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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Herberto Helder Ele que tinha ouvido absoluto ...
(John Tibbott, "O som do silêncio")
ele que tinha ouvido absoluto para as músicas sumptuosas
do verso livre
ouvia a cada nó de sílaba
um silêncio de morte
(in Servidões, Assírio & Alvim)
Edouard Roditi A identidade dos contrários
(Jaya Suberg)
Sonho que sou louco, e na minha loucura
Sou mais sensato que num sonho
Ou acordado, com medo que me tenham por louco
Meus companheiros de sonho.
Meu bom senso é diária loucura,
Para um mundo em vigília que atribui
Mais vigília e atenção mais funda
À razão do que a razão possui.
Sonho é minha vida diária, cada dia
Simula e dissimula até loucura
E razão serem ambas semelhantes,
E eu ajo enquanto sonho.
No sonho, o bom senso e a loucura,
Na loucura, o sonho e o dia a dia
Ligados, entre si todos semelhantes:
Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.
(in As Magias, versões de Herberto Helder, Assírio & Alvim)
Herberto Helder "Li algures que os gregos antigos ..."
(fotografia de Alfredo Cunha)
li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguirem-se da terra,
os grandes poemas desaparecerem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afaste de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluído, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que eu ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega
(in A Faca Não Corta o Fogo, Assírio & Alvim)
Filipa Melo Grão de sal em bocas impuras
(Crítica ao seu último livro)
Sol, 12 de Junho de 2014
A poesia nasceu de um espanto, disse Aristóteles. Com base na ilusão, surge um objecto que figura uma interpretação da vida e da reação do poeta perante os estímulos e a provocação. Medo, defesa e elaboração estão na raiz poética desde os tempos primitivos, negociando com o amor e a morte do corpo. Neste caso, o poeta dedicou-se a condensar fragmentos do mundo em movimento primitivo e, para tal, deu a sua própria vida à linguagem. Hoje, diz-se e diz-nos: «filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo, […] filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem,/ essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas/ onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte».
Agora, o poeta está nu, no final da vida como no começo do mundo (ou na poesia da juventude) e por isso pede «que um qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro». Mais irónica, livre, fulgurante e moderna do que nunca, a metapoesia de Herberto Helder é a confissão magnífica de quem «queria fechar-se inteiro num poema/ lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena».
A Morte Sem Mestre é uma elegia, um lamento confessional, alimentado pela mensagem fúnebre dos poemas antigos, «tão fortes eram que sobreviveram à língua morta» e ainda vibram «entre os objectos técnicos no apartamento,/ rádio, tv, telemóvel,/ relógios de pulso». O poeta continua a cantar o presente das coisas mesmas, ainda em busca de uma luz de dentro, iluminando e despedaçando tudo. O acaso, o hermético, o concreto uniram-se após décadas de experiência da palavra, garimpando poesia como «um organismo internamente coerente e bastante» (ao JL, 1964). O que espanta é o arrojo, a vitalidade furiosa e orgânica deste livro, escrito aos 83 anos do poeta, e na sua melhor forma.
Herberto Helder: Magnífico poeta obscuro
A poesia inédita de Herberto Helder surge de novo em edição limitada. A restrição imposta pelo poeta resulta afinal num marketing infalível.
Quantos serão agora os felizardos? A Porto Editora, nova chancela de Herberto Helder (por três décadas foi a Assírio & Alvim), não o revela, mas é provável que só 5000 exemplares de A Morte Sem Mestre cheguem aos leitores. O novo livro de poesia inédita traz um CD com cinco poemas ditos pelo poeta madeirense. O design da capa reproduz o modo como encaderna os volumes da sua biblioteca, em papel de embrulho e com os títulos manuscritos a caneta de feltro vermelha. Por «vontade expressa» do autor de 83 anos, a sua poesia continua a ter só primeiras edições, integradas, após correcções, em volumes de obra completa e definitiva. O próximo sairá até ao final do ano, incluirá Servidões (de 2013 e cujo ebook está, «durante 30 dias», à venda na Wook) e talvez já A Morte Sem Mestre.
