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Jardim das Delícias


Sábado, 28.04.18

A indecente manipulação das imagens - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  A indecente manipulação das imagens

 

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Diário de Notícias, 27 de Abril de 2018

   É como as anedotas. Vocês sabem, é possível brincarmos com tudo, mas não com todos - até se pode contar piadas sobre campos de concentração... mas não se há um nazi por perto. Emmanuel Macron deve ter pensado que podia ter todo o tipo de gestos. Mas aprendeu nesta semana que deveria abster-se de ter gestos íntimos com Donald Trump.

Macron é capaz de posar tão bem de firme como de encantador. O presidente francês tem a boa figura e as convicções que o fazem ficar bem, com qualquer das variáveis, uma ou outra. Dizem alguns analistas que uma das razões de ter chegado ao Eliseu foi por, entre as duas voltas das presidenciais, ter ousado defrontar grevistas coléricos. Cercado entre operários da Whirlpool que protestavam por a sua empresa ser deslocalizada para a Polónia, Macron disse a um: "Não me trate por tu, porque não lhe faço o mesmo." Até lá era o menino dos gabinetes alcatifados do banco Rothschild, mas com essa imagem, essa voz e esse tom à porta da fábrica ocupada e transmitidos pela televisão, sob o escrutínio dos franceses que ainda andavam a tentar saber quem era aquele jovem ovni da política, ele foi catalogado como duro. Quanto a ser gentil, sempre bastou o seu ar de galã frágil - como um herói de filme de François Truffaut, um Antoine Doinel reconvertido na política.

No seu primeiro encontro, em maio do ano passado, com o também recente presidente americano, Macron ganhou por KO. Agarrou no ponto fraco de Trump - as mãozinhas pequenas que até tinham sido assunto da campanha americana. Na Casa Branca, sentados em cadeirões, em frente às câmaras, quando o americano lhe estendeu o bacalhau fugidio do costume, o francês firmou a mão e levou o outro a um esgar de desconforto que não escapou ao mundo. Foi só uma derrota que o presidente do país da imagem pública e dos dentes perfeitos não esqueceu. Até poder resgatar-se, nesta semana.

Aconteceu na visita de Emmanuel Macron à América. Ele trazia um discurso fisgado e esse era - já lá vamos aos pormenores - o de cimentar a sua liderança na Europa, agora que a sua parceira e aliada já não é a poderosa que Angela Merkel foi. Recebeu-o Donald Trump, homem de televisão e americano dos efeitos especiais. Uma coisa foi o francês tê-lo apanhado desprevenido, há um ano, outra seria deixar que o desconchavo se repetisse. Quem teve quem lhe organizasse as eleições, investindo cirurgicamente nos condados onde os dados fornecidos pelo Facebook diziam que se devia inundar com anúncios eleitorais eficazes, pôde apostar desta vez num personal trainer que lhe indicou onde amesquinhar o francezinho. Se a discursar bem Trump ainda não aprendeu, a gestualizar ele mostrou ser bom e rápido aluno.

Então, as conversações de 23 e 25 de abril, durante a visita de Macron a Washington, saldaram-se por um Waterloo gestual. O pequeno Napoleão foi derrotado por um improvável duque de Wellington de melena alourada. Trump caprichou e insistiu no capricho. E Macron convencido de que tinha arrumado o outro de vez com o aperto firme de mão, no ano passado, aprendeu que há gestos que não se podem ter com Trump. Sobretudo quando este já não está desprevenido.

Seguem-se três cenas, todas elas daquelas que levam direito a Santa Helena. Na Casa Branca, com as mãos descaídas e cruzadas frente ao casaco, com o sorriso que já não podia ser de vencedor, Macron deixou que Trump lhe limpasse uma hipotética caspa da lapela e, pior, deixou que o sorriso permanecesse beato. Entre eles, um quadro de George Washington, o mesmo do pai fundador que aparece nas notas de dólar, prevenia. Reparem, Washington nunca mostra os dentes porque os tinha em madeira, os odontologistas ainda não tinham sido inventados no seu tempo, mas o ar austero que aparece naquela foto também era para avisar o amigo francês, do grupo dos presidentes decentes, contra o seu sucessor. Este, grosseiro, sabendo o outro fragilizado, lançou aos jornalistas: "Ele deve ficar perfeito", e sacudiu um pouco mais a lapela do convidado...

