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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Jean Ziegler Assim as corporações alimentam a ultradireita
OutrasMídias, Publicado 24/05/2019 às 10:13 - Atualizado 24/05/2019 às 19:47
Por Swi Brasil
Relator especial da ONU explica como as “sociedades multinacionais privadas” tornaram-se as verdadeiras donas do mundo, e impedem qualquer Estado, cidadão ou política social de conter fome, pobreza e as crises humanitárias
Jean Ziegler, entrevistado por Jamil Chade, no SWI Brasil | Imagem: Laurent Gillieron
Jean Ziegler é uma ave rara na cena política suíça, encarnando há quase meio século a figura do intelectual público de projeção global. Seu ativismo político e atuação internacional, como relator especial da ONU, rendeu-lhe uma extensa gama de inimigos, não só entre os bancos, empresários e lideranças conservadoras, mas até mesmo no campo mais progressista. Mas Ziegler continua um observador ativo, e nota que os cidadãos das grandes democracias vivem um “desespero silencioso e secreto”.
Ele, porém, não perde a esperança e insiste que a resposta à atual crise está no fortalecimento de uma sociedade civil planetária. Para Ziegler, os acontecimentos nos últimos anos e a impotência do sistema político em dar respostas mostram que a “democracia representativa está esgotada”.
Vemos em diferentes partes do mundo uma reação popular contra partidos tradicionais e contra a política. Também vemos a vitória de políticos como Orban, Trump, Salvini e Bolsonaro. Por qual motivo o sr. acredita que estamos vendo essa onda?
O mundo se tornou incompreensível para o cidadão, que não mais consegue ler o mundo. As 500 empresas multinacionais privadas têm 52% do PIB do mundo (todos os setores reunidos, bancos, serviços e empresas). Elas monopolizam um poder econômico-financeiro, ideológico e político que jamais um imperador ou papa teve na história da humanidade. Eles escapam de todos os controles de estado, parlamentares, sindicais ou qualquer outro controle social. Eles têm uma estratégia só: maximização dos lucros, no tempo mais curto e não importa a qual preço humano.
Elas são responsáveis, sem dúvida, por um processo de invenção científica, eletrônica e tecnológica sem precedentes, e de fato extraordinário. Até o fim da URSS, um terço dos habitantes do mundo vivia sob algum tipo de regime comunista. Havia a bipolaridade da sociedade dos Estados. O capitalismo estava regionalmente limitado.
A partir de 1991, o capitalismo se espalhou como fogo de palha por todo o planeta e instaurou uma só instância reguladora: a mão invisível do mercado. Isso também produziu uma ideologia que totalmente alienou a consciência política dos homens. Há, hoje, uma ideologia que dá legitimidade a uma só instância de regulação: o neoliberalismo. Esse sistema sustenta que não são os homens, mas os mercados que fazem a história e que as forças do mercado obedecem às leis da natureza.
E qual é a implicação disso para o cidadão?
As forças do mercado trabalham com as forças da natureza e o homem é dito que não é mais o sujeito da história. No neoliberalismo, não é mais o homem que é o sujeito da história. Cabe ao homem se adaptar a esse mundo.
De fato, entre o fim da URSS no começo dos anos 1990, e o ano de 2000, o PIB mundial dobrou. O volume do comércio se multiplicou por três e o consumo de energia dobrou em quatro anos. Isso é um dinamismo formidável. Mas isso tudo ocorreu de uma forma concentrada e nas mãos de um número reduzido de pessoas.
Se considerarmos a fortuna pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do mundo, segundo a Oxfam, ela é igual à renda dos 4,7 bilhões de pessoas mais pobres da humanidade. A cada cinco segundos, uma criança com menos de dez anos morre de fome ou de suas consequências imediatas.
E no mesmo relatório sobre a insegurança alimentar no mundo da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) diz: no atual estado de seu desenvolvimento, a agricultura mundial poderia alimentar normalmente 12 bilhões de seres humanos. Ou seja, quase o dobro da humanidade – somos 7,7 bilhões de pessoas hoje. Não há fatalidade. A fome é feita pelas mãos do homem e pode ser eliminada pelos homens. Uma criança que morre de fome é assassinada.
Isso é sustentável?
De forma alguma. A desigualdade não é só moralmente vergonhosa. Mas ela também faz com que o estado social seja esvaziado. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais, o sigilo bancário suíço – que continua – isso tudo ainda permite uma enorme opacidade. Empresas são contratadas para criar estruturas que impedem que os reais donos do dinheiro sejam encontrados em sociedades offshore. Os documentos revelados pelos Panama Papers mostram muito bem isso. Portanto, podemos dizer que as maiores fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.
E qual a consequência disso?
O fato que os mais ricos pilham o país e não pagam impostos gera duas situações: esvaziam a capacidade social de resposta dos governos e impedem contribuições obrigatórias dos países mais ricos às organizações especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo. Portanto, esse sistema mata.
No fundo, essa ditadura do mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo pelo qual eu votei que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa e a desigualdade não é controlável. Se não bastasse, o cidadão é informado que seu emprego passa por um período profundo de flexibilização. A França, a segunda maior economia da Europa, tem 9 milhões de desempregados e três quartos dos empregos no setor privado são contratos de duração limitada (CDD, contrato de duração determinada). Outros milhões vivem de forma precária, como a maioria dos aposentados.
Quem são, portanto, os atores que influenciam o destino econômico de um país?
Vou dar um exemplo. As sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo. Nos EUA, sob a administração Obama, foi criado uma lei que proibia o acesso ao mercado americano de minerais que tenham sido extraídos por crianças em suas minas, principalmente do Congo. O cobalto, por exemplo, foi um deles.
Essa lei gerou a mobilização de Glencore, RioTinto e tantas outras, denunciando que era inaceitável, pois era contra a liberdade dos mercados. Uma das primeiras medidas que Donald Trump tomou ao assumir o governo, em janeiro de 2017, foi a de acabar com essa lei. Como este, existem muitos outros exemplos no meu livro.
Em quais setores?
A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi à televisão e declarou que iria propor que a especulação nas bolsas e no mercado financeiro fosse proibida, principalmente sobre o arroz, milho e trigo e outros produtos agrícolas de base. Isso seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres.
