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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Lista de palestinianos mortos pelo exército de Israel ontem, 14 de Maio de 2018
Ezz el-din Musa Mohamed Alsamaak, 14 years old
Wisaal Fadl Ezzat Alsheikh Khalil, 15 years old
Ahmed Adel Musa Alshaer, 16 years old
Saeed Mohamed Abu Alkheir, 16 years old
Ibrahim Ahmed Alzarqa, 18 years old
Eman Ali Sadiq Alsheikh, 19 years old
Zayid Mohamed Hasan Omar, 19 years old
Motassem Fawzy Abu Louley, 20 years old
Anas Hamdan Salim Qadeeh, 21 years old
Mohamed Abd Alsalam Harz, 21 years old
Yehia Ismail Rajab Aldaqoor, 22 years old
Mustafa Mohamed Samir Mahmoud Almasry, 22 years old
Ezz Eldeen Nahid Aloyutey, 23 years old
Mahmoud Mustafa Ahmed Assaf, 23 years old
Ahmed Fayez Harb Shahadah, 23 years old
Ahmed Awad Allah, 24 years old
Khalil Ismail Khalil Mansor, 25 years old
Mohamed Ashraf Abu Sitta, 26 years old
Bilal Ahmed Abu Diqah, 26 years old
Ahmed Majed Qaasim Ata Allah, 27 years old
Mahmoud Rabah Abu Maamar, 28 years old
Musab Yousef Abu Leilah, 28 years old
Ahmed Fawzy Altetr, 28 years old
Mohamed Abdelrahman Meqdad, 28 years old
Obaidah Salim Farhan, 30 years old
Jihad Mufid Al-Farra, 30 years old
Fadi Hassan Abu Salmi, 30 years old
Motaz Bassam Kamil Al-Nunu, 31 years old
Mohammed Riyad Abdulrahman Alamudi, 31 years old
Jihad Mohammed Othman Mousa, 31 years old
Shahir Mahmoud Mohammed Almadhoon, 32 years old
Mousa Jabr Abdulsalam Abu Hasnayn, 35 years old
Mohammed Mahmoud Abdulmoti Abdal’al, 39 years old
Ahmed Mohammed Ibrahim Hamdan, 27 years old
Ismail Khalil Ramadhan Aldaahuk, 30 years old
Ahmed Mahmoud Mohammed Alrantisi, 27 years old
Alaa Alnoor Ahmed Alkhatib, 28 years old
Mahmoud Yahya Abdawahab Hussain, 24 years old
Ahmed Abdullah Aladini, 30 years old
Saadi Said Fahmi Abu Salah, 16 years old
Ahmed Zahir Hamid Alshawa, 24 years old
Mohammed Hani Hosni Alnajjar, 33 years old
Fadl Mohamed Ata Habshy, 34 years old
José Goulão Matança
abrilabril, 19 de Outubro de 2017
Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.
Ricardo Graça / Agência Lusa
Anuncia-se que, por ora, as chamas estão extintas; fazem-se os enterros, recolhem-se os salvados, secam-se as lágrimas, respeita-se o luto, limpam-se os destroços, recontam-se as poupanças – se ainda as há – deitam-se mãos à obra porque a vida continua e sempre é menos dura sob o abrigo de um tecto. Até à próxima.
Sem surpresa, e como já percebemos, agora segue-se a campanha feroz contra o governo, exigem-se cabeças de ministros, sobe de tom a troca de soundbites como balas, exercita-se a caridadezinha público-privada, provavelmente teremos de assistir às repugnantes práticas de necrofilia política dos que, habituados a tratar mal os vivos jamais respeitarão os mortos.
Cem mortos e dezenas de feridos é o rescaldo provisório da hecatombe dos incêndios deste ano em Portugal. Ano após ano, fogos florestais sempre houve; mas não há memória de uma tragédia humana com esta envergadura, de uma insegurança, de um sentimento de fragilidade e de terror que se estende a todos os cidadãos que habitam no território português.
Onde havia jogos sujos de madeireiros e se apostavam grandes interesses imobiliários e florestais tornou-se este ano comum o sacrifício de vidas humanas. Salta à vista, sente-se no peito, que o País ficou desestabilizado num tempo em que, finalmente, recomeçava a olhar em frente.
Escrevi há dois meses que as circunstâncias qualitativamente diferentes dos fogos deste ano exigiam abordagens, medidas e respostas diferentes. Lembrei o caso, também único, do Verão de 1975, quando a multiplicação de incêndios, então centralizados no Alentejo, tinha como objectivo político não apenas a destruição da Reforma Agrária mas também a expansão de um clima de pânico que forçasse o país e os seus habitantes a desejarem um recuo drástico na Revolução.
E admiti a hipótese de estarmos agora perante uma desestabilizadora operação de terrorismo puro e duro, uma prática que, embora não pareça a quem se regula pela comunicação social dominante, não se cinge às malfeitorias do Daesh, nem sequer ao universo do radicalismo islâmico.
A menção ao terrorismo incomodou algumas pessoas, que logo a catalogaram na imensa pasta da «teoria da conspiração», onde afinal cabe tudo o que não corresponde às medidas autorizadas e padronizadas de análise político-militar-económica-financeira.
Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.
Figuras governamentais como o secretário de Estado da Administração Interna, mas principalmente os testemunhos doridos dos bombeiros e de serviços de protecção civil, dão-nos a certeza de que muitos dos focos de incêndio foram provocados por mãos humanas.
Nem poderia ser de outra maneira: milhares de fogos acumulados em quatro dias (grosso modo) – mais de 700 só no passado domingo – e tocando desordenadamente grande parte do território nacional, tornando insuficientes as desmultiplicações possíveis dos serviços e meios de socorro existentes, só podem ser fruto de uma estratégia coordenada movendo centenas de piões; ou então Portugal é um perigoso ninho de pirómanos adormecidos os quais, movidos por um misterioso surto epidémico, e cada um por si, decidem atear e reacender fogos praticamente ao mesmo tempo e em sítios diferentes. Só acredita nesta delirante saga hollywoodesca quem quiser.
Além disso, não há circunstâncias climáticas, por muito duras que sejam e alteradas que estejam, susceptíveis de se combinarem de forma nociva e convergente para provocarem os efeitos trágicos registados, porque se fazem sentir de maneiras diferentes em zonas distantes e diversificadas como as que foram atingidas pelos incêndios, principalmente na vaga mais recente.
«(...) o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.»
Quando se escuta o primeiro-ministro de Portugal, porém, verifica-se que não existe intenção de abordar a hecatombe dos incêndios deste ano de acordo com particularidades específicas que saltam à vista – a menos relevante das quais não é, por certo, a matança de uma centenas de cidadãos portugueses.
Para o governo, tudo continua a acontecer devido às insuficiências do ordenamento florestal, em circunstâncias que são «estruturais e não conjunturais». Isto é, a «época de incêndios» deste ano foi igual às de há cinco, dez ou vinte anos, resultante das mesmas causas, ainda que as consequências tenham sido muito diferentes e mais graves. Assim sendo, apenas conseguimos observar o Estado a fugir da definição e da denúncia de um inimigo que não olha a meios, que manipula e liquida a vida de cidadãos portugueses desde que isso sirva os seus fins.
Num país onde os serviços de espionagem se entretêm a espiolhar os cidadãos porque cada um de nós pode ser um terrorista islâmico em potência, quiçá um perigoso anti-neoliberalista, ou em que os detidos por atear incêndios são olhados como «lobos solitários», e depois quase sempre libertados, parece não haver condições para investigar o que poderá existir por detrás de cada alegado pirómano.
Ou será que os serviços de segurança e de investigação criminal não terão disponibilidade para se ocuparem de todas as possíveis pistas que possam esclarecer a morte de uma centena de portugueses? Mortes que foram assassínios, pois, segundo tantos testemunhos, houve fogos desencadeados de modo a dificultar ao máximo, ou até tornar impossíveis as operações de salvamento.
