Gostaria de ser o mais sucinto possível. Ninguém me fale da guerra se a não viveu. Todos sabemos que uma boa parte dos enviados para o dito Ultramar foram passar um período de férias, conhecendo a guerra apenas pelo que ouviam. Mesmo na Guiné. Quem, como eu, esteve sempre na frente e no coração dos conflitos, apesar de correr menos riscos pelo facto de ser médico, tem direito a uma palavra sobre esta polémica dificilmente tragável.
Nas terras onde estive, tornei-me amigo de toda a gente, desde os militares às milícias nativas agregadas ao exército português e às populações locais. Eu amava aquela gente e sei que me amavam. Quem me conhece sabe, através da minha escrita e dos meus testemunhos públicos e privados que isso é verdade. Eu amava aquela gente e aquele povo, que não era a minha gente nem o meu povo, mas a gente e o povo de Marcelino da Mata. Não vou aqui relatar as provas por muitos amigos conhecidas, do afecto com que aquele povo me retribuiu o amor que lhe dei e que ainda hoje é uma força vital que me enche o peito e nunca morreu.
As milícias negras locais, como todos sabem, faziam parte das nossas Companhias e lutavam ao lado do exército português, como Marcelino da Mata. Fui amigo de muitos deles, tratei-os e tratei as suas mulheres e filhos com todo o carinho. Um deles, que me lavava a roupa e limpava o quarto, foi sem dúvida um dos meus maiores amigos da Guiné. Muitos deles eram soldados intrépidos e corajosos, mas eu não os admirava. Tinha pena deles, pela sua incapacidade de reconhecerem quem era o seu verdadeiro inimigo, tinha pena deles por não os ver ao lado de Amílcar Cabral, Titina Silá, Nino Vieira e tantos outros que lutavam pela mais justa das causas que era a libertação do seu povo. E tinha pena dos nossos militares, não só dos que nada sentiam de patriótico ao saberem que foram para ali empurrados para defenderem uma coutada da Cuf e da Casa Gouveia, mas também daqueles que cometiam atrocidades e andavam com colares de orelhas ao pescoço, e ainda daqueles que arriscavam corajosamente a vida por um dever que lhes fora inculcado na cabeça, a defesa da soberania.
Eu não queria que os nossos homens morressem. Sofri muito com as perdas dos nossos soldados e oficiais, alguns meus grandes amigos, incluindo o meu colega de quarto, mas nunca fui capaz de culpar os guerrilheiros. Sempre culpei Salazar e o Estado Português. E confesso que também sofria e ficava muito triste quando havia perdas do lado do “inimigo”. Ansiando sempre que não houvesse mortos e feridos nas diversas operações, quer de um lado quer de outro, o meu coração triste lá ia sorrindo à medida que eu me ia convencendo de que a guerra estava mais do que perdida.
Eu amei muito e ainda amo a gente e o povo que não era a minha gente e o meu povo, era a gente e o povo de Marcelino da Mata, a gente e o povo que Marcelino da Mata matou e atraiçoou. Nem mesmo retirando-lhe, se possível fosse, as chacinas e atrocidades que cometeu, mais monstruosas do que as de muitos brancos, se poderia pensar em chamar-lhe herói. Deixo à vossa consciência as conclusões que quiserem retirar desta minha pura e sincera confissão.