Faltando poucos dias para o G7, a França retirou sua proposta, depois de ter sido pressionada pelas grandes empresas do setor, como Unilever, Nestlé e outras. Essa mobilização impediu uma ação do presidente da França.
Portanto, voltando ao ponto inicial: o capitalismo é o modo de produção que mais mostrou vitalidade nos avanços tecnológicos e de inovação e tem uma produtividade muito superior a qualquer outro do passado, incluindo o da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, o modelo capitalista escapa de todo o controle político, sindical ou da ONU. Eu insisto: ele funciona sob apenas um princípio, que é o da maximização dos lucros, no tempo mais curto possível e a qualquer preço.
E o que isso significa para uma democracia?
É um sistema que priva o cidadão, mesmo numa democracia, de todo tipo de resposta efetiva à precariedade, à desigualdade que destrói o estado social. E é nesse contexto que se cria uma espécie de desespero silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre ocorreu na história e como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é neste momento que vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um bode expiatório.
De que forma?
O discurso é simples. Eles chegam a declaram ao cidadão: sim, sua situação é insuportável. Você tem razão. Não falam como outros que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, eles são os imigrantes e os refugiados.
Justamente, em comum, esses movimentos denunciam a entrada de estrangeiros em seus países. Como o senhor avalia?
São governos europeus que cometem crimes contra a humanidade, ao recusar de examinar os pedidos de asilo dos refugiados. O direito a pedir asilo é uma convenção internacional de 1951, ratificada por todos os países, e os governos são obrigados a receber os pedidos.
Os eslovacos, por exemplo, aceitaram apenas 285 refugiados, sob a condição de que sejam cristãos. Em outros locais, como na Hungria, crianças estão na prisão. Mas mesmo assim esses governos continuam sendo sancionados pela UE, que continua a lhes enviar dinheiro. Só Viktor Orban (primeiro-ministro húngaro) recebeu 18 bilhões de euros no ano passado em fundos de solidariedade da Europa. As sanções, portanto, são inexistentes.
E qual tem sido o resultado dessa estratégia desses grupos populistas na Europa?
Eles mudam de paradigma e ganham força. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Hoje, eles têm o mesmo número de representantes no Parlamento que o tradicional SPD, o partido social democrata alemão que já nos deu políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu com Matteo Salvini na Itália, Viktor Orban na Hungria, e ainda na Holanda, na Áustria. A estratégia do bode expiatório é uma estratégia que tem funcionado. Além disso, a consciência coletiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.
Mas, voltando ao ponto da representatividade, tal cenário não ameaça minar a própria democracia?
Jean Jacques Rousseau publicou seu livro O Contrato Social em 1762, que foi a Bíblia para a revolução francesa. Ele descreveu a soberania popular e o fato de dar a voz a alguém para me representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está esgotado. Essa democracia representativa está esgotada.
O povo não acredita mais nela. O povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a ditadura mundial das oligarquias do capital financeiro globalizado. Portanto, há uma percepção de que ela não serve para nada. Não é ele quem vai garantir meu trabalho.
Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto a abrir mão de seu poder e nem de sua capacidade de intervenção. No caso dos Coletes Amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por um referendo popular como mecanismo. O que eles estão dizendo: o Parlamento faz o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar por elas. Hoje, a democracia representativa não funciona, num período de total alienação.
Quais são as respostas possíveis?
Retirar essa placa de cimento das consciências, que foi imposta. Liberar a consciência dos homens que é, por natureza, uma consciência de identidade. Se uma pessoa, seja de qual classe social ele for ou de qualquer religião, vir diante dele ou dela uma criança martirizada, algo de si afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na terra com essa consciência de identidade. E é por isso que milhões de jovens na Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos cortejos, todas as semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o capitalismo. O que eles estão dizendo aos seus governos? Que assim não podemos continuar. Façam algo contra essa ordem canibal do mundo.
A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
Pelo Acordo de Paris, cada um dos 190 estados que assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões de CO2 na atmosfera. 85% do CO2 emitido vem de energias fósseis. O acordo pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de suas emissões até 2030 e de dar parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como solar, eólica e outras.
Mas o que é que ocorreu desde 2015? As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram, em média, sua produção em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.
Então, existe esperança?
Por anos, fui membro do Conselho Executivo da Internacional Socialista. Seu presidente, Willy Brandt, dizia a nós jovens, como eu, Brizola e Jospin: não se preocupem. A cada votação, vamos avançar aos poucos e as pessoas vão se dar conta. Lei por lei, vamos instaurar uma democracia social, igualdade de oportunidades e justiça social. Mas isso não ocorreu. No lugar do progresso da democracia social, o que vimos foi a instauração da ditadura mundial de oligarquias do capital financeiro globalizado que dá suas ordens, mesmo aos estados mais poderosos.
Desde a queda do Muro de Berlim em 1989, a liberalização do mercado e a perda do poder normativo dos estados avançou mais que nunca e, ao mesmo tempo, a desigualdade social aumentou. Mas Brandt também nos dizia: quando vocês falarem publicamente, é necessário dar esperança. O discurso deve ser analiticamente exato. Mas ele precisa ser concluído com uma afirmação de esperança. Caso contrário, é melhor ficar em casa.
Mas onde está essa esperança?
É a sociedade civil planetária. É a misteriosa fraternidade da noite, a miríade de movimentos sociais – Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra – que lutam contra a ordem canibal do mundo, cada qual em seu domínio. São entidades que não obedecem a um comitê central ou a uma linha de partido, e que funcionam por um só princípio: o imperativo categórico.
Emmanuel Kant dizia: “a desumanidade infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim”. Eu sou o outro e outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática de solidariedade entre os indivíduos e reciprocidade entre povos. Mas essa sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre.
O escritor francês George Bernanos escreveu: “Deus não tem outra mão que seja a nossa”. Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.