 

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Com ambos de pé, Trump deixa o seu microfone, aproxima-se de Macron, cruza com ele as mãos direitas, inclina-se e encosta a sua à cabeça dele. Fotos, filmes. A diferença de alturas sublinha o poder do americano. Finalmente, a imagem mais cruel, à saída da Casa Branca, Trump, apesar de dono da casa, está um bom passo à frente do hóspede. Deixa a mão esquerda para trás, que Macron imprudentemente agarra. E vai arrastado. Em filme, parece a debandada final dos franceses em Waterloo, sem um Cambronne que ponha cobro ao insulto; em foto, é um garoto que o pai leva à escola... As imagens são todas desastrosas para o presidente francês, sobretudo porque a contracorrente do que antes ele demonstrara. O ar glorioso de Trump não escondia, nem fingia que tentava esconder, que a vingança estava consumada.

No dia seguinte, Emmanuel Macron foi ao Congresso. Falar. A imagem, essa, tinha sido lamentavelmente destroçada antes. Sem ela, pior, com ela nas ruas da amargura, restavam-lhe as palavras. Num editorial, o jornal Le Monde fez o rol do que o presidente francês defendeu, em contraponto da nova política americana. A alternativa dos valores europeus, ao mundo fraturado que Trump quer; o comércio aberto contra o protecionismo; os valores progressistas contra o fascínio do poder forte; os acordos de Paris sobre o clima contra a recusa deles. A voz de Macron foi clara e forte. Mas já uma e outra e outra imagem de Macron faziam este valer menos do que mil palavras.

 

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por Augusta Clara às 20:01

Quinta-feira, 28.01.16

E sexo de cavalo à mostra, ofende? - Ferreira Fernandes

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Diário de Notícias, 27 de Janeiro de 2016

 

   Um tipo com uma rodilha branca na cabeça, e em cima dela nem uma canastra de fanecas, um quase ayatollah mas um total presidente iraniano - enfim, Hassan Rohani - podia talvez ofender-se com uma estátua romana feita há dois mil anos, que era uma cópia duma estátua grega feita há 2300 anos... A Vénus Capitolina sai do banho, é certo, mas tenta esconder, embora em vão, os seios com a mão direita e a região genital com a mão esquerda. Dir-me-ão, a senhora é tão bela, antiga e de mármore, que não podia ofender ninguém. Mas, lá está, como se pode garantir o que vai na cabeça de alguém que leva na cabeça uma rodilha sem canastra? Fica, pelo menos, um talvez... E a dúvida transforma-se em certeza quando o da rodilha leva um cheque de 17 mil milhões para negócios vários: tape-se a estátua! Calma, não foi tão simbólico assim, não foi com uma burca, foi com uma caixa do IKEA. Quatro tábuas à volta, um tampo e dois mil anos de história apagados. Uf!, Roma ainda não é o Estado Islâmico, não dinamita, só esconde. E não foi por extremismo religioso, mas só por miserabilismo moral. Uma pequena caixa para a Vénus Capitolina, um grande salto à retaguarda para a Humanidade. Ora, nisto de recuar, o problema é o gosto que se entranha. Matteo Renzi, desde ontem o pobre diabo que governa a Itália, levou Roahni para uma sala onde havia a estátua equestre de Marco Aurélio. Olhem o terror nos olhos de Renzi: e pila de cavalo à mostra, ofende?