Este quadro deixa-nos a sensação de que a palavra «terrorismo» aplicada aos incendiários queima os sofisticados circuitos dos gadgets dos agentes de espionagem. Ora basta que alguém dê um piparote num bobby no Hide Park de Londres ou um sopapo num flic à entrada do Jardim das Tulherias, em Paris, para que estejamos perante atentados terroristas que dão instantaneamente a volta ao mundo e suscitam novas e cada vez mais apertadas medidas de segurança afectando comunidades inteiras; em Portugal, eventuais teias incendiárias assassinam cem pessoas e parece não haver interesse da comunidade de investigação, ou vontade política para esquadrinhar todas as circunstâncias até à mais recôndita hipótese.
As medidas de reordenamento florestal são essenciais, os pareceres científicos de uma laureada Comissão Técnica Independente serão valiosos; esses resultados, porém, seriam mais úteis e de efeito geral maximizado se acompanhados pelo despiste de todas as eventualidades criminosas, incluindo a hipótese terrorista, associadas aos incêndios em Portugal.
Se, por um acaso tão frequente por essa Europa afora, um qualquer indivíduo fizesse um telefonema reivindicando para o Daesh a autoria da vaga de fogos no território português, não faltaria quem gritasse «terrorismo, terrorismo!».
Porém, tal não aconteceu, e ainda bem: a tragédia é um acontecimento entre portugueses e qualquer manobra desse tipo criaria um ruído que nos deixaria ainda mais longe da realidade. Já é suficientemente gravoso que o Estado se exima de fazer aquilo que o mais comum dos sensos aconselharia para segurança dos portugueses: uma exaustiva investigação criminal.
A ausência de uma acção enérgica de investigação e a insistência numa gestão comum de circunstâncias recorrentes fragilizam o governo, transformam-no em bombo da festa que se põe a jeito, à mercê dos políticos sem escrúpulos que se movimentam na oposição, dos pescadores de águas turvas que medram no lodo da instabilidade, e, sem dúvida, dos que estão por detrás da estratégia incendiária.
É fartar vilanagem, com a comunicação social na dianteira, tocando a rebate, usando os mortos para disseminar recados exigindo demissões ministeriais, ou até de todo o governo. O terror, o boato e a mentira sempre foram pilares da desestabilização. Existe, porém, um facto dispensando apresentação de prova: o agravamento do fenómeno incendiário que se regista em Portugal coincide com a vigência de um governo que, além de ser uma lufada política de ar fresco, quebrou tabus, pôs em causa doutrinas manipuladoras que apodreciam a democracia portuguesa.
Um governo que, apesar das suas enormes limitações e das flagrantes tibiezas, como a situação presente demonstra, inquieta sistemas e poderes instalados, inventores de normas arbitrárias que lhes garantem privilégios por uma espécie de usucapião.
Porém, encolhido e defensivo quando teria tudo a seu favor, incluindo o apoio das populações, se optasse por uma estratégia determinada e enérgica que conduzisse ao levantamento da realidade incendiária até às últimas consequências, o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.
Vulneráveis a campanhas de propaganda sem escrúpulos, enredados numa teia de insegurança e até de terror, os portugueses poderão não perdoar ao governo os efeitos da gestão burocrática de uma situação que adquiriu uma gravidade excepcional. Entretanto, moções de censura contra o executivo entram no Parlamento; algures, por detrás da teia de «lobos solitários», os verdadeiros pirómanos terroristas agradecem as hesitações de uns, o descaramento de outros, enquanto esfregam as mãos. E continuarão a matança, até que se sintam recompensados e satisfeitos.
José Goulão A Catalunha e os fantasmas de Espanha
Em síntese: a chamada transição para a democracia foi viciada através da reactivação abusiva da monarquia, regime rejeitado em referendo pelos povos de Espanha.
abrilabril, 28 de Setembro de 2017
A violência discricionária de Madrid e a chantagem de Bruxelas, fomentando todo um indisfarçável ambiente de condenação, desde os governos da União Europeia à NATO, são as respostas autistas à intenção das legítimas instituições democráticas catalãs de auscultar o povo sobre a independência da Catalunha, velha, culta e personalizada nação europeia.
O comportamento do governo de Madrid, invocando a autoridade do Estado Espanhol e as normas de uma Constituição que nunca deixou de ser transitória e contrária às vontades em seu tempo manifestadas pelos povos de Espanha, não é surpreendente e está dentro da lógica anacrónica de Rajoy e companhia. Estes não passam de neofranquistas aproveitando-se do facto de a transição política de 1975/1976 e a Constituição dela decorrente serem orientadas pela necessidade de salvaguardar o essencial dos interesses franquistas e da monarquia, embora sob uma capa democrática, perante as urgências suscitadas por dois acontecimentos que desaconselhavam a inércia: a morte de Franco e a revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974.
O franquismo assumiu, por isso, as rédeas da transição fazendo o rei Juan Carlos suceder a Franco assim que este morreu e, com excepção de poucos, incipientes e colaboracionistas intervalos assegurados depois por «terceiras vias» socialistas, mantém-se à frente do Estado, chame-se o presidente do governo Aznar ou Rajoy e o Bourbon de turno Juan Carlos ou Felipe.
Em síntese: a chamada transição para a democracia foi viciada através da reactivação abusiva da monarquia, regime rejeitado em referendo pelos povos de Espanha.
É importante notar, contudo, o empenhamento da União Europeia em travar a simples manifestação democrática de opinião do povo da Catalunha sobre a independência ou não independência. Uma animosidade que teve como sonoro porta-voz o anterior presidente da Comissão, Durão Barroso – ou não fora ele um confrade de Aznar no lançamento da guerra para desmantelamento do Iraque – e que prossegue nas atitudes dos actuais dirigentes.
Apenas por pura ingenuidade poderíamos admitir que figuras como Juncker, Draghi, Mogherini, Georgieva, Dombrowskis, Tusk, Moedas e outros que tais conhecem a história europeia e a importância que nela tem a secular nação catalã, sobretudo quando comparada com Estados de conveniência brotando como cogumelos, aqui e ali, consoante os interesses que determinam o que deve acontecer no continente.
Os tecnocratas citados comportam-se como se a história do velho continente se resumisse às ordens, estatísticas, gráficos e powerpoints que recebem das entidades e interesses que lucram com a existência da União Europeia, a qual tem tanto a ver com a história da Europa como as fábulas difundidas a propósito das intenções atribuídas aos «pais fundadores».
Nessa sabedoria dos eurocratas não cabem, como é óbvio, as razões de ser do que acontece na Catalunha nem o respeito pela vontade dos catalães, ainda que manifestada livremente e através do voto democrático. Pelo contrário, Bruxelas apoia sem rebuço o governo de Madrid quando este viola princípios elementares do Estado de direito para impedir que os cidadãos catalães se pronunciem democraticamente sobre o seu futuro.
Esta União Europeia, no entanto, é a mesma que não teve qualquer hesitação em acolher no seu regaço, apressadamente, sem rigor nem exigências impostas a outros Estados membros, nações separatistas como a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Eslovénia, a Croácia; uma União Europeia que não se privou de, à boleia da NATO, sujar as mãos com sangue de centenas de milhares de inocentes para esfrangalhar a Jugoslávia e criar uma ninhada de Estados, alguns deles aberrações que não passam de simples protectorados sob tutela de exércitos estrangeiros, como são os casos da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo ou do Montenegro.
É verdade que estes territórios têm as suas histórias próprias, as suas culturas intrínsecas integradas no todo Europeu; sendo assim, o que dizer então da ancestral Catalunha, da sua essência nacional, da sua riqueza histórica e cultural, da coragem e da capacidade de realização do seu povo?