[1] Jean Ziegler ocupa hoje a vice-presidência do Comitê Consultivo do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
[2] Em seu novo livro – Le capitalisme expliqué à ma petite-fille (en espérant qu’elle en verra la fin) – O capitalismo explicado à minha neta (com a esperança que ela veja o fim), da editora Seuil, o sociólogo tenta dissecar o sistema atual de produção e suas consequências para a cidadania.
[3] Ziegler já foi deputado federal, professor da Universidade de Genebra e professor da Universidade Paris Sorbonne. No início do século XXI, ele foi ainda o primeiro relator da ONU para o direito à alimentação.
José Goulão Os enigmas da Coreia
abrilabril, Sexta, 4 de Maio de 2018
A concretização das intenções manifestadas na Declaração de Panmunjom, implica a independência da Península da Coreia, a desnuclearização do território e a retirada das forças militares estrangeiras.
CréditosFonte: Zoom in Korea
O comunicado conjunto assinado em 27 de Abril último pelos presidentes da Coreia do Sul e da Coreia do Norte ainda está fresco mas, como é inevitável para que se cumpram as normas mistificadoras inerentes às mensagens com imprimatur, iniciaram-se as operações interpretativas do texto de modo a que, no limite, ele diga o que não diz e vice-versa.
A deterioração do conteúdo do documento, porém, não é da responsabilidade exclusiva dos agentes de propaganda; estes reflectem, em grande parte, a teia de manobras diplomáticas «correctivas» imediatamente suscitadas pelo texto, onde se misturam imposições, falsificações, oportunismo e má-fé, instrumentos fundamentais para quem gere as coisas do mundo de hoje.
A declaração dos dois presidentes e a correspondente aproximação bilateral – a mais significativa em 65 anos de estado de guerra – assenta em bases genuínas, porque traduz os anseios pacifistas e unificadores da esmagadora maioria dos 80 milhões de coreanos. A Coreia é uma nação única no território da península e a divisão em dois Estados, ao contrário do que tanto se diz e escreve, revelando deplorável ignorância, não é um simples produto da guerra fria mas também o resultado de um conflito sangrento – aliás a primeira situação em que as Nações Unidas cobriram com a sua bandeira uma operação militar norte-americana, então para aplicação da «doutrina Truman» – em «defesa dos povos livres do mundo». Truman foi, aliás, um presidente tão recomendável como o que está na Casa Branca, como se percebe relendo algumas das suas frases lapidares: «Deus está do lado da América no que diz respeito às armas nucleares»; por isso, «agradecemos a Deus o facto de as armas nucleares serem nossas e não dos nossos inimigos»; com elas, «Deus pode guiar-nos nos seus caminhos e objectivos».
É fundamental recordar que a agressão internacional contra a Coreia provocou a morte de 30 por cento da população do norte da península, um massacre para o qual a chamada comunidade internacional jamais encarou a possibilidade de estabelecer reparações ou punir «os crimes de guerra». Lembrar essa realidade é uma circunstância que ajuda a perceber melhor, e agora mais do que nunca, as reacções obscurantistas e intriguistas ao objectivo de «desarmamento faseado» da península, «ao ritmo do alívio das tensões militares e dos progressos substanciais das medidas de confiança», definido pelos dois presidentes na cimeira de 27 de Abril. E também permite entender o indisfarçado mal-estar em Washington perante formulações como a construção de «um futuro de prosperidade mútua e unificação, conduzido pelos coreanos».
«a agressão internacional contra a Coreia provocou a morte de 30 por cento da população do norte da península»
As reacções gerais à cimeira entre Kim Jong-un e Moon Jae-in que actualmente se vão sedimentando, depois de ultrapassado o período em que se desgastou um pouco mais o estafado adjectivo «histórico», confirmam que os presidentes das Coreias do Norte e do Sul foram mais longe do que se esperava. Quando as atenções estavam concentradas, principalmente, numa cimeira entre o dirigente da Coreia do Norte e o presidente dos Estados Unidos, prevista para Junho mas ainda de realização duvidosa, eis que a iniciativa intercoreana subverteu a agenda diplomática e mediática, e logo por razões que não deixam dúvidas quanto à intencionalidade dos responsáveis.
A origem de toda a movimentação que veio atenuar um risco de confrontação prolongado durante meses foi o anúncio, pela Coreia do Norte, de que está disposta a suspender os ensaios com armas nucleares como ponto de partida para o restabelecimento de negociações sobre a paz na Península.
A importância da proposta tornou-se ainda mais relevante depois da reunião de Março entre Kim Jong-un e o presidente da China, Xi Jinping, cuja realização só foi tornada pública depois de ter sido concluída com êxito para ambas as partes, e na qual Pequim terá manifestado consonância com o pensamento estratégico do dirigente norte-coreano.
Se o movimento de aproximação de Kim Jong-un colocou na ordem do dia a possibilidade de um encontro com Trump – depois de ambos se terem confrontado num prolongado, assustador e irresponsável duelo de ameaças – o regime de Seul respondeu de maneira ainda mais decidida e criou espaço para uma cimeira coreana. É inegável que houve desenvolvimentos paralelos e a velocidades diferentes.
Apesar de o acontecimento mais mediatizado ter sido o da visita a Pyongyang do então chefe da CIA e hoje secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, tudo indica que o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in não cedeu toda a representatividade ao enviado de Washington e reservou para si alguma margem de manobra e canais de acesso directo a Kim Jong-un.
Os dois dirigentes coreanos criaram, deste modo, um espaço de diálogo nacional. E quando duas partes se entendem, não necessitam de mediadores; três passam a ser de mais, sobretudo quando o participante excedentário tutela um dos lados. O novo cenário, surgindo contra a ordem dominante na região, está a criar choques e fricções dentro da Administração Trump – em remodelação permanente – mas é visto com bons olhos por fiéis aliados de Washington, um dado que pode funcionar como reforço dos sintomas de isolamento norte-americano em relação a alguns focos internacionais. A interpretação da situação na Península da Coreia depois da iniciativa de Kim Jong-un foi mais um ponto entre os vários desacordos que se manifestaram durante as recentes visitas de Macron e Merckel a Washington.
