o mais veloz dos épicos, como o Falstaff de Welles, badaladas da meia-noite. Como Godard o quis, Delacroix mantém a frescura do esquisso na obra acabada, a imprecisão do ensaio, a procura do tom — que mestre do imperfeito, que rápido olhar tão feroz, que técnica tão desprendida para este vento?
Se, no final dos anos 60, se falava de Câmara-Stylo, se propagandeava a montagem-cut, um cinema manual tão fácil, tão veloz como a Bic, não era a esta pintura, suavemente nua de sombras, brutalmente voluptuosa, que se queria responder? Que ânsia é esta, que calma clara, que desprendimento o deste quadrinho? E que gesto é este, sabedor, conhecedor de tanta pintura que veio de trás, Rubens, claro, a curva imparável das cores, Ticiano, sempre, que gesto é este que perdura e se transforma, gerando pintura na sua prestezza, imparável, apoteoses de construção, composição, cor, rapidez, mundo novo?
Lembro-me de uns versos eléctricos de Luiza Neto Jorge, essa parisiense:
Vi num traço a lume oposto
ao ponteiro das horas
a cauda de um fóssil
varrer o céu.
Delacroix pinta varrendo o céu, a história, a morte. E a urgência do desenho toma conta do quadro.
Público, 8 de Maio de 2004
(in Século Passado,Cotovia)
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Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
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Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...