«Espanha tem pela frente o confronto com os efeitos da bomba de relógio montada há 40 anos por via de um processo de transição egoísta e egocentrista, falso e politicamente desonesto, procurando instaurar um franquismo "renovado" através da imposição autocrática de uma monarquia que fora rejeitada pelo povo.»
O que está em causa, portanto, não é o direito dos povos a terem os seus Estados, a poderem decidir sobre as suas dependências e independências. O que ressalta à vista, de maneira flagrante, é que as entidades com poder de decisão à escala supranacional, neste caso a União Europeia e a NATO, espezinham os princípios pelos quais dizem guiar-se e recorrem à pura e simples arbitrariedade quando lhes convém, negando hoje as certezas em nome das quais ontem até promoveram guerras.
Ora desfazem a Líbia, segmentam o Iraque, esfacelam a Síria, como desmembraram a Jugoslávia – sem curarem de proteger os seres humanos das consequências dos seus actos, nem precaverem o futuro daqueles que ainda o têm – ora recorrem a pressões, sanções e chantagens para impedir o acesso à independência de velhas e históricas nações como são a Catalunha, a Escócia ou o País Basco.
Os contornos do frente-a-frente entre Madrid e Barcelona são bem conhecidos, mas podem atingir agora proporções que ameaçam ressuscitar velhos fantasmas em Espanha, como sempre devido à intransigência e à violência do poder central.
A invocação da Constituição é, em Rajoy e na casa real, a versão moderna do argumentário unificador dos reis católicos, em fins do século XV, continuado por Franco no seu interregno de monarquia com rei entre parêntesis, e reassumido através das habilidades da transição para garantia da sobrevivência do Estado unificado, então envernizado com a democracia e autonomias que não conseguem convencer os «autonomizados».
Pelo meio ficou muito daquilo que dá razão à Catalunha e torna inquestionável a essência de tendências centrífugas de novo vivas em Espanha: continuar o processo sufragado pelos espanhóis nos anos trinta e que foi abruptamente interrompido pela sangrenta irrupção fascista.
No referendo de 1931 os espanhóis decidiram-se pela república e abriram as portas para que as nações aglutinadas sob a designação de Espanha decidissem elas mesmas sobre os rumos a tomar. Contudo, para restaurar a democracia depois da inquisição franquista, em 1976, instituições e dirigentes não eleitos impuseram-lhes a monarquia como se nada tivesse acontecido – e não se fala mais nisso.
Os franquistas que habilidosa e oportunisticamente assumiram o processo de transição em 1975, de mãos dadas com o rei, com as costas protegidas pelo intocado aparelho repressor militar franquista, e sempre com a bênção da reaccionária hierarquia católica, fizeram de conta que a vontade legitimamente manifestada pelos espanhóis antes do golpe e da guerra civil perdera validade; e proclamaram hipocritamente a restauração plena da monarquia como uma garantia de paz, estabilidade, unidade e democracia.
É contra este imobilismo anacrónico da trindade rei, pátria e igreja católica que a Catalunha se vem movimentando, tentando retomar o fio à história sem golpes nem violência, apenas através do uso do voto pelos seus cidadãos em referendo decidido pelo Parlamento Autonómico, livre e democraticamente eleito.
Madrid responde procurando eternizar os efeitos do golpe franquista, recorrendo à violência numa escalada provocatória muito bem conhecida e ainda presente na memória de tantos espanhóis, demonstrando que, ao-fim-e-ao-cabo, os interesses por detrás de Rajoy são os mesmos que o Caudillo servia. Uma agressão irresponsável, que provoca reacções do mesmo tipo onde, antes disso, havia mecanismos democráticos em funcionamento e uma sociedade interrogando-se legitimamente sobre a necessidade de mudar, ou não, de rumo.
Na paralela guerra da propaganda nota-se que muitas vezes se agita, de maneira falaciosa, o argumento segundo o qual o processo de consulta popular é um instrumento monopolizado pela direita nacionalista, interpretação objectivamente falsa porque as correntes políticas que apoiam a convocatória, ou não se lhe opõem, percorrem todo o espectro político catalão.
De qualquer modo, achar que existe um pecado original na circunstância de o governo autonómico em funções ser oriundo da direita nacionalista é o mesmo que ilegitimar a restauração da independência portuguesa porque os conjurados, interpretando, sem dúvida, a vontade do povo, eram os Bragança e outros aristocratas, provavelmente muito mais interessados em fazer luzir os seus títulos e interesses de casta do que preocupados com o sofrimento do povo sob o domínio estrangeiro.
«Impedir a realização do referendo, ou declarar a sua nulidade, nunca serão vitórias definitivas do governo de Madrid, mas apenas obstáculos transitórios e traumáticos»
Percebe-se a inquietação dos sectores centralistas espanhóis com a situação na Catalunha. Os acontecimentos actuais desenvolvem-se em território catalão, mas este não é estanque; ali bem perto, na vizinhança e sempre com mil cuidados, outra velha nação, o País Basco, está madura para dar o mesmo passo – também à luz do regresso ao caminho da história, que Guernica relembra inapelavelmente.
Perante a dramática degeneração do conflito ouvem-se apelos frequentes que esbarram em impossibilidades enquistadas: a Madrid pede-se a serenidade, a capacidade de diálogo democrático e o bom senso que Madrid não tem; a Barcelona pede-se o recuo no referendo, quando este é um percurso histórico conscientemente assumido, e com décadas de atraso, que Barcelona não quer abandonar.
Para já, a opção repressiva adoptada pelos sectores centralistas de Madrid pode suscitar um clima de violência de tal modo generalizado que será capaz de acordar velhos e assustadores fantasmas em toda a Espanha, mesmo os mais adormecidos. Impedir a realização do referendo, ou declarar a sua nulidade, nunca serão vitórias definitivas do governo de Madrid, mas apenas obstáculos transitórios e traumáticos – com repercussões no presente e no futuro – num caminho que os catalães já decidiram percorrer.
Além disso, a política autista e trauliteira de Madrid terá como consequência o reforço da mobilização da Catalunha e a intensificação dos esforços para que a questão da independência passe a dominar toda a agenda dos assuntos políticos espanhóis, situação que acabará por se virar contra o governo central e mergulhará o país numa crise de identidade que terá de ser resolvida.
Espanha tem pela frente o confronto com os efeitos da bomba de relógio montada há 40 anos por via de um processo de transição egoísta e egocentrista, falso e politicamente desonesto, procurando instaurar um franquismo «renovado» através da imposição autocrática de uma monarquia que fora rejeitada pelo povo.
Os mentores da transição consumaram a parte política do golpe de Franco em 1936 – liquidar a república – e chamaram democracia a esta manobra. Nenhum país vive em paz e para sempre sob os efeitos de uma mentira com esta envergadura. Com a agravante de a casa real ser um dispositivo luxuoso, provocatório e comprovadamente corrupto.
Pelo que, além das movimentações secessionistas que se registam em nações de Espanha, e não apenas na Catalunha, o que está globalmente em causa, por detrás do clima de degeneração político-policial entre Barcelona e Madrid, continua a ser o confisco da legitimidade aos povos de Espanha quando estes proclamaram a república.
Fizeram-no em referendo, no ano distante de 1931; percebe-se, portanto, por que o centralismo madrileno nem quer ouvir falar em consulta popular que evoque esse tempo histórico, ainda que indirectamente. Porém, fugir ao problema, tal como soltar as hordas fascistas, como fez Franco, não é solução. Ele continua a existir e a assombrar.
Nada mais natural, neste ambiente, que os fantasmas supostamente enterrados com as centenas de milhares de vítimas da guerra civil só sosseguem quando o país regressar aos caminhos históricos legitimamente definidos.