Moon Jae-in não ignora que, devido à tutela militar de Washington sobre Seul, ele próprio pisa um terreno mais minado ainda que o do seu interlocutor do norte. Pelo modo como se envolveu nas negociações nacionais – «ansioso», segundo algumas análises – e, sobretudo, pelo conteúdo da declaração conjunta, deu passos que extravasam o espaço de autonomia que a tutela externa estipulou para um presidente do regime sul-coreano.
Ao longo de décadas, as sucessivas administrações norte-americanas têm encarado os fortuitos períodos de contactos entre o Norte e o Sul da Coreia como movimentos perfeitamente controlados pela envolvente externa, orientados segundo os objectivos estratégicos de Washington não apenas para a península, mas também para toda a Ásia e tendo em conta a relação de forças global. A estrutura de poder que gere efectivamente os Estados Unidos da América, chame-se «Estado profundo» ou «complexo militar e industrial», tem mantido, em relação à Coreia, uma política com duas variáveis estreitas: ou impedir a unificação; ou ditar os termos da unificação, designadamente de maneira a estender a presença militar para norte, em direcção às fronteiras com a China e com o território da Federação Russa.
A recente Declaração de Panmunjom define objectivos dos dois regimes coreanos que são incompatíveis com o status quo. «Paz, prosperidade e unificação» conduzidas «pelos coreanos»; o início de «uma nova era de paz»; a transformação do armistício vigente desde 1953 num «tratado de paz» e num «sólido e permanente regime de paz na Península da Coreia» são metas apenas alcançáveis num cenário sem qualquer tipo de ocupação militar estrangeira.
«[A Coreia do Sul tem] um regime onde os serviços secretos se designam KCIA e as forças armadas estão subordinadas ao comando operacional norte-americano»
É certo que, dias depois da cimeira, o regime sul-coreano emitiu um comunicado afirmando que a retirada das tropas norte-americanas – as únicas estrangeiras presentes na península – não está a ser encarada no âmbito deste processo.
Trata-se de um recuo aparente, uma espécie de abrigo contra os estilhaços da convulsão que a nova situação coreana está a provocar nos círculos de poder norte-americano. Porque, em termos práticos objectivos, não existe réstia de compatibilidade entre um tratado de paz e a manutenção de um contingente militar de ocupação, entre um «desarmamento faseado ao ritmo do alívio das tensões militares» e a continuação de um regime onde os serviços secretos se designam KCIA e as forças armadas estão subordinadas ao comando operacional norte-americano.
Em suma, a concretização das intenções manifestadas pelos presidentes da Coreia do Sul e da Coreia do Norte na Declaração de Panmunjom, designadamente a unificação, implica a independência da Península da Coreia, a desnuclearização de todo o território e a retirada das forças militares estrangeiras do país.
Na sua letra, a Declaração de Panmunjom manifesta uma intenção de ruptura assumida pelos dois presidentes. Contra a qual se erguem agora as teorias e análises impondo uma «releitura» do texto, algumas delas com tanta credibilidade, por exemplo, como as «provas» do recente ataque químico governamental sírio em Duma. É o caso da interpretação que explica como Kim Jong-un foi obrigado a suspender o programa nuclear porque a montanha que abriga o complexo militar e científico está a desabar; ou então a sua contrária, segundo a qual o presidente norte-coreano promete abdicar dos projectos militares nucleares enquanto continua a desenvolvê-los, e por isso não permitirá quaisquer inspecções internacionais. Um argumento falacioso para esconder a essência do que vai estar verdadeiramente em causa na cimeira entre o presidente norte-coreano e Donald Trump, caso se realize: o encerramento do programa nuclear de Pyongyang sob monitorização internacional em troca da retirada militar norte-americana do Sul da península. Este é o desafio lançado por Kim Jong-un, e cujas implicações Moon Jae-in, certamente, não ignora.
Uma proposta cuja recusa poderá deixar o presidente norte-americano isolado, até do próprio presidente da Coreia do Sul. O qual deve, desde já, precaver-se de quaisquer imprevistos, sendo o menos gravoso para a sua integridade física o pacífico, mas eficaz, golpe palaciano ao estilo paraguaio ou brasileiro.
Mas o que terá levado Donald Trump a aceitar o repto lançado pelo seu inimigo de estimação ao longo do primeiro ano de mandato?
Muito provavelmente porque tal lhe convém, uma vez que outro velho, mas renovado inimigo, entra em cena depois dos comprometedores fracassos dos justiceiros atlantistas na Síria: o Irão.
Não apenas porque o Irão teve a ousadia de participar na resistência síria à agressão, ao lado da Rússia; também porque Teerão faz frente à reconfiguração do mapa do Médio Oriente, contribuindo para desmontar importantes mecanismos operacionais que a coligação entre Israel e a Arábia Saudita tenta impôr em toda a região, do Iémen ao próprio Irão, passando por Damasco e Beirute.
A agressão contra o Irão, uma obsessão com que Israel há muito tenta contaminar os aliados, e que partilha com o fundamentalismo saudita, estava prevista logo que a Síria se vergasse. Como isto não aconteceu, acumulam-se os indícios de que os dois países sejam agrupados num alvo comum, que provavelmente traduzirá numa catastrófica fuga para a frente. Daí as ameaças cada vez mais consistentes de Trump segundo as quais os Estados Unidos sairão do acordo com o Irão, reforçadas agora que Israel “descobriu”, certamente nos mágicos laboratórios do Mossad, as provas de que além dos tão falados projectos nucleares suspensos, Teerão ainda tem outros – mas esses ultra-secretos.
Na eventualidade de se registar uma maior concentração de esforços de guerra no Médio Oriente, até ao intrépido e omnipresente exército norte-americano convém que a frente da Coreia fique congelada por uns tempos, nem que seja alimentando conversações que darão em nada.
O pior, para as sempre periclitantes estratégias do Pentágono, é se os coreanos conseguirem trilhar em conjunto o caminho que tiveram a ousadia de abrir.
Ferreira Fernandes A indecente manipulação das imagens
Diário de Notícias, 27 de Abril de 2018
É como as anedotas. Vocês sabem, é possível brincarmos com tudo, mas não com todos - até se pode contar piadas sobre campos de concentração... mas não se há um nazi por perto. Emmanuel Macron deve ter pensado que podia ter todo o tipo de gestos. Mas aprendeu nesta semana que deveria abster-se de ter gestos íntimos com Donald Trump.