 

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por Augusta Clara às 14:00

Sábado, 26.12.15

Tenham aneurismas à terça-feira - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  Tenham aneurismas à terça-feira

 

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   Diário de Notícias, 24 de Dezembro de 2015

   Temos interesse em ver o caso do jovem deixado morrer no Hospital de São José como isso mesmo, um caso. Assunto público, como a saúde. Na carta da namorada duas frases contam a história. Ao ir de ambulância, ela disse-lhe: "Eles vão cuidar de ti." Leia-se, para tirarmos das palavras a carga sentimental: o Estado, nas obrigações que lhe cabem de saúde dos cidadãos, vai cumprir o que deve. Na segunda frase, ao chegar ao hospital, a namorada ouviu: "Infelizmente calhou numa sexta-feira." Leia-se: as obrigações do Estado, neste caso, interrompem-se ao fim de semana. Enfim, tenham aneurismas às terças ou quintas. Ao fim das duas frases, depois da esperança ("vão cuidar") e da resignação ("calhou"), matou-se um homem. Os cortes foram longe de mais nos hospitais, diz-se agora. E também se diz que, apesar dos cortes cegos, havia mecanismos que, no caso de David Duarte, não foram seguidos. Os entendidos vão (vão?) tirar conclusões e os responsáveis decidiram que haverá, já, equipas de neurocirurgia nos hospitais adequados, aos fins de semana. Nós, os que sofremos de não saber o que é organizar a saúde pública (e acreditem, somos muitos, apesar do que vão ler nos jornais por estes dias), nós, os leigos, deveríamos ficar pelo essencial. E o essencial é: aquela frase - qual é a parte de "não há dinheiro" que não entendeu? -, tão batida a partir de 2011, era criminosa. Cheia de bom senso, mas prenhe de crimes. Este foi mais um.

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por Augusta Clara às 15:00

Sábado, 05.09.15

Condição humana - Viriato Soromenho Marques

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Viriato Soromenho Marques  Condição humana

 

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Diário de Notícias, 4 de Setembro de 2015

   Portugal conhece bem o problema dos refugiados. O fim do império foi acompanhado pela chegada de centenas de milhares de "retornados", que na verdade eram refugiados nacionais fugindo para salvar a vida, como é o caso de todos os refugiados. Em 1974 e 1975, o Império caiu, mas não o Estado. Mesmo os portugueses nascidos em África regressaram a uma casa que era sua, com leis e políticas de acolhimento. Mas Portugal conheceu também os refugiados que perderam tudo. A filósofa judia alemã Hannah Arendt e o seu marido residiram na Rua da Sociedade Farmacêutica, n.º 6, em Lisboa, entre janeiro e maio de 1941, à espera do navio para Nova Iorque. Ela pertencia à categoria de refugiados sem Estado e sem pátria. Vítimas do Leviatã que os deveria proteger. Em 1943, já em solo americano, ela escreveu: "Perdemos o nosso lar, ou seja a familiaridade da nossa vida quotidiana. Perdemos a nossa profissão, ou seja a segurança de termos alguma utilidade neste mundo. Perdemos a nossa língua materna, ou seja as nossas reações naturais, a simplicidade dos gestos e a expressão espontânea dos nossos sentimentos. Deixámos os nossos pais nos ghettos da Polónia e os nossos melhores amigos foram assassinados em campos de concentração, o que significa que as nossas vidas privadas foram destruídas." As palavras de Arendt poderiam ser repetidas por muitos daqueles que fogem hoje das garras do Estado Islâmico, e das ruínas de sociedades destruídas. Politicamente, a Europa ainda não percebeu o problema. Mas os Europeus, como indivíduos, parece que sim. Quando as famílias islandesas se propõem receber 50 000 refugiados (o que corresponde a um sexto da sua população!), isso significa que a ética essencial não foi esquecida: quando o "deus mortal" cai, as pessoas só se têm uma às outras.

 

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por Augusta Clara às 08:00

Quinta-feira, 16.07.15

A boa notícia sobre a noitada de Bruxelas - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  A boa notícia sobre a noitada de Bruxelas

 

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Diário de Notícias, 15 de Julho de 2015