Espanha enfrenta uma hora de grandes e indispensáveis decisões, que apenas foi conseguindo adiar iludindo-se com uma estratégia que tem prazo de validade – mesmo que não inscrito em qualquer rótulo.
O poderoso e sufocante documentário inspirado no campo de extermínio de Treblinka que Sérgio Tréfaut acaba de nos oferecer, e que entra directamente no lote restrito de produções capazes de nos reconciliarem com a arte do cinema, tem como maior virtude a sua temível actualidade.
Créditos / news.liga.net
Tudo no filme atinge o espectador – a interminável viagem de comboio, os fantasmas que nele viajam, a incarnação da vida e da morte proporcionada pela figura lancinante de Isabel Ruth, as cores sem cor, as paisagens esbatidas e sem tempo olhadas por olhos que já não vêem, acompanhadas por palavras assombradas de quem sobreviveu depois de sentir-se morto – mas o grito mais alarmante que brota da tela é a actualidade do que é exposto aos nossos sentidos.
Ironicamente isso acontece através da evocação do campo de extermínio que os carrascos nazis se esforçaram por apagar até ao derradeiro vestígio, para nos convenceram de que nunca existiu. Dando-se ao trabalho de desenterrar centenas de milhares de cadáveres gaseados para os incinerar em grelhas gigantescas.
Haverá quem diga: isso foram outros tempos, já lá vão mais de setenta anos e foi obra de dementes inspirados por um louco.
Por isso o maior dos méritos do admirável trabalho de Sérgio Tréfaut é dizer-nos que não, aquilo não foi um fenómeno de época, a mente do ser vivo que foi capaz de tais degenerações anda por aí e basta-nos não levarmos a nossa vida ao compasso da informação de pechisbeque para descortinarmos as suas emanações, mesmo após cuidadosa aplicação do filtro dos paralelismos abusivos.
O documentário Treblinka é actual porque a realidade do início dos anos quarenta do século passado chega até hoje pela voz de quem sobreviveu à hecatombe. É uma actualidade factual, indesmentível, se bem que haja quem continue ocupado em garantir, até «cientificamente», que aquilo não aconteceu, foram exageros e vinganças dos vencedores.
Percebe-se, por isso, que as mentes perversas capazes de aceitar o extermínio em massa de milhões de seres humanos continuam activas, de modo algum satisfeitas com as tarefas de «limpeza» e «purificação» então executadas.
Os fenómenos expostos deste modo directo, porém, são mais identificáveis, portanto mais controláveis.
Eles são parte do perigo, ainda que não sejam a componente mais letal, sabendo-se que vivemos numa fase de perfídia, insídias e enganos. Os germes da verdadeira ameaça, temível e sempre latente, flutuam nas imagens e palavras de Treblinka e são um convite para que nos internemos mais nessa actualidade.
Aquela interminável viagem de um comboio da morte é uma metáfora da relação do ser humano com o poder, de como a fragilização dos mecanismos democráticos para controlo das actividades de governação e comando vai escancarando a porta dos desmandos.
Os nossos tempos são de democracias dia-a-dia mais frágeis, a que correspondem evidências de poderes cada vez mais absolutos e arbitrários. Ao compasso desta involução humanista vão florescendo manifestações de insensibilidade, de discricionariedade, de arrogância, enfim, de despotismo – e cada vez menos envernizado.
Há crueldade quando um presidente envia drones do seu gabinete para executar um «terrorista» a cinco mil quilómetros de distância, sabendo que a «operação» pode matar a família e dezenas de outras pessoas em redor, vítimas que passam de pessoas inocentes a «danos colaterais» num simples passe de estatística.
«Há crueldade quando um presidente envia drones do seu gabinete para executar um "terrorista" a cinco mil quilómetros de distância, sabendo que a "operação" pode matar a família e dezenas de outras pessoas em redor»
Há despotismo quando se arrasa um país, incluindo escolas e hospitais com meninas e meninos dentro, entregando-o depois a milícias selváticas, para se esquartejar um alegado ditador com o qual se mantiveram negócios e que, de um momento para o outro, é recomendável silenciar.
Há uma degeneração dramática da condição humana quando se tratam como párias, escravos, seres infra-humanos ou simples escória os milhões de vítimas humanas que pedem desesperadamente para sobreviver junto daqueles que são verdadeiramente responsáveis pelo seu martírio.
Há uma insensibilidade comprometedora quando se deixa a casta dos donos do dinheiro à solta para disporem da vida da maioria dos cidadãos, aos quais, paulatinamente, se vão retirando os direitos para se defenderem.
Existe uma arrogância despótica quando se encontra unicamente na imposição da austeridade aos mais desprotegidos a pretensa solução para as chamadas crises da sociedade, as quais, na maioria dos casos, não têm outras raízes que não sejam os obstáculos à acumulação interminável de lucros por elites desumanizadas.
E que interpretação se poderá dar ao comportamento de dirigentes e de um Estado capazes de sujeitar aos requintes de uma violência, que se dirá de uma crueldade cientificamente apurada, mais de um milhão de seres humanos submetidos ao universo concentracionário de Gaza, ou centenas de milhares de pessoas confrontadas com a impenetrabilidade de um muro que divide famílias, comunidades, recursos?
Assim se demonstrando que a actualidade de Treblinka nos deixa perante a evidência de que o Estado de Israel e os seus protectores universais não têm autoridade moral nem legitimidade humanista para invocarem e se apropriarem do Holocausto de judeus e não-judeus.
Neste magma de comportamentos enunciados não é difícil encontrar as sementes que, num caldo de cultura adequado – longe de esquecido – germinem em comportamentos susceptíveis de descambar em situações que Treblinka avisadamente recorda.
Não fiquemos, porém, pelas metáforas; as quais, mesmo sendo-o, vão aflorando em comportamentos assumidos ou insidiosos mais do que suficientes para nos deixar alerta.
«Há que registar obrigatoriamente, para memória presente e futura, que os herdeiros dos esbirros de Treblinka estão vivos, actuantes, e nas mesmas regiões.»
Há que registar obrigatoriamente, para memória presente e futura, que os herdeiros dos esbirros de Treblinka estão vivos, actuantes, e nas mesmas regiões. Bastariam as evocações dos comportamentos de dirigentes como os que desempenham actualmente funções na Polónia pré-fascista, na Hungria, na Eslováquia, na Croácia, nos Estados do Báltico que o neoliberalismo «libertou» ressuscitando forças que, não apenas saudosas de Hitler, tentam fazê-lo reviver. Mas tal não esgota a realidade.
Existe o case study da Ucrânia: nunca será excessivo recordá-lo porque continua a ser escandalosa e significativamente mistificado.
Muitos dos guardas que colaboraram com a guarnição alemã do campo de extermínio de Treblinka eram milicianos ucranianos inseridos na SS hitlerianas, como voluntários ou como membros do exército «livre» da Ucrânia. Entre eles, membros do Batalhão Galícia, que ficou para a História negra da guerra associado ao nome do seu líder e mentor, Stepan Bandera.
Pois bem, Bandera é herói nacional oficial da «nova» Ucrânia, «democratizada» com o envolvimento da União Europeia e os préstimos insubstituídeis da NATO. Ainda hoje, em tempo real, hordas nazis da nova Guarda Nacional ucraniana, corpo treinado por militares das forças armadas dos Estados Unidos, estão a participar nos exercícios da NATO no Mar Negro e que simulam «apropriação de território», quiçá uma formulação julgada menos comprometedora do que a tese hitleriana de «espaço vital».
Andriy Parubiy, comandante das milícias de assalto nazis envolvidas na chamada «revolução democrática» da Praça Maidan, um seguidor actual de Stepan Bandera que foi presidente do Conselho Nacional de Defesa e Segurança e hoje é presidente do Parlamento, depois de ter contribuído para a ilegalização de partidos como o Comunista, age como um interlocutor privilegiado nos areópagos que proclamam a democracia e os direitos humanos.