Macron é capaz de posar tão bem de firme como de encantador. O presidente francês tem a boa figura e as convicções que o fazem ficar bem, com qualquer das variáveis, uma ou outra. Dizem alguns analistas que uma das razões de ter chegado ao Eliseu foi por, entre as duas voltas das presidenciais, ter ousado defrontar grevistas coléricos. Cercado entre operários da Whirlpool que protestavam por a sua empresa ser deslocalizada para a Polónia, Macron disse a um: "Não me trate por tu, porque não lhe faço o mesmo." Até lá era o menino dos gabinetes alcatifados do banco Rothschild, mas com essa imagem, essa voz e esse tom à porta da fábrica ocupada e transmitidos pela televisão, sob o escrutínio dos franceses que ainda andavam a tentar saber quem era aquele jovem ovni da política, ele foi catalogado como duro. Quanto a ser gentil, sempre bastou o seu ar de galã frágil - como um herói de filme de François Truffaut, um Antoine Doinel reconvertido na política.
No seu primeiro encontro, em maio do ano passado, com o também recente presidente americano, Macron ganhou por KO. Agarrou no ponto fraco de Trump - as mãozinhas pequenas que até tinham sido assunto da campanha americana. Na Casa Branca, sentados em cadeirões, em frente às câmaras, quando o americano lhe estendeu o bacalhau fugidio do costume, o francês firmou a mão e levou o outro a um esgar de desconforto que não escapou ao mundo. Foi só uma derrota que o presidente do país da imagem pública e dos dentes perfeitos não esqueceu. Até poder resgatar-se, nesta semana.
Aconteceu na visita de Emmanuel Macron à América. Ele trazia um discurso fisgado e esse era - já lá vamos aos pormenores - o de cimentar a sua liderança na Europa, agora que a sua parceira e aliada já não é a poderosa que Angela Merkel foi. Recebeu-o Donald Trump, homem de televisão e americano dos efeitos especiais. Uma coisa foi o francês tê-lo apanhado desprevenido, há um ano, outra seria deixar que o desconchavo se repetisse. Quem teve quem lhe organizasse as eleições, investindo cirurgicamente nos condados onde os dados fornecidos pelo Facebook diziam que se devia inundar com anúncios eleitorais eficazes, pôde apostar desta vez num personal trainer que lhe indicou onde amesquinhar o francezinho. Se a discursar bem Trump ainda não aprendeu, a gestualizar ele mostrou ser bom e rápido aluno.
Então, as conversações de 23 e 25 de abril, durante a visita de Macron a Washington, saldaram-se por um Waterloo gestual. O pequeno Napoleão foi derrotado por um improvável duque de Wellington de melena alourada. Trump caprichou e insistiu no capricho. E Macron convencido de que tinha arrumado o outro de vez com o aperto firme de mão, no ano passado, aprendeu que há gestos que não se podem ter com Trump. Sobretudo quando este já não está desprevenido.
Seguem-se três cenas, todas elas daquelas que levam direito a Santa Helena. Na Casa Branca, com as mãos descaídas e cruzadas frente ao casaco, com o sorriso que já não podia ser de vencedor, Macron deixou que Trump lhe limpasse uma hipotética caspa da lapela e, pior, deixou que o sorriso permanecesse beato. Entre eles, um quadro de George Washington, o mesmo do pai fundador que aparece nas notas de dólar, prevenia. Reparem, Washington nunca mostra os dentes porque os tinha em madeira, os odontologistas ainda não tinham sido inventados no seu tempo, mas o ar austero que aparece naquela foto também era para avisar o amigo francês, do grupo dos presidentes decentes, contra o seu sucessor. Este, grosseiro, sabendo o outro fragilizado, lançou aos jornalistas: "Ele deve ficar perfeito", e sacudiu um pouco mais a lapela do convidado...
Com ambos de pé, Trump deixa o seu microfone, aproxima-se de Macron, cruza com ele as mãos direitas, inclina-se e encosta a sua à cabeça dele. Fotos, filmes. A diferença de alturas sublinha o poder do americano. Finalmente, a imagem mais cruel, à saída da Casa Branca, Trump, apesar de dono da casa, está um bom passo à frente do hóspede. Deixa a mão esquerda para trás, que Macron imprudentemente agarra. E vai arrastado. Em filme, parece a debandada final dos franceses em Waterloo, sem um Cambronne que ponha cobro ao insulto; em foto, é um garoto que o pai leva à escola... As imagens são todas desastrosas para o presidente francês, sobretudo porque a contracorrente do que antes ele demonstrara. O ar glorioso de Trump não escondia, nem fingia que tentava esconder, que a vingança estava consumada.
No dia seguinte, Emmanuel Macron foi ao Congresso. Falar. A imagem, essa, tinha sido lamentavelmente destroçada antes. Sem ela, pior, com ela nas ruas da amargura, restavam-lhe as palavras. Num editorial, o jornal Le Monde fez o rol do que o presidente francês defendeu, em contraponto da nova política americana. A alternativa dos valores europeus, ao mundo fraturado que Trump quer; o comércio aberto contra o protecionismo; os valores progressistas contra o fascínio do poder forte; os acordos de Paris sobre o clima contra a recusa deles. A voz de Macron foi clara e forte. Mas já uma e outra e outra imagem de Macron faziam este valer menos do que mil palavras.
Créditos / Agência Lusa
E a verdade chegou pelo rosto e pela voz que não encobrem as normas escabrosas regedoras do mundo, aplicadas por estruturas dominantes sem princípios nem valores, mesquinhas, desumanas, xenófobas, hipócritas. No seu discurso boçal, mas franco, Donald Trump disse que o rei ia nu, isto é, proclamou o que toda a gente sabia mas nenhum dos seus parceiros ousava admitir: não há lugar para a solução de dois Estados na Palestina. Ou seja, nega-se ao povo palestiniano o direito ao seu Estado. É uma cruel ignomínia; mas também é, por ora, a realidade dos factos.