   A única boa notícia sobre a noitada de Bruxelas é que vai haver mais noitadas destas. O problema da Grécia foi empurrado com a barriga por líderes extenuados. Tão extenuados que o seu esgotamento dá alguma credibilidade à hipótese de terem ouvido uma ideia de Passos Coelho. Só de pensar nessa hipótese dá ideia da deriva da Europa. Mais grave: pelo menos um líder europeu acreditou na versão (e contou-a). Naquele filme Daylight, um túnel de Nova Iorque invadido pelas águas, as pessoas também estavam esgotadas e aceitaram a sugestão do Sylvester Stallone. Por amor da santa, ninguém aceita uma sugestão de Stallone desde que ele foi salvar o Afeganistão e deu no que deu. Mas as pessoas estavam extenuadas e seguiram o herói - e não é que se salvaram? Também é verdade que era filme. Voltando à Grécia, da última vez que Passos Coelho teve uma ideia sobre ela falou de "conto de criança". Disse, então: "Como é possível um país não pagar as suas dívidas, querer aumentar os salários, baixar os impostos?..." É a ideia que ele tem de conto de crianças: um curso de Contabilidade. Agora, do género infantil saltou-se para o hardcore: numa festa pela madrugada fora, um grupo de poderosos chicoteia um grego. Melhor, só se ainda houvesse o Varoufakis, motoqueiro vestido de licra... Repito, a única boa notícia sobre a noitada de Bruxelas é que vai haver mais noitadas destas. A este ritmo, em breve vai dar o badagaio a estes nossos líderes europeus.

 

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por Augusta Clara às 10:00

Segunda-feira, 15.06.15

A mim Passos Coelho convenceu - Ferreira Fernandes

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 Ferreira Fernandes  A mim Passos Coelho convenceu

 

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Diário de Notícias, 10 de Junho de 2015

 

   Interpelando os jornalistas, ontem, outra vez: "Já conseguiram descobrir uma frase minha em que convido os portugueses a emigrar?", perguntou Passos Coelho. Jornais e telejornais tinham passado o dia a desenterrar frases explícitas sobre aquele convite. Em outubro de 2011, Alexandre Mestre, um secretário de Estado de Passos, convidou os jovens a emigrar. Dois meses depois, o próprio Passos propôs a professores desempregados que emigrassem. As palavras de ambos estão gravadas. E eram a expressão da política de Passos. No ano seguinte, 2012, os portugueses emigraram mais do que em 1966, quando do pico da ida para França. Quando aquelas tolices, de Mestre e de Passos, foram ditas, escrevi a razão que as fazia tolice. Não era lembrarem que havia uma coisa chamada emigração. O meu avô, o meu pai, eu próprio e a minha filha trabalhámos em terra que não nos viu nascer - somos portugueses comuns, sabemos que emigrar está-nos no ADN. A decisão de partir é um direito, e tanto o usarmos só prova que os portugueses sabem ser livres, mesmo em situações adversas. A questão é: aos governantes cabe propor aos portugueses o que fazer cá dentro, não anunciar-lhes que há alternativas lá fora. Um convite a partir é um insulto, é um empurrar para longe do nosso. Mas eis que Passos tomou a iniciativa de voltar ao assunto. Parece que a sua tática eleitoral é mostrar que vai em frente com a pertinácia dos que não têm vergonha. A mim convenceu-me.

 

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por Augusta Clara às 08:00

Quinta-feira, 11.06.15

Comem salsichas, bebem cerveja e temem a Rússia - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  Comem salsichas, bebem cerveja e temem a Rússia

 

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Diário de Notícias, 8 de Junho de 2015

 

   Se calhar não são os jornais que mentem. São as notícias. Quer dizer, elas relatam o que foi dito, só que isso geralmente corresponde a um arco que vai da balela ao embuste. A cimeira do G7, o grupo dos países mais ricos do qual foi expulsa a Rússia, discutiu e concluiu, ontem, que a agressão da Rússia à Ucrânia era a sua principal preocupação. A sério? A principal preocupação do mundo (e neste caso as verdadeiras preocupações dos países mais ricos coincidem com as do mundo) é a Rússia? Pensamos na Rússia e sentimos um nervoso miudinho no pescoço, é? As mulheres canadianas, japonesas, alemãs, americanas, francesas, britânicas, italianas e europeias em geral, ali representadas pelos seus líderes, consideram mesmo que é a Rússia que proclama e luta para que elas sejam cidadãs de terceira? A totalidade dos líderes deste G7, de países que eles conduzem no respeito pelas liberdades religiosas, temem a expansão duma fé ortodoxa que impeça o exercício das outras? O G7 acredita que Putin quer matar ou reduzir a escravos os que não gostam de andar de moto ou não sabem recitar de cor versos de Alexandre Pushkin? Ontem, no castelo da Baviera, os líderes mundiais agarraram-se às salsichas e à cerveja do almoço, já com saudades por estarem a deliciar-se com aquilo que, vindo do porco e sendo álcool, será proibido pelos costumes alimentares russos?... Resumindo, pois as notícias: o problema do G7 não é a Rússia. Só se fossem doidos.