São habituais os seus briefings com os comandantes da NATO, tendo em conta os seus laços operacionais com os batalhões neonazis, que são determinantes nas actuais forças armadas ucranianas; numa visita recente a Itália, Parubiy escutou a presidente do Parlamento, Laura Boldrini, do Partido Democrático, dizer que deseja o reforço da cooperação parlamentar com a Ucrânia, «tanto no plano político como administrativo».
A actualidade de Treblinka é gritante. Ao fim e ao cabo, um «democrata» como Andriy Parubiy, chefe das SS ucranianas de hoje, um favorito da NATO e da União Europeia, presidente do Parlamento de Kiev e identificado mentor do massacre de Odessa em 2014, poderia ter sido um dos esbirros que mandava abrir as torneiras de monóxido de carbono sobre milhares e milhares e milhares de homens, mulheres e crianças cuja única culpa era existirem.
Bastava-lhe estar na força da vida em 1942 – em vez de em 2016.
José Goulão A terceira via para o abismo
Em tudo o que é comunicação social situacionista, a nível interno e internacional, as manobras conduzidas em torno da figura de Macron serviram para redesenhar «a esquerda» institucional, embora o candidato agora presidente tenha sido inicialmente definido como «centrista».
A epidemia potencialmente letal que atinge hoje os partidos socialistas e social-democratas terá começado com Anthony Blair à frente dos trabalhistas britânicos, embora a degeneração gradual viesse de trás.
No entanto, a conversão ao ultraconservadorismo de Thatcher e Reagan, a submissão às inquestionáveis ordens do mercado, as ânsias de privatização do Estado e os ataques sem piedade aos direitos sociais e laborais dos cidadãos representaram um salto qualitativo na degradação, a que se foram juntando, numa vertigem que agora se conclui ser suicida, as mentiras na cena internacional, o culto da guerra, a rapina generalizada.
Aproveitando depois o balanço e as circunstâncias propícias da História ocorridas na transição da década de oitenta para a de noventa do século passado, os agentes da paciente conspiração norte-americana em Itália infiltrados nos Partidos Socialista e Comunista aceleraram a sua missão e, nos escombros das duas entidades históricas, ergueram o Partido Democrático, à imagem e semelhança do seu homónimo dos Estados Unidos – isto é, sem funcionamento orgânico e seguindo orientação económica neoliberal – que definiram como sendo a nova «esquerda», daí em diante a única com vocação de poder.
Há pouco mais de um ano, o então presidente francês, François Hollande, eleito pelo Partido Socialista, defendeu que os novos tempos exigiam um «hara-kiri do PS», uma transformação em algo de ideologia muito mais abrangente e indefinida, que imaginou como «Partido do Progresso»; na mesma altura, um dos primeiros-ministros que nomeou durante o seu mandato, Manuel Valls, declarou a necessidade de o Partido Socialista mudar de nome.
Há poucos meses, o ministro da Economia de ambos, Emmanuel Macron, também ele uma figura do PSF, lançou o movimento En Marche que, sem militantes e estrutura mas com financiamento dos bancos e banqueiros para os quais trabalhou, e com o apoio operacional de agentes enviados pelo Partido Democrático dos Estados Unidos, o catapultou quase do zero até à Presidência da República.
Enquanto isso, o candidato oficial do PS – ou do que dele resta – ficou abaixo dos sete por cento nas eleições presidenciais, abandonado pelo aparelho do partido, pela sua Fundação Jean Jaurès e pelas figuras de proa, com destaque para Hollande e Valls, que logo se puseram en marche com Macron.
Em tudo o que é comunicação social situacionista, a nível interno e internacional, as manobras conduzidas em torno da figura de Macron serviram para redesenhar «a esquerda» institucional, embora o candidato agora presidente tenha sido inicialmente definido como «centrista». O resto é «extrema-esquerda» ou «esquerda radical», isto é, organizações «desfocadas» da realidade, «agarradas ao passado», incapazes de se adaptarem aos novos conceitos evolutivos, em suma, entidades que se atrevem a rejeitar a doutrina única e oficial, o capitalismo selvagem.
Dos casos citados a propósito do Reino Unido, Itália e França, só os trabalhistas britânicos ainda resistem à dissolução, por continuarem a recorrer, pelo menos até agora, a consultas às bases partidárias para elegerem os dirigentes e não ao artifício anti partidário das primárias, importado, claro, dos Estados Unidos da América. Porém, mesmo desacreditado perante o reconhecimento geral dos seus crimes e mentiras no drama do Iraque, Tony Blair e a sua teia de propaganda voltam a estar activos na intriga e desestabilização do Partido Trabalhista, de modo a reencaminhá-lo na senda da destruição que muitos outros estão a percorrer.
Os casos de Itália e França são exemplares. Renzi e Macron parecem saídos da mesma forma tecnocrática de políticos robotizados em práticas de direita, envolvidos na mentira, agora cada vez mais grosseira, de que eles são «a esquerda».
Outras situações do género, que traduzem a destruição de partidos socialistas, estão consumadas ou na calha. Em Espanha, a deriva do PSOE é total, acelerada depois de ter entregado o poder, de novo, aos neofranquistas de Rajoy; e, na Alemanha, o SPD está a pagar cara a submissão feita de cumplicidade ao autoritarismo de Merkel.
Na Grécia, a miniaturização do PASOK é idêntica à do PS francês, embora sem o efeito Macron; pelo menos por enquanto, embora não seja seguro que o tsiprarismo, cada vez mais fiel às ordens de Bruxelas à custa do ainda e sempre penalizado povo grego, não vá no mesmo sentido.
Na Holanda e na Bélgica, os partidos da Internacional Socialista pulverizaram-se devido ao envolvimento na gestão da crise, praticando políticas de direita – e até de extrema-direita e xenófobas, sob o interessante pretexto de travar a influência da extrema-direita. Hollande não foi, portanto, o caso único, embora tenha ido mais longe ao governar em estado de excepção durante grande parte do mandato.
No mundo nórdico, os partidos da social-democracia, outrora reis e senhores, afundam-se em situação de deriva depois de se terem rendido à prática neoliberal, por vezes seguindo os conservadores ou então tomando a iniciativa – também para «retirar espaço» à direita.
Nos países do leste europeu, a social-democracia mal viu a luz do dia depois da extinção da União Soviética. Nasceu já neoliberal e limitou-se a colaborar na afirmação do populismo e da extrema-direita como verdadeiros gestores do capitalismo selvagem.
Às práticas thatcheristas de Blair, os politólogos sempre em busca de baptismos para «novas esquerdas» chamaram «terceira via». Para onde? Para o socialismo, pois claro, de acordo com as suas doutas elucubrações em forma de mensagens propagandísticas primárias. Na verdade, mais uma via para o capitalismo puro e duro, à moda de Friedman e dos «Chicago Boys» que criaram «o milagre de Pinochet» – por fim o capitalismo isento de quaisquer inquietações sociais e com as pessoas, livre da mais ínfima das sequelas keynesianas.
Com maior ou menor convicção, os partidos socialistas e social-democratas seguiram Blair incarnando o flautista de Hamelin, institucionalizando-se como o «lado esquerdo» do sistema bipolar que governou a União Europeia como partido único, até estatelar-se estrondosamente, em 2008, nos frutos podres da subserviência ao casino financeiro – a «crise».
Se alguém tiver dúvidas, pode consultar as decisões do Parlamento Europeu tomadas ao longo de anos e anos: em matérias de cultura, questões de consciência e até direitos teóricos, é possível detectar diferenças entre os comportamentos dos membros do Partido Popular e do Grupo Socialista; mas quando se chega aos assuntos económicos, laborais, à imposição da austeridade, às medidas financeiras, de combate à crise ou de estruturação autoritária da União Europeia e da Zona Euro, aí a convergência é praticamente total entre os dois blocos.