Milhões de dedos escandalizados espetaram-se na figura odienta do novo presidente dos Estados Unidos da América, autor de uma blasfémia contra o direito internacional e, sobretudo, inquietador das boas consciências dos chefes da ONU, da União Europeia, de todos os «quartetos para a paz» feitos e desfeitos, de quantos se contentam em garantir a criação de dois Estados na Palestina enquanto o único existente, protegido a qualquer preço pelos poderes dominantes – vai engolindo palmo-a-palmo, traulitada-a-traulitada, todo o pedaço de terra onde deveria nascer o outro.
Avaliando, sem rodeios nem sob o efeito de melífluas declarações diplomáticas, a situação no Médio Oriente, apenas pode concluir-se que a solução de dois Estados na Palestina fracassou há muito. Terá morrido até à nascença, há 70 anos, quando as Nações Unidas, na vetusta e incumprida resolução 181, de 27 de Novembro de 1947, aprovaram o plano de partilha da Palestina, então sob mandato britânico.
Talvez seja este, afinal, o histórico, magno e escandaloso alcance da polémica proclamação de Trump. Apenas recordou e reafirmou as exigências impostas, em seu tempo, pelos Rockfellers, Rostchilds e quejandos, permanentemente lembradas ao complexo militar, industrial e tecnológico dos Estados Unidos pelos todo-poderosos lobbies judaicos.
O óbito da solução de dois Estados não foi declarado só agora. A resolução da ONU estabelecendo a partilha da Palestina foi logo sabotada pelo recém-nascido Estado de Israel, quando iniciou a limpeza étnica das populações árabes, a rapina dos seus bens, a destruição dos seus lares, vilas, aldeias e propriedades; prosseguiu com as deportações e anexações contínuas, as guerras de 1968, 1973, 1982, 1986, 1996...
A possibilidade de existência de um Estado Palestiniano ressurgiu vagamente com os acordos Rabin-Arafat de 1993, logo desmantelada pelo assassínio do então primeiro-ministro israelita e pela sequente sabotagem das negociações de paz por Peres, Sharon, Netanyahu, os beneficiários políticos da liquidação de Isaac Rabin por um criminoso saído das suas fileiras.
«A arrastada coexistência de falsas negociações com a colonização israelita da Cisjordânia, sempre em crescendo, e o sangrento desmantelamento de Gaza, inviabiliza, de facto, a existência de um Estado independente que tenha condições para sobreviver.»
A arrastada coexistência de falsas negociações com a colonização israelita da Cisjordânia, sempre em crescendo, e o sangrento desmantelamento de Gaza, inviabiliza, de facto, a existência de um Estado independente que tenha condições para sobreviver. Resta o gueto dito «autónomo» de Ramallah, preso nas suas próprias malhas, submetido ao ocupante sionista, mergulhado nos vícios da pequena e baixa política, joguete de interesses de uma aliança espúria entre o Estado segregacionista de Israel, agora plenamente racista e fascizante, e as petroditaduras do Golfo, com a Arábia Saudita à cabeça.
A tudo isto o mundo assistiu nos últimos 25 anos, repetindo a ladainha dos dois Estados como um mantra – enquanto Israel prosseguia tranquilamente a colonização/ocupação, acusando os palestinianos de se recusarem a negociar por contestarem as ininterruptas invasões dos destacamentos de assalto colonizadores.
A opinião pública deixou-se embalar nesta espécie de determinismo dos dois Estados, crente de que um dia qualquer veria nascer um Estado Palestiniano, espécie de sucedâneo dos milagres criadores de Bósnias, Kosovos, Sudões do Sul, Somalilândias; até que Trump estilhaçou o limbo com a crueza da verdade repelente: não há – nem nunca houve – ideia de cumprir a promessa da existência de dois Estados na Palestina.
A União Europeia, a ONU, as famílias Bush e Clinton, o próprio Obama sobem então ao palco exibindo consciências virginais, clamando contra o maléfico atrevimento do novo presidente norte-americano. Contudo, eles sabem como ninguém do que fala Trump.
Com eles esfumou-se a possível criação de um Estado palestiniano, porque cobriram, toleraram e encorajaram sempre a estratégia dilatória e as práticas criminosas de Israel. E a Obama, que se ufana de ter permitido a primeira resolução do Conselho de Segurança contra a colonização, há que recordar que o fez com oito anos de atraso. O ex-presidente sabia perfeitamente que qualquer dos seus sucessores – fosse Hillary Clinton ou Trump – inverteria tal posição, assumida já em fase de transição de mandato.
A proclamação sionista de Donald Trump tem ainda um outro significado, que não pode ficar soterrado nos escombros dos inflamados, hipócritas e inócuos protestos da chamada «comunidade internacional». O seu tom e conteúdo provam que o actual presidente norte-americano não surge do exterior do establishment e à margem do complexo militar, industrial e tecnológico que domina o sistema de poder federal e imperial.
Trump é o homem escolhido para o actual momento de crise e contradições da desordem capitalista neoliberal. As proclamações trovejantes por ele proferidas, em sintonia com as vontades da teia financeira, económica e política dos lobbies judaicos, confirmam-no – caso houvesse dúvidas.
Trump é a verdadeira imagem da América e do capitalismo de hoje.
O Partido Republicano, fundado por abolicionistas, partido cujo primeiro presidente foi Abraham Lincoln, dificilmente se reconheceria no trajeto iniciado há trinta anos, sob a influência da Direita Religiosa, radicalizado pela chegada do Tea Party e bem-sucedido com o extremista Donald Trump, com o apoio não repudiado da Ku Klux Klan. Aliás, Trump faz a síntese da pior herança das últimas três décadas e acrescenta o exuberante apoio ao sionismo judaico.
Trump não é um risco, que as promessas feitas na campanha presidencial prenunciavam, é uma ameaça trágica pela obstinação em cumpri-las.
Racista, misógino e exibicionista, falta-lhe preparação, sensatez e equilíbrio para dirigir o mais poderoso país. Com a sua vitória eleitoral tornou-se o homem mais perigoso do mundo. Com maioria republicana no Congresso (Câmara dos Deputados + Senado) e no Supremo Tribunal (Suprema Corte), cujos juízes são nomeados pelo PR e confirmados pelo Senado), Trump é o mais poderoso dos Presidentes dos EUA e do Mundo.