 

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por Augusta Clara às 08:00

Domingo, 24.05.15

Envolver o bastão com "Os Irmãos Karamazov" - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  Envolver o bastão com "Os Irmãos Karamazov"

 

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Diário de Notícias, 23 de Maio de 2015 

 

   O livro é grosso, quase mil páginas. Já lá irei. Entretanto, comentadores disseram que a culpa do subcomissário que bate num pai com filhos à volta é, no fundo, a do governo para nos convencer das virtudes da repressão. Outros, que a culpa é do Benfica, que tem adeptos que vão a casa alheia partir a mobília e assaltar os faqueiros. Houve, ainda, quem acusasse o género humano, por atacado. Então quando se lhe dá uma farda e um bastão, o bicho homem é terrível - dizem...

Pois, não sei. Se os governos em geral e os clubes em geral têm um gostinho especial por espicaçar subcomissários, esse lado do assunto pouco me interessa. Confesso, gosto de ver nos homens, o homem. E neste homem, o subcomissário, o que há para saber é que não leu o livro certo.

Por isso não vou pela generalização humana da violência nem pela sua versão especial fardada. Não que ambas sd violências não existam, mas não sou sociólogo. Nasci jornalista, peço desculpa porque isso acarreta um montão de vícios, mas é assim. No momento em que um pai foi atirado ao chão em Guimarães por um polícia, eu estava no Sumbe, Angola. Parei o carro numa estação de gasolina e um guarda, de farda e de bastão, veio falar comigo depois de me ter longamente observado. "É doutor?", perguntou-me. Tinha os olhos cansados, febris. Que não, disse eu. Mas ele insistiu: "Doutor de consulta? Não é doutor, mesmo?" Não, eu não era médico. "Obrigado, então", disse-me ele, afastando-se, derrotado. Eu estava de balalaica branca, talvez daí o engano. Eu não tinha culpa nenhuma, mas entristeceu-me tanto ter-lhe acendido uma esperança falsa... Isto para dizer que me habituei a ver, num homem, um homem. Mesmo quando com farda e bastão.

Pois, não sei, já disse, sobre a quem mais, além do subcomissário, atribuir as culpas da agressão policial a um pai com os dois filhos e um velho familiar ao lado. Já a culpa do subcomissário é fácil de ver. Então, eu que não gosto de fazer sociologia dos atos dos homens resolvi lavrar a sentença. Crime e castigo. Por falar nisso, o subcomissário devia ser condenado a ler o tal livro grosso que refiro no começo da crónica. Os Irmãos Karamazov, do russo Fiódor Dostoiévski. Freud disse que era o maior dos romances. Acho que era o psicanalista a falar: o pai Karamazov, homem rico e imoral, e o seu filho primogénito, Dmitri, partilham uma amante. Mas para a minha sentença o assunto é outro e está a meio do romance. Qualquer tipo que transporte uma arma consigo devia ler essas páginas, só uma vintena. Qualquer tipo com um poder que pode ser caprichoso: um polícia com cassetete, um patrão com trabalhadores a prazo, um atleta com esteroides nos bíceps...

Nessas vinte páginas, Aliócha Karamazov vai à casa de Snieguirióv, um antigo capitão caído na miséria, pedir desculpa. O mais novo dos irmãos Karamazov, piedoso (e o herói do romance, segundo Dostoiévski), quer falar do que ele chama "o assunto", acontecido oito dias antes. Dmitri, o seu irmão impetuoso e gastador, agredira o capitão num cabaré. Depois, arrastou-o até à rua puxando-o pelas barbas. Um grupo de pequenos estudantes saíam da escola e, entre eles, vinha Iliúcha, de 9 anos, o filho do pobre Snieguirióv.