A verdade é que a conjugação da crise com os efeitos sociais, a que se junta o problema dos refugiados resultante de guerras pelas quais a União Europeia também é responsável, desmoronou a arquitectura política de partido único com duas tendências. Na entropia resultante em que vivemos, na qual multidões de cidadãos desorientados, manipuladas pelos aprendizes de feiticeiros peritos em explorar o medo e a insegurança, são cativadas por apelos de populistas mais ou menos envernizados, por mensagens trabalhadas à maneira de anúncios de refrigerantes, ou até por fascistas retintos, as esquerdas que permanecem fiéis ao humanismo, à cidadania e às pessoas quase não conseguem fazer-se ouvir.
No meio das ruínas da arquitectura política em extinção tornou-se evidente que o papel da social-democracia oficial na gestão do neoliberalismo, mesmo temperada pela «terceira via», se tornou descartável, inútil. Cumpriu o papel, mas cabe agora à direita pura e dura, nas suas variantes que chegam até aos extremos do populismo e do fascismo, gerir o sistema neoliberal.
O arrastamento da crise, desmentindo a teoria dos ciclos altos e baixos da economia, tornou o funcionamento do sistema praticamente impossível em democracia. É preciso afastar os cidadãos do direito de decidirem, seja pela força, pelo autoritarismo em liberdade condicionada, pela intoxicação tecnocrática disfarçada de inovação política.
Por isso os Partidos Socialistas caem como pedras de dominó. A maioria dos seus dirigentes instalam-se no novo espaço. Onde já se encontra, há muito, a instituição que conduz este processo de modo cada vez mais indisfarçado: o Partido Democrático dos Estados Unidos. Daí que Hillary Clinton, senhora da guerra com as mãos sujas de sangue de milhões de mortos e feridos e do sofrimento de milhares de refugiados, seja a figura de referência da Internacional Socialista de hoje. Está encontrada mais uma «nova esquerda», agora sim fazendo inequivocamente parte da direita.
Porém, como sabemos, nem todos os dirigentes socialistas apanharam a boleia de Blair e discípulos: existem casos de resistência a alguns valores essenciais; além disso, os chefes que fogem deixam para trás multidões de cidadãos que não estão dispostos a acompanhá-los como os ratos seguiram o flautista de Hamelin – e assim volto ao velho conto de Grimm.
Por isso, a esquerda – ou as esquerdas, se preferirem – têm agora milhões de seres humanos como destinatários de mensagens que sejam capazes de mobilizar o combate contra um adversário poderosíssimo mas cada vez mais definido e identificável, por muito que use e abuse da intoxicação, do ilusionismo e da mistificação.
Para que as mensagens sejam unificadoras da mobilização e dinamizadoras dos objectivos de luta é necessário que as esquerdas decidam, de vez, deixar de se dividir e engalfinhar em torno de ilusões que a realidade está cansada de desmascarar: a burla do «mercado livre», o mito «europeísta», a ideia absurda de que a União Europeia é «regenerável», a mentira de que é possível compatibilizar a democracia e a soberania com a obediência aos ditadores servindo Bruxelas e a moeda alemã, também chamada única ou euro.
Num dia, que está próximo pela força das circunstâncias, a Internacional Socialista mudará também ela de nome, sem precisar de fazer hara-kiri. Grande parte dos seus membros já o fizeram. Se preferir continuar a chamar-se assim, ficará como um imprestável paquiderme em busca do seu cemitério.
Créditos / Agência Lusa
E a verdade chegou pelo rosto e pela voz que não encobrem as normas escabrosas regedoras do mundo, aplicadas por estruturas dominantes sem princípios nem valores, mesquinhas, desumanas, xenófobas, hipócritas. No seu discurso boçal, mas franco, Donald Trump disse que o rei ia nu, isto é, proclamou o que toda a gente sabia mas nenhum dos seus parceiros ousava admitir: não há lugar para a solução de dois Estados na Palestina. Ou seja, nega-se ao povo palestiniano o direito ao seu Estado. É uma cruel ignomínia; mas também é, por ora, a realidade dos factos.
Milhões de dedos escandalizados espetaram-se na figura odienta do novo presidente dos Estados Unidos da América, autor de uma blasfémia contra o direito internacional e, sobretudo, inquietador das boas consciências dos chefes da ONU, da União Europeia, de todos os «quartetos para a paz» feitos e desfeitos, de quantos se contentam em garantir a criação de dois Estados na Palestina enquanto o único existente, protegido a qualquer preço pelos poderes dominantes – vai engolindo palmo-a-palmo, traulitada-a-traulitada, todo o pedaço de terra onde deveria nascer o outro.
Avaliando, sem rodeios nem sob o efeito de melífluas declarações diplomáticas, a situação no Médio Oriente, apenas pode concluir-se que a solução de dois Estados na Palestina fracassou há muito. Terá morrido até à nascença, há 70 anos, quando as Nações Unidas, na vetusta e incumprida resolução 181, de 27 de Novembro de 1947, aprovaram o plano de partilha da Palestina, então sob mandato britânico.
Talvez seja este, afinal, o histórico, magno e escandaloso alcance da polémica proclamação de Trump. Apenas recordou e reafirmou as exigências impostas, em seu tempo, pelos Rockfellers, Rostchilds e quejandos, permanentemente lembradas ao complexo militar, industrial e tecnológico dos Estados Unidos pelos todo-poderosos lobbies judaicos.
O óbito da solução de dois Estados não foi declarado só agora. A resolução da ONU estabelecendo a partilha da Palestina foi logo sabotada pelo recém-nascido Estado de Israel, quando iniciou a limpeza étnica das populações árabes, a rapina dos seus bens, a destruição dos seus lares, vilas, aldeias e propriedades; prosseguiu com as deportações e anexações contínuas, as guerras de 1968, 1973, 1982, 1986, 1996...
A possibilidade de existência de um Estado Palestiniano ressurgiu vagamente com os acordos Rabin-Arafat de 1993, logo desmantelada pelo assassínio do então primeiro-ministro israelita e pela sequente sabotagem das negociações de paz por Peres, Sharon, Netanyahu, os beneficiários políticos da liquidação de Isaac Rabin por um criminoso saído das suas fileiras.
«A arrastada coexistência de falsas negociações com a colonização israelita da Cisjordânia, sempre em crescendo, e o sangrento desmantelamento de Gaza, inviabiliza, de facto, a existência de um Estado independente que tenha condições para sobreviver.»
A arrastada coexistência de falsas negociações com a colonização israelita da Cisjordânia, sempre em crescendo, e o sangrento desmantelamento de Gaza, inviabiliza, de facto, a existência de um Estado independente que tenha condições para sobreviver. Resta o gueto dito «autónomo» de Ramallah, preso nas suas próprias malhas, submetido ao ocupante sionista, mergulhado nos vícios da pequena e baixa política, joguete de interesses de uma aliança espúria entre o Estado segregacionista de Israel, agora plenamente racista e fascizante, e as petroditaduras do Golfo, com a Arábia Saudita à cabeça.
A tudo isto o mundo assistiu nos últimos 25 anos, repetindo a ladainha dos dois Estados como um mantra – enquanto Israel prosseguia tranquilamente a colonização/ocupação, acusando os palestinianos de se recusarem a negociar por contestarem as ininterruptas invasões dos destacamentos de assalto colonizadores.
A opinião pública deixou-se embalar nesta espécie de determinismo dos dois Estados, crente de que um dia qualquer veria nascer um Estado Palestiniano, espécie de sucedâneo dos milagres criadores de Bósnias, Kosovos, Sudões do Sul, Somalilândias; até que Trump estilhaçou o limbo com a crueza da verdade repelente: não há – nem nunca houve – ideia de cumprir a promessa da existência de dois Estados na Palestina.