Ao fazer da China, o seu maior credor, o inimigo principal, da Palestina um quintal de Israel e do Mundo um espaço de negócios, Trump pode fazer com que a crise de 2008 pareça um incidente perante a previsível catástrofe.
O direito internacional, como sucede com os aprendizes de ditador, é apenas um ligeiro obstáculo à vontade de um narcisista sem ética, cultura e formação política, indiferente ao aquecimento global, ao drama dos refugiados, à pobreza e à saúde dos desvalidos.
Os 8 homens mais ricos do mundo, 6 americanos, 1 espanhol e 1 mexicano, detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da Humanidade. Com Trump, tendem a reduzir-se.
Por trás de Trump há uma redefinição geoestratégica. A sua retórica podem ser a cortina de fumo para a real política externa dos falcões que o apoiam e de interesses sectoriais americanos, mas as circunstâncias e o homem não podem ser ignorados.
A União Europeia, avessa à integração económica, social e política, conseguiu tornar-se anã no xadrez mundial, apesar de ter maior PIB e mais população do que os EUA. Está abandonada à desintegração e redefinição de fronteiras.
O ar que se respira lembra o dos ventos que sopraram antes da II Guerra Mundial.
José Goulão A ordem natural das coisas
O sistema de poder mais fiscalizado, filtrado e policiado do mundo jamais se enganaria na escolha daquele que interpreta os seus interesses e exigências num determinado momento e nas circunstâncias existentes.
Não confundir sistema de poder com sistema político. Os dois universos estão normalmente em consonância, porque disso cuida a estabilidade fundamental para os magnos interesses que enformam a estrutura que comanda. Porém, quando esta não se sente confortável nem segura com os caminhos da política interna, e externa, é óbvio que se vê obrigada a recorrer ao exterior da estrutura tradicional, abrindo caminho a um outsider, tornado insider enquanto o diabo esfrega um olho.
É o caso da entronização de Donald Trump em detrimento da senhora Clinton, que tantas etapas queimou para corresponder ao que o sistema de poder actualmente exige de um presidente que se esturricou a si mesma, numa sucessão de malfeitorias com as quais o establishment tem muitas dificuldades em lidar perante a opinião pública, por muito condicionada esta seja.
As circunstâncias em que decorreu o presente episódio eleitoral nos Estados Unidos exibem o nível mais reles da política. Nada do que aconteceu tem a ver com democracia, com uma ideologia que não seja a não-ideologia, com debate de ideias ou esclarecimento da situação social.
É certo que nada de substancial poderia ser discutido, porque o sistema chegou a uma fase em que a sua própria sobrevivência, tal como ele se conhece ou funciona, já não é compatível com debate, ideias e transparência, impõe subserviência e conformismo como nunca exigiu – isto é, um poder forte e autoritário comandando um exército de desiludidos receptivos a radicais promessas de mudança e melhoria de vida, ainda que pressintam falsas.
«Nada do que aconteceu tem a ver com democracia, com uma ideologia que não seja a não-ideologia, com debate de ideias ou esclarecimento da situação social»
Não é novidade que, desde meados da década de setenta do século passado, a ortodoxia neoliberal tomou conta das rédeas do capitalismo, promovendo o mercado a entidade suprema da sociedade, malignizando o Estado, exorcizando qualquer sistema de apoio e solidariedade social, libertando o trabalho de quaisquer amarras, direitos e vínculos, uma solução que temos ouvido definida na forma do slogan «liberalização do mercado laboral».
O capitalismo, para seu próprio desenvolvimento e progresso na fase de boom tecnológico que exibe o esplendor do mercado nos salões do casino financeiro em que rolam milhões de milhões virtuais, e vai tornando a economia subsidiária da especulação, precisou de cortar quaisquer amarras com o seu passado keynesianista.
Isto é, deixaram de existir condições lucrativas satisfatórias para se falsificar um qualquer «rosto humano» do capitalismo. O capitalismo necessita de ser absolutamente livre, de dispor de acesso sem peias aos recursos humanos, às matérias-primas, ao território global – isto é, exige ausência de restrições políticas, sociais, humanistas e estratégicas; e não tolera obstáculos à conquista de espaço vital, também por isso se fala tanto em globalização.
Como, ainda assim, a crise continua a miná-lo devido a resistências várias, sejam de povos ou nações, e também devido às contradições própria das rivalidades das ganâncias à solta, há muito que o capitalismo se incompatibilizou com o que resta de democracia.
O que é válido para o templo mais sagrado do capitalismo, os Estados Unidos da América, é-o igualmente para o resto do mundo, principalmente para a moribunda União Europeia, e disso falam bem as nossas experiências pessoais e institucionais.
Afinal, não é uma humilhação dos direitos dos cidadãos, e da sua liberdade de voto, o facto de um governo português ter de submeter o orçamento aprovado pelos eleitos dos portugueses ao exame com poder deliberativo de fiscais não eleitos, algures em Bruxelas, Berlim e sabe-se lá mais onde? Conseguem descortinar a democracia no meio da teia de artimanhas de bastidores onde até são possíveis acordos secretos de burla como entre o senhor Hollande e a Comissão Europeia?
Trump surge na ordem natural das coisas estabelecida pela cavalgada neoliberal para o «fim da História», porém tornada escorregadia por uma crise até agora indomável.
«Obama e Clinton, "príncipes democratas" de pura cepa, promoveram mil e uma acções de aniquilação da democracia e de expansão do espaço vital, na esteira do republicano fascistóide George W. Bush»
Na sua não-ideologia ideológica, há muito que o sistema global capitalista identificou o funcionamento dos mecanismos democráticos como o principal problema a remover. Por isso, o baixo espectáculo político dado pelas eleições norte-americanas já nem escondia a realidade da não-escolha.