Aflito, o garoto correu para os dois homens. É o próprio capitão agredido que conta a Aliócha Karamazov: "Quando ele me viu no chão, agarrou-se a mim, gritando: "Paizinho! Paizinho!", com os seus braços prendeu a mão e beijou-a, a mesma mão que... Lembro-me da cara dele nesse momento, nunca me esquecerei." Primeiro, a humilhação, depois a revolta. Quando Iliúcha volta à escola, os colegas gozam-no. Da barba arrancada do pai ( "pano do chão", escarnecem os garotos) à aflição do filho. Este deixa de ir à escola. O pai propõe irem lançar papagaios, mas ele amarra-se no silêncio. Até um grito: "Paizinho, como ele te humilhou!" E desatou a chorar.

Li Os Irmãos Karamazov adolescente, numa cidade que não se poupava a gritos e murros. Dei ambos. Mas escrevi-me com letras inapagáveis: quando te irritares com um homem, garante que ele não tem um filho perto. Além da sentença já por mim ditada, esta história triste de Guimarães devia ser redimida por olhares de reconhecimento. De cada vez que passar por aquele polícia que afastou o filho da humilhação do pai - nunca vi um escudo policial ser tão sabiamente usado -, a cidade deveria dizer-lhe: obrigada, por ter uma arma e saber ler.

 

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por Augusta Clara às 08:00

Terça-feira, 19.05.15

Sim, não fomos à Expo 2015 por pobreza de espírito - Ferreira Fernandes

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Ferreira Fernandes  Sim, não fomos à Expo 2015 por pobreza de espírito

 

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   Diário de Notícias, 16 de Maio de 2015

   A Expo 2015, em Milão, é dedicada às arrecadas de ouro de Viana do Castelo, ao cavaquinho e ao Licor Beirão. Já é surpreendente que o quase centenário Gabinete Internacional de Exposições tenha decidido fazer uma Exposição Universal com assuntos tão portugueses. Mas o mais extraordinário é que o apelo pelos valores lusos acabou por ser acolhido por 142 países. Dão-se conta? O pavilhão das Seychelles a mostrar renda de bilros, o da República Islâmica do Irão a distribuir cálices de ginjinha e no dia da Finlândia vai ouvir-se um lapão a cantar o fado... Grande Portugal, quanto das tuas coisas típicas é orgulho universal!

Eu minto, mas só um pouco. O interesse da Expo 2015 não é pelas pequeninas coisas avulsas portuguesas. Não é por Belém (o pastel), é pelo fantástico que Belém (a Torre) significa na História Universal. A minha pequena mentira do primeiro parágrafo esconde a verdade grandiosa da Expo de Milão: ali se saúda (e é esse o seu lema) "a alimentação no mundo", isto é, as coisas de comer passeando por aí. E que é isso senão Portugal? O daqui para ali da cana-de-açúcar e do abacateiro, a história do viajante amendoim, o milho turista, o cacaueiro que partiu e a pimenteira que chegou, a peregrina palmeira de dendém e o excursionista café... Não, não foi Portugal que os inventou, mas foi Portugal que os apresentou ao mundo.

Porém, nesse lugar - Milão, hoje - onde o mundo glorifica a comida, Portugal não está presente. Não tem pavilhão, nem banca, nem um simples papelinho distribuído à entrada: "Olá, vocês não se lembram, mas já nos conhecemos. Foi Portugal que vos apresentou a/o [e aí o folheto diria o nome dum tubérculo, dum fruto, dum cereal]..." Aos brasileiros deu o café para conversar; à China e à Índia, a batata; e vindo dos Andes, o chili pepper, o jindungo que, passando pelo Brasil, deu sentido às sopas tailandesas e coreanas. Reparem, nem falo da paprica húngara - só reivindico as entregas diretas. A Budapeste, o picante só chegou depois de passar pela Turquia, trazido da Índia, onde, em Goa, os portugueses tinham metido o jindungo no vindaloo. Leiam alto e descubram a origem da palavra: "vinha-d"alho"... O vindaloo encontrei-o, também deturpado, em Trindade e Tobago e no Havai.