Há mais de 40 anos que Herberto Helder não dá entrevistas. A fotografia que publicamos é a mais recente, entre meia dúzia ainda acessíveis. Diz-se que é um misantropo radical, não atende telefonemas e impede os outros de falarem de si. O que se diz aumenta a aura mítica do auto-recluso, o maior poeta português vivo.
Entre a estreia em 1958, com O Amor em Visita, e o lançamento de A Faca Não Corta o Fogo, em 2008, as primeiras edições da poesia de Herberto Helder dificilmente se esgotavam. Serviam para o poeta avaliar o seu público, mas sobretudo para confirmar a obra, o que justificava a ausência de reedições. Todavia, em Servidões, o livro mais confessional, esta opção adivinha-se como compromisso com o valor ético da arte: «disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos/ e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/ nada se reparte: ou se devora tudo/ ou não se toca em nada». Nos últimos três livros, a expressão do poeta é cada vez mais directa, mais nua, menos rasurada. Na epígrafe de A Morte Sem Mestre, diz: «Tudo quanto neste livro possa parecer acidental/ é de facto intencional.» Nos 28 poemas que se seguem, confirma o abandono do mundo, a ascese de uma identidade restrita às margens da poesia e de uma poesia votada à linguagem, não ao diálogo. De acordo com o que disse ao JL, em 1964: «Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. […] Decepcionar é garantir o movimento.»
Seremos poucos com primeiro acesso aos seus poemas, talvez em nome da preservação do universo interior do poeta, onde reside a justificação para tão vital recusa da visibilidade. Mas os tempos, cada vez menos permeáveis ao que é singular, secreto e intocado, corrompem qualquer viabilidade dos gestos rebeldes à margem da comunicação e do marketing. Thomas Pynchon, o mais esquivo autor norte-americano, aceitou participar, em 2004, em dois episódios de The Simpsons, dando a própria voz à sua caricatura, que surgiu com um saco enfiado na cabeça. Como tantas vezes alertou Mário Cesariny: «Já não há escândalo.»
Herberto Helder "Não sei como dizer-te ..."
(foto de Miguel Cunhal)
Herberto Helder
(Alexandre Bastos)
nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora
(in Servidões, Assírio & Alvim)
Herberto Helder Os comboios que vão para Antuérpia
(Manuel Amado)
Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingénua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho de Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus — um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte com um destino indefinido: Antuérpia — que possivelmente (evidentemente) não era.
Às vezes vinha à janela e, por detrás dos vidros, olhava para o caminho de ferro. Mas antes de lá chegar os meus olhos encontravam uma árvore esquisita — tímida mas tenazmente viva — num quintal próximo. Esta árvore metia medo: era como a esperança em mim mesmo, ou uma ainda mais ambiciosa aposta: a fé dolorosamente contraditória nos homens. Nos homens? Há em mim todas as virtudes da confiança, mas sou um desesperado. Apesar de tudo também sou um homem. Tenho capacidades de amor. Amo a minha semelhança com todos os homens, mas desespero nesse mesmo amor. Estou fechado num quarto. Nem posso fumar. Não posso descansar. Imagino que se consiga partir de Antuérpia depois de lá chegar num desses comboios rangentes. Antuérpia não é um sítio final. É uma cidade como as outras: com bares e nevoeiros, o silêncio, as pessoas, as vozes, a matemática impenetrável das suas multiplicações e desmultiplicações, e o fluxo e refluxo das imagens. Em Antuérpia há prostitutas, há um calor humano degradado, a embriaguez. Lá também se morre. Talvez alguém tenha um dia ressuscitado em Antuérpia. Não sei.
O lugar em que penso é difícil, sempre difícil.
Ao norte existe o rio Escalda. De lá se parte, chega-se ao mar. Já me disseram que a gente que nasce e vive ao pé do mar é mais pura. Penso que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confiança. É uma propriedade misteriosa do espírito, e por ela se aprende a nada esperar, a não desesperar de nada. Talvez seja isso a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode.
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Texto e foto deliciosos, parabéns!
Palavras como dinamite.E passados 50 anos sobre os...
Lindo!
Um testemunho enternecedor.Eva
Grande texto que nos faz refletir... Muito!