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Jardim das Delícias



Quinta-feira, 13.11.14

Raízes - Mia Couto

ao cair da tarde 5b.jpg

 

Mia Couto  Raízes

 

marcel caram1.jpg

(Marcel Caram)

 

  Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda.

Veja o que me está a prender a cabeça.

A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.

Então, mulher? Estou amarrado?

Não, marido, você criou raízes.

Raízes?

Já se juntavam as vizinhanças. E cada um pu­xava sentença. O homem, aborrecido, ordenou à esposa:

Corta!

Corta, o quê?

Corta essa merda das raízes ou lá o que é...

A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.

Dói-lhe?

Quase nem. Porquê me pergunta?

É porque está sair sangue.

Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém o destroncasse dali. Me ajudem, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Covaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se vislumbrava o fim das radiculações.

Me tirem daqui, gemia o homem, já noite.

Revesaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada. Retiraram toneladas de chão, vaza­ram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que já um alguém, sabedor de planetas, disse:

As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo.j

E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais velho e disse:

A cabeça dele tem que ser transferida.

E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho.

Vamos plantar a cabeça dele lá!

E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer?

Lá, na lua.

E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.

 

(in Contos do Nascer da Terra, Caminho)

 

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por Augusta Clara às 16:00


3 comentários

De Augusta Clara a 13.11.2014 às 16:59

"Nesse dia nasceu o primeiro poeta". Não podia ter um fim mais bonito.

De macaco a 04.02.2025 às 13:55

Não sei porquê, mas gosto de fazer isto. Talvez seja a minha forma de lidar com o stress ou algo do género, mas faço-o uma vez por semana. Geralmente, ando com um saco e arrasto-me numa espécie de posição agachada a fazer ruídos de duende, depois ando pela minha casa e apanho várias “bugigangas” diferentes e coloco-as no meu saco enquanto digo coisas como “vou comer isso” e rio-me maniacamente com a minha voz de duende (“bugigangas” podem incluir qualquer coisa, desde obejtis que encontro no chão a talheres ou outros utensílios). No outro dia, estava a falar com os meus vizinhos e eles mencionaram que ouviam barulhos estranhos como o que escrevi e eu estava a gritar internamente durante toda a conversa. Tenho 99% de certeza de que eles não sabem que sou eu, mas esse 1% de probabilidade está a pesar-me muito.

De adão cruz a 13.11.2014 às 21:01

Uma maravilha. Já conhecia

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