Em 1972, o americano Alfred W. Crosby publicou The Columbian Exchange (A Troca Colombiana), sobre uma mudança-chave da história, quando o Velho Mundo se encontrou com as Américas. Nesses anos, 1492, com Colombo, e 1500, com Pedro Álvares Cabral, o planeta começou a ser pintado redondo. Global, como hoje se diz. No maravilhoso A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, de 1992, José Mendes Ferrão explicou essa contribuição portuguesa. O mais comum prato angolano, o funje, é acompanhado por fuba de milho ou por fuba de mandioca. O milho e a mandioca vieram do Brasil. E não se espalharam só pelas antigas colónias portuguesas, são as duas farinhas mais comidas em toda a África. O molho desses pratos é feito com óleo de palma, do coconote, que foi levado pelos portugueses da Índia (Goa) e Sudeste da Ásia (Malaca) para África e Brasil. Quem come moqueca em Salvador da Bahia, saboreia Goa, sem que a agência portuguesa de viagens cobre taxas. No Nordeste brasileiro, chama canjica ao mingau de milho, ou munguzá, se for sem tempero e sal. Os nomes vêm do quimbundo angolano, kanjika e mukunza. Quer dizer, a viagem das plantas não foi feita calada, uniu povos, para lá do palato.

A cana-de-açúcar tem origem na Índia e chegou a Pernambuco, o café é da Arábia e chegou a São Paulo. "E quem levou?", perguntaria o folheto que devíamos levar a Milão, já que não temos pavilhão. Os portugueses conhecem o ananás desde 1500, do Brasil. Levaram-no para estações de aclimatação, para os Açores, para o tornar de outro mundo (como levaram o cacau para São Tomé). Durante décadas, o Havai foi o maior produtor de mundial de ananás, mas só o começou a produzir em 1886, oito anos após o Reino do Havai, graças a um acordo de emigração com Portugal, já ter camponeses de São Miguel, Açores...

O pavilhão da Santa Sé, na Expo 2015, diz que a comida é também assunto de rituais e símbolos. Claro. E os portugueses foram apóstolos do valor sagrado do pão, espalharam-lhe a palavra e os sabores. O governo português diz que não temos pavilhão porque não temos dinheiro. É falso. Não estamos lá porque quem decidiu é pobre de espírito. Não merece Portugal.

 

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por Augusta Clara às 14:00

Quinta-feira, 07.05.15

Bárbaros no Capitólio - Viriato Soromenho Marques

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Viriato Soromenho Marques  Bárbaros no Capitólio

 

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Diário de Notícias, 5 de Maio de 2015

 

   Obama aproveitou o 101.º Jantar dos correspondentes de Imprensa na Casa Branca para lançar vários dardos políticos, amaciados pelo humor que se espera do presidente no discurso da ocasião. A flecha mais certeira foi dirigida ao presidente (Speaker) da Câmara dos Representantes, o republicano do Ohio, John Boehner. Brincando com a visível expansão do tom branco no seu cabelo, Obama disparou: "Eu pareço tão velho que John Boehner já convidou Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] para falar no meu funeral." A piada foi certeira e amarga. Obama aludiu ao convite que Boehner dirigiu ao chefe do governo israelita para usar da palavra numa reunião conjunta das duas câmaras do Congresso dos EUA (a Câmara dos Representantes e o Senado). Esse discurso teve lugar em 3 de março último, e o conservador israelita não mediu as palavras para atacar violentamente a política de apaziguamento dos EUA em relação ao Irão. Na verdade, esse convite é um sinal claro de que também nos EUA, país que inaugurou o constitucionalismo republicano moderno, a auctoritas das instituições democráticas está a ser devorada pela ascensão de um pessoal político cada vez mais grosseiro e impreparado. O Partido Republicano é hoje um albergue das forças mais sinistras e iliteratas da sociedade norte-americana (desde fanáticos religiosos a analfabetos científicos, que não percebem sequer a física das alterações climáticas). Quando o líder do poder legislativo convida um chefe de Estado estrangeiro para atacar a política do presidente do próprio país, no coração do Parlamento, isso significa que o mais vil espírito de fação se substituiu ao mais básico interesse nacional. Com estes Republicanos, os bárbaros não estão à porta de Roma, mas bem dentro da Cidade. Todos iremos perceber isso dentro de alguns anos.

 

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por Augusta Clara às 08:00



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