A União Europeia, a ONU, as famílias Bush e Clinton, o próprio Obama sobem então ao palco exibindo consciências virginais, clamando contra o maléfico atrevimento do novo presidente norte-americano. Contudo, eles sabem como ninguém do que fala Trump.
Com eles esfumou-se a possível criação de um Estado palestiniano, porque cobriram, toleraram e encorajaram sempre a estratégia dilatória e as práticas criminosas de Israel. E a Obama, que se ufana de ter permitido a primeira resolução do Conselho de Segurança contra a colonização, há que recordar que o fez com oito anos de atraso. O ex-presidente sabia perfeitamente que qualquer dos seus sucessores – fosse Hillary Clinton ou Trump – inverteria tal posição, assumida já em fase de transição de mandato.
A proclamação sionista de Donald Trump tem ainda um outro significado, que não pode ficar soterrado nos escombros dos inflamados, hipócritas e inócuos protestos da chamada «comunidade internacional». O seu tom e conteúdo provam que o actual presidente norte-americano não surge do exterior do establishment e à margem do complexo militar, industrial e tecnológico que domina o sistema de poder federal e imperial.
Trump é o homem escolhido para o actual momento de crise e contradições da desordem capitalista neoliberal. As proclamações trovejantes por ele proferidas, em sintonia com as vontades da teia financeira, económica e política dos lobbies judaicos, confirmam-no – caso houvesse dúvidas.
Trump é a verdadeira imagem da América e do capitalismo de hoje.
José Goulão Fidel
A opinião pública portuguesa, europeia e, a bem dizer, da maior parte do mundo, sem esquecer as Américas, continua a ser fuzilada pela metralha de insultos, mentiras e dislates mais ou menos idiotas – o que não significa pouco eficazes – sobre a figura historicamente imortal e humanamente inesquecível do Comandante Fidel Castro Ruz.
Agência Lusa
abrilabril, 1 de Dezembro de 2016
Dir-se-á que o seu apagamento físico soltou a bílis há muito entranhada para esta ocasião, tal como acendeu os rastilhos dos foguetes bafientos de alguns gusanos que, em Miami e noutros lugares, continuam a sonhar com a Cuba bordel, a Cuba das mafias, a Cuba do contrabando e das negociatas clandestinas, a Cuba de todos os vícios dos ricaços norte-americanos, a Cuba colónia, quintalinho e caixote do lixo.
Os pobres de espírito, que não de intenções revanchistas e de má-fé, têm dificuldade em entender, ou fingem não entender, que não lhes basta fazer a festa, deitar os foguetes, apanhar as canas e disparar rajadas de mensagens construídas em laboriosas centrais de propaganda para liquidar a Cuba independente, tornada possível e consolidada por Fidel, seus companheiros e, sobretudo, pela vontade e coragem dos cubanos – do povo cubano.
Será que tais mentes enfezadas alguma vez pararam para pensar como é possível que a bem sucedida resistência de um país à ocupação estrangeira e criminosa de parte do território – como Guantánamo –, a um bloqueio asfixiante que ferra há quase sessenta anos, a sucessivas tentativas e ameaças constantes de invasões, golpes, conspirações e incentivos à expatriação, seja obra de um dirigente, de um aparelho repressivo de poder, de um partido?
Já se deram conta de que Cuba tem resistido a uma ofensiva esmagadora dos mais poderosos e concentrados meios de intoxicação ideológica atacando, sem alguma oposição, a partir de um território situado a menos de cem quilómetros, da outra margem do estreito?
Já imaginaram a coragem, o sentido de independência, a ousadia de um povo para resistir, como aconteceu durante os anos noventa, ao regresso à penúria de uma economia de sobrevivência – ao pé da qual a austeridade que nos foi imposta é uma penalidade benigna?
É verdade que ter ideias, formar opiniões, pensar fora da formatação oficial é, hoje em dia, nas nossas sociedades, um anacronismo, um atrevimento, quiçá a antecâmara do mais ameaçador terrorismo. O que importa é consumir doutores, comentadores, politólogos, desideólogos, mentirólogos, alter-egos de fulgêncios batistas, acenar-lhes ordeiramente e ficar com a informação necessária e suficiente para repetir no café, no metro, no emprego, se possível até no Parlamento.
Nos dias em que regimes políticos que se supunham sólidos ruíram fragorosamente com o muro de Berlim, sem dúvida porque, a dada altura dos seus caminhos históricos, perderam ou cortaram os vínculos com a sua essência, a ligação ao povo e os mecanismos para que este decidisse da sua vida, a Cuba independente e com os olhos no socialismo conseguiu sobreviver.
E sobreviveu paupérrima, isolada, amesquinhada, quase sem amigos, ridicularizada por aqueles que, de barriga cheia, anafados de «democracia» e «direitos humanos», profetizavam diariamente «o fim do regime» para o dia seguinte. Bastaria isso para que qualquer ser pensante se desse ao trabalho de se interrogar sobre as razões pelas quais a Cuba de referências socialistas não seguiu o destino – que hoje se percebe catastrófico – de outras nações «irmãs».
Falta de democracia? Sim, dessa coisa que obriga governos eleitos a terem de sujeitar os orçamentos de Estado aprovados por Parlamentos eleitos aos pareceres de grupos de sujeitos não eleitos, marionetas manipuladas por interesses tendencialmente mafiosos; essa coisa que obrigou o povo do mais poderoso país do mundo, o país que se permite tentar matar os vizinhos à fome, a escolher para presidente entre uma fascista com provas dadas e um fascista com ameaças por cumprir.
Violação dos direitos Humanos? Sim, dessa coisa que a NATO leva na boca dos canhões, nos bojos das aeronaves ao Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Palestina, Líbano, Iémen, Mali, República Centro Africana, Nigéria e lá onde lhe aprouver.
«Cuba livre nascida do idealismo e da coragem dos "barbudos" de Sierra Maestra está viva, ainda que chorando El Comandante, um dos seus, não um iluminado que tomou nas próprias mãos o destino de um povo.»
Enquanto isto, a célebre oposição cubana, endeusada aqui e além, e também no Parlamento Europeu, continua a ter como ícone esse sénior e incontornável terrorista e criminoso chamado Posada Carriles. Um verdadeiro democrata, como está provado.
Na hora em que o Comandante Fidel Castro Ruz nos deixa, e principalmente se transforma numa imensa saudade para o povo cubano e os seus amigos, os ansiosos de revanchismo não se deram ao recato de, ao menos, respeitar esse direito humano de sempre, o direito ao luto.
Também não precisam de verter lágrimas de crocodilo porque, ao contrário do que profetizam, a Cuba independente e o povo cubano não ficam órfãos. Têm o seu sistema de vida. Estão habituados a provações e a que agora lhes aconteceu estava prevista no eterno ciclo da vida e da morte, não é uma traição, nem golpe, nem conspiração.
Cuba livre nascida do idealismo e da coragem dos «barbudos» de Sierra Maestra está viva, ainda que chorando El Comandante, um dos seus, não um iluminado que tomou nas próprias mãos o destino de um povo.
Os dias da despedida são já de um futuro no qual a Cuba livre e independente sabe que continuará a sua gesta de sempre, num ambiente infestado de fulgêncios batistas, contra as ganâncias das Monsanto e United Fruit deste mundo, das petrolíferas do costume e outras, das mil e uma mafias do turismo, do armamento, da droga, da química e farmacêutica, do jogo, da prostituição, do agroalimentar; ganância pelos bens e riquezas que são de todo o povo cubano.
