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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Al Berto Há-de flutuar uma cidade
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade.
Al Berto Vem comigo
(Adão Cruz)
Vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas
iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence
vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel
vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu
(in O Medo, Assírio & Alvim)
Al Berto Mudança de estação
(Adão Cruz)
para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe o brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhas rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação
(in O Medo)
Al Berto Dizem que a paixão o conheceu
(Mário Botas)
dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
(in Medo, Assírio & Alvim)
Al Berto Mar
(Adão Cruz)
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no Zanzi-Bar, julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar — fechado, calmo — propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: onde te vi despir regresso agora /para adormecer ou chorar... e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar.
Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar -esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
(in O Anjo Mudo, Assírio & Alvim)
Al Berto Meditação com natureza-morta
(Van Gohg)
a toalha de mesa surge no primeiro plano
e a pálpebra semi-aberta de um fruto perde-se
no amargo traço de uma boca que assinala
o tempo
organizo
os frutos em sequências de cor
primeiro os azuis-cobalto e os negros depois
os amarelos das ardentes fúchsias evocam
misteriosas presenças
pouso os pincéis perto da janela
avisto uma folha de revista à chuva e
no vento de três pêssegos movem-se
ao fundo
as mãos líquidas revelando quem medita
sentado sob o melancólico peso da luz
que constrói e define a casa
(in O Medo, Assírio & Alvim)
Al Berto Diários
(autor desconhecido)
Sines. 25 Julho 94
(Jantar no Estrela do Norte — com a Manuela e Hermínio, c/o Rodrigo Leão e a Margarida.) Açorda de Abrótea// Feijoada de búzio
O Leonard Cohen. O fim do dia. A luz azulada. O mar muito quieto. Os veleiros a entrarem na baía. O mundo, lá fora. A melancolia provocada pelo que se avista pela janela aberta e parece viço e morto em simultâneo. O Leonard C. de que tanto gostamos.
Quem me dera estares aqui. Bebermos vinho branco fresco. Olharmo-nos em silêncio. Jantarmos no Atlântico-Mar, sozinhos na sala do 1° andar — como num livro da Duras.
Até que a noite perpetue o jantar. E na baía os barcos acendam as luzes e partam — "Sinais de fogo" sobre as águas escuras... E nós meio-bêbados a perdermos o olhar por cima mar.
Tu a insistires que és o meu "marinheiro" de Gibraltar e eu, sem dizer palavra, a dar-te a mão, sem te olhar, com o coração aos saltos. Tão pouco fizemos pela nossa paixão. Tão pouca atenção lhe demos, pensando que era eterna.
E agora está em estilhaços. Irremediavelmente perdida, quem sabe se para sempre. Tanta coisa bela que estragámos — tu, por egoísmo (?) - não sei - e eu, por não ter tido tempo de aprender como amar-te mais ainda.
(in Diários, Assírio & Alvim)
Al Berto morreu no dia 13 de Junho de 1997
Al Berto Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
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Al Berto O faroleiro do Sardão
Não confio nos homens, ainda menos em Deus.
Talvez seja por isso que nunca durmo. Mantenho-me acordado durante a noite ou caio dentro duma espécie de limbo sonolento. Ouço e vejo tudo o que se atravessa no feixe luminoso do farol.
Repito: não confio nos homens. Confio na sabedoria remota das minhas mãos. E, mesmo que cegasse, elas continuariam sempre a pôr em movimento a engrenagem das luzes.
Metade da minha vida foi passada aqui, entre a noite e os espelhos reflectores. Já não me lembro em que idade comecei. O oceano é tão escuro quanto a minha infância.
Diariamente subo ao cimo do farol que se ergue no alto das falésias, ao anoitecer. Isolo-me do mundo; e, neste isolamento, amaldiçoo por vezes a vida — enquanto a luz se acende, adquire intensidade, e varre a fúria do oceano.
De vez em quando, vêm pássaros embater contra as vidraças a ferver do farol. Cegam com a luz, morrem queimados. E os navios que continuam as suas rotas, avisto-os, e parecem um brinquedo a flutuar. Somem-se na escura tormenta.
Em toda a costa sou o único homem acordado, sem amigos e sem família. Zelo pela vida daqueles que navegam noite dentro. O jacto luminoso do farol é o sinal de quem os acompanha e pensa neles.
Consigo ver no escuro, até onde nenhum homem consegue ver; mas não acredito em Deus.
Enquanto não amanhece escrevo o relatório diário, e nele anoto, também, o que a imaginação me revelou. Um dia, ninguém saberá onde começa e acaba a verdade. Entre a hora de acender e apagar o farol, anotei: passagem de golfinhos e de sereias, de navios fantasmas, de embarcações que mal tocam nas vagas, astros que pousaram sobre o dorso de uma baleia, alcatrazes que se incendeiam, de repente, em pleno voo.
Sou muito velho, quase tanto como o farol. Vi muitas coisas, posso contar todas as histórias que me vierem à cabeça.
E não abandonarei, nunca, o meu posto. Continuarei aqui, rodeado pela escuridão do mundo, atento ao que nasce, inesperadamente, debaixo da luz. Repito os gestos dos meus antepassados, e é nessa perenidade de gestos repetidos, exactos, que se prolonga a solidez do farol.
Quando a tempestade o sacode desde os alicerces, e o mar ressoa escadas acima como se o fosse engolir de um momento para o outro - fico tranquilo; porque sei que depois da minha morte, à hora certa de o acender, dentro de mil anos, tudo será executado minuciosamente, como acabo de o fazer.
(in Al Berto, O Anjo Mudo, Assírio & Alvim)
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Texto e foto deliciosos, parabéns!
Palavras como dinamite.E passados 50 anos sobre os...
Lindo!
Um testemunho enternecedor.Eva
Grande texto que nos faz refletir... Muito!