Obama e Clinton, «príncipes democratas» de pura cepa, promoveram mil e uma acções de aniquilação da democracia e de expansão do espaço vital, na esteira do republicano fascistóide George W. Bush: o golpe fascista na Ucrânia; o incentivo à ressurreição dos fascismos e militarismos, arcaicos ou renovados, no Leste da Europa; o crescimento e globalização da NATO e o seu funcionamento agressivo e arbitrário, recorrendo, quando considera necessário, a grupos terroristas islâmicos como divisões operacionais; a aniquilação da União Europeia – sempre «bom aluno» de Washington – através do TTIP, do enfeudamento a rígidos e expansionistas compromissos atlantistas e da tragédia dos refugiados; o incentivo à guerra, ao militarismo e a situações de caos regional ao serviço do crescimento económico através da indústria militar e do acesso, sem restrições, às mais importantes fontes de matérias-primas e de recursos energéticos; o estado de excepção em França e a ascensão de movimentos fascistas, populistas, xenófobos e racistas através da Europa, decorrente da convergência de efeitos das guerras de expansão, do terrorismo e dos problemas criados pela vaga de refugiados; a tomada e manipulação da ONU por Washington. Tudo isto marca os tempos modernos, com as assinaturas indeléveis de Hillary Clinton e Barack Obama.
Apesar das provas dadas pela senhora Clinton, o sistema de poder escolheu Trump. Os serviços prestados pela candidata deixaram rastos incómodos, mesmo numa opinião pública ferreamente manipulada.
Donald Trump surge de novo e de fora, mas do interior do sistema de capitalista, do capitalismo «de sucesso». Diz o que a doentia sociedade da «América profunda» deseja ouvir, trabalhada pelo fascismo das seitas protestantes, pela estupidificação burilada sistematicamente pela comunicação social e pela degenerada indústria cinematográfica, educada pela violência do entretenimento e dos lobbies securitários e das armas, assustada pelos pregadores obscurantistas, aterrada pela insegurança social, física e pela falta de perspectivas, minada pelas acicatadas e artificiais contradições entre grupos sociais e étnicos mergulhados nas desigualdades.
Assim se construiu o discurso «novo» de Trump sobre a cama, há muito preparada, do descrédito das ideias políticas (a ideologia) e do nível zero da democracia. A resultante do discurso do sistema de poder capitalista, o discurso vencedor de Trump, é agora uma mensagem fascista.
Iremos confrontar-nos, a seguir, com o conteúdo prático que assumirá tal programa ainda disperso, anárquico e oportunista, elaborado para vencer num dado momento e circunstâncias.
Embora suspeite de que, necessitando de derrubar barreiras nesta ânsia de atingir o estado supremo neoliberal, em que também joga a própria sobrevivência, o capitalismo descartou de vez qualquer réstia de democracia. É a ordem natural das coisas.
Luís Sepúlveda Para que nos entendamos, si esto es todavía posible
Como hombre de izquierda sé que uno de los males mayores de cierta izquierda -la más ruidosa- es entender lo que quiere y no lo que debe. En política la imposición del deseo por sobre el análisis se llama voluntarismo, y ese vicio siempre conduce a confundir la realidad con la fantasía.
Leo muchas opiniones que, en lugar de preocuparse por entender las razones del triunfo de Trump, condenan no sólo a quienes lo votaron sino también a los que intentan entender lo ocurrido.
Para que nos entendamos voy a poner un ejemplo real, y se llama Detroit, una ciudad del estado de Michigan y que fue la capital mundial de la industria automotriz. Detroit era la ciudad de Ford; Chrysler y General Motors entre otras marcas. Hasta 1973 llegó a tener un millón y medio de habitantes, empleo pleno, hospitales, universidades, bibliotecas, transporte público y, desde luego, viviendas muy caras.
Hoy, en Detroit, una ciudad arruinada que se declaró en bancarrota hace dos años, malviven unas seiscientas ochenta mil personas y de ellas, unas doscientas cincuenta mil viven en la extrema pobreza . Y no hay universidades, salvo sus ruinas, ni hospitales, salvo sus ruinas, ni teatros, salvo sus ruinas, ni industria automotriz, salvo sus ruinas, ni bibliotecas ni transporte público, salvo sus ruinas.
¿Qué ocurrió? Sería fácil decir que simplemente las industrias se " deslocalizaron" y se marcharon a producir en otros países más "competitivos". También sería fácil decir que todo es consecuencia de la "globalización", pero sin explicar qué es y cómo actuó esa globalización.
Esencialmente, la globalización de la economía es la unión de los grandes capitales que forman un poder paralelo y superior al poder de los Estados. Más simple aún, son el 1% poseedor del 99% de la riqueza del planeta que decide las reglas del juego de la economía al margen de cualquier consideración social o de respeto a los derechos conquistados.
En el caso de Detroit, los dueños, los accionistas de la industria del automóvil , trasladaron sus capitales a países de mayor flexibilidad laboral e impositiva. No hay marcas de autos "nacionales", en los directorios de todas las empresas que fabrican autos se cruzan nombres de accionistas de todas las marcas. La patria no existe en la economía globalizada.
Hasta Detroit, hasta los jodidos, los pobres, los parados, los sin esperanza , los que sobreviven entre las ruinas de la que fuera una ciudad espléndida, llegó el discurso abstracto, comprensible sólo para ciertas élites, profesores de Berkeley o Harvard, que no hacía la menor referencia a lo ocurrido en esa ciudad y al por qué. Y llegó también el discurso populista, simplón de Trump , pero que explicó por qué Detroit esta en ruinas, culpó directamente a la globalización -ocultando que como empresario es parte de ella-, y ofreció algo llamado "proteccionismo", conjunto de medidas que, en una economía absolutamente globalizada, no es más que un intento de regreso a una fase del capitalismo superada por el mismo capitalismo, pero que a los jodidos, a los pobres, a los parados, a los desesperanzados sonó como música celestial. Sonó a trabajo.
Trump no ganó por ser un machista, un misógino, un racista, un intolerante. Ganó porque, siendo sin duda todo lo anterior, supo construir un discurso convincente para los jodidos, los parados, los sin esperanza.
Y esos jodidos, parados, hambrientos y sin esperanza aceptaron un discurso que tiene cualquier cosa menos "corrección política" y se aferraron a él.
Así de simple, y así de complejo.
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...