A gesta de sempre contra o bloqueio, contra a ocupação de Guantánamo e contra os criminosos que mantêm estas situações, incluindo aqueles que usam e abusam do ilusionismo mediático prometendo revogá-las para melhor as sustentar.
Nestes dias, a evocação mais sincera e emocionada que é possível fazer da memória indestrutível do Comandante Fidel Castro Ruz é a de que a Cuba livre e independente está viva e pode contar com a solidariedade combativa de milhões e milhões de cubanos adoptivos em todo o mundo.
José Goulão A ordem natural das coisas
O sistema de poder mais fiscalizado, filtrado e policiado do mundo jamais se enganaria na escolha daquele que interpreta os seus interesses e exigências num determinado momento e nas circunstâncias existentes.
Não confundir sistema de poder com sistema político. Os dois universos estão normalmente em consonância, porque disso cuida a estabilidade fundamental para os magnos interesses que enformam a estrutura que comanda. Porém, quando esta não se sente confortável nem segura com os caminhos da política interna, e externa, é óbvio que se vê obrigada a recorrer ao exterior da estrutura tradicional, abrindo caminho a um outsider, tornado insider enquanto o diabo esfrega um olho.
É o caso da entronização de Donald Trump em detrimento da senhora Clinton, que tantas etapas queimou para corresponder ao que o sistema de poder actualmente exige de um presidente que se esturricou a si mesma, numa sucessão de malfeitorias com as quais o establishment tem muitas dificuldades em lidar perante a opinião pública, por muito condicionada esta seja.
As circunstâncias em que decorreu o presente episódio eleitoral nos Estados Unidos exibem o nível mais reles da política. Nada do que aconteceu tem a ver com democracia, com uma ideologia que não seja a não-ideologia, com debate de ideias ou esclarecimento da situação social.
É certo que nada de substancial poderia ser discutido, porque o sistema chegou a uma fase em que a sua própria sobrevivência, tal como ele se conhece ou funciona, já não é compatível com debate, ideias e transparência, impõe subserviência e conformismo como nunca exigiu – isto é, um poder forte e autoritário comandando um exército de desiludidos receptivos a radicais promessas de mudança e melhoria de vida, ainda que pressintam falsas.
«Nada do que aconteceu tem a ver com democracia, com uma ideologia que não seja a não-ideologia, com debate de ideias ou esclarecimento da situação social»
Não é novidade que, desde meados da década de setenta do século passado, a ortodoxia neoliberal tomou conta das rédeas do capitalismo, promovendo o mercado a entidade suprema da sociedade, malignizando o Estado, exorcizando qualquer sistema de apoio e solidariedade social, libertando o trabalho de quaisquer amarras, direitos e vínculos, uma solução que temos ouvido definida na forma do slogan «liberalização do mercado laboral».
O capitalismo, para seu próprio desenvolvimento e progresso na fase de boom tecnológico que exibe o esplendor do mercado nos salões do casino financeiro em que rolam milhões de milhões virtuais, e vai tornando a economia subsidiária da especulação, precisou de cortar quaisquer amarras com o seu passado keynesianista.
Isto é, deixaram de existir condições lucrativas satisfatórias para se falsificar um qualquer «rosto humano» do capitalismo. O capitalismo necessita de ser absolutamente livre, de dispor de acesso sem peias aos recursos humanos, às matérias-primas, ao território global – isto é, exige ausência de restrições políticas, sociais, humanistas e estratégicas; e não tolera obstáculos à conquista de espaço vital, também por isso se fala tanto em globalização.
Como, ainda assim, a crise continua a miná-lo devido a resistências várias, sejam de povos ou nações, e também devido às contradições própria das rivalidades das ganâncias à solta, há muito que o capitalismo se incompatibilizou com o que resta de democracia.
O que é válido para o templo mais sagrado do capitalismo, os Estados Unidos da América, é-o igualmente para o resto do mundo, principalmente para a moribunda União Europeia, e disso falam bem as nossas experiências pessoais e institucionais.
Afinal, não é uma humilhação dos direitos dos cidadãos, e da sua liberdade de voto, o facto de um governo português ter de submeter o orçamento aprovado pelos eleitos dos portugueses ao exame com poder deliberativo de fiscais não eleitos, algures em Bruxelas, Berlim e sabe-se lá mais onde? Conseguem descortinar a democracia no meio da teia de artimanhas de bastidores onde até são possíveis acordos secretos de burla como entre o senhor Hollande e a Comissão Europeia?
Trump surge na ordem natural das coisas estabelecida pela cavalgada neoliberal para o «fim da História», porém tornada escorregadia por uma crise até agora indomável.
«Obama e Clinton, "príncipes democratas" de pura cepa, promoveram mil e uma acções de aniquilação da democracia e de expansão do espaço vital, na esteira do republicano fascistóide George W. Bush»
Na sua não-ideologia ideológica, há muito que o sistema global capitalista identificou o funcionamento dos mecanismos democráticos como o principal problema a remover. Por isso, o baixo espectáculo político dado pelas eleições norte-americanas já nem escondia a realidade da não-escolha.
Obama e Clinton, «príncipes democratas» de pura cepa, promoveram mil e uma acções de aniquilação da democracia e de expansão do espaço vital, na esteira do republicano fascistóide George W. Bush: o golpe fascista na Ucrânia; o incentivo à ressurreição dos fascismos e militarismos, arcaicos ou renovados, no Leste da Europa; o crescimento e globalização da NATO e o seu funcionamento agressivo e arbitrário, recorrendo, quando considera necessário, a grupos terroristas islâmicos como divisões operacionais; a aniquilação da União Europeia – sempre «bom aluno» de Washington – através do TTIP, do enfeudamento a rígidos e expansionistas compromissos atlantistas e da tragédia dos refugiados; o incentivo à guerra, ao militarismo e a situações de caos regional ao serviço do crescimento económico através da indústria militar e do acesso, sem restrições, às mais importantes fontes de matérias-primas e de recursos energéticos; o estado de excepção em França e a ascensão de movimentos fascistas, populistas, xenófobos e racistas através da Europa, decorrente da convergência de efeitos das guerras de expansão, do terrorismo e dos problemas criados pela vaga de refugiados; a tomada e manipulação da ONU por Washington. Tudo isto marca os tempos modernos, com as assinaturas indeléveis de Hillary Clinton e Barack Obama.
Apesar das provas dadas pela senhora Clinton, o sistema de poder escolheu Trump. Os serviços prestados pela candidata deixaram rastos incómodos, mesmo numa opinião pública ferreamente manipulada.
Donald Trump surge de novo e de fora, mas do interior do sistema de capitalista, do capitalismo «de sucesso». Diz o que a doentia sociedade da «América profunda» deseja ouvir, trabalhada pelo fascismo das seitas protestantes, pela estupidificação burilada sistematicamente pela comunicação social e pela degenerada indústria cinematográfica, educada pela violência do entretenimento e dos lobbies securitários e das armas, assustada pelos pregadores obscurantistas, aterrada pela insegurança social, física e pela falta de perspectivas, minada pelas acicatadas e artificiais contradições entre grupos sociais e étnicos mergulhados nas desigualdades.
Assim se construiu o discurso «novo» de Trump sobre a cama, há muito preparada, do descrédito das ideias políticas (a ideologia) e do nível zero da democracia. A resultante do discurso do sistema de poder capitalista, o discurso vencedor de Trump, é agora uma mensagem fascista.
Iremos confrontar-nos, a seguir, com o conteúdo prático que assumirá tal programa ainda disperso, anárquico e oportunista, elaborado para vencer num dado momento e circunstâncias.
Embora suspeite de que, necessitando de derrubar barreiras nesta ânsia de atingir o estado supremo neoliberal, em que também joga a própria sobrevivência, o capitalismo descartou de vez qualquer réstia de democracia. É a ordem natural das coisas.
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
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Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...