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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
José Goulão Matança
abrilabril, 19 de Outubro de 2017
Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.
Ricardo Graça / Agência Lusa
Anuncia-se que, por ora, as chamas estão extintas; fazem-se os enterros, recolhem-se os salvados, secam-se as lágrimas, respeita-se o luto, limpam-se os destroços, recontam-se as poupanças – se ainda as há – deitam-se mãos à obra porque a vida continua e sempre é menos dura sob o abrigo de um tecto. Até à próxima.
Sem surpresa, e como já percebemos, agora segue-se a campanha feroz contra o governo, exigem-se cabeças de ministros, sobe de tom a troca de soundbites como balas, exercita-se a caridadezinha público-privada, provavelmente teremos de assistir às repugnantes práticas de necrofilia política dos que, habituados a tratar mal os vivos jamais respeitarão os mortos.
Cem mortos e dezenas de feridos é o rescaldo provisório da hecatombe dos incêndios deste ano em Portugal. Ano após ano, fogos florestais sempre houve; mas não há memória de uma tragédia humana com esta envergadura, de uma insegurança, de um sentimento de fragilidade e de terror que se estende a todos os cidadãos que habitam no território português.
Onde havia jogos sujos de madeireiros e se apostavam grandes interesses imobiliários e florestais tornou-se este ano comum o sacrifício de vidas humanas. Salta à vista, sente-se no peito, que o País ficou desestabilizado num tempo em que, finalmente, recomeçava a olhar em frente.
Escrevi há dois meses que as circunstâncias qualitativamente diferentes dos fogos deste ano exigiam abordagens, medidas e respostas diferentes. Lembrei o caso, também único, do Verão de 1975, quando a multiplicação de incêndios, então centralizados no Alentejo, tinha como objectivo político não apenas a destruição da Reforma Agrária mas também a expansão de um clima de pânico que forçasse o país e os seus habitantes a desejarem um recuo drástico na Revolução.
E admiti a hipótese de estarmos agora perante uma desestabilizadora operação de terrorismo puro e duro, uma prática que, embora não pareça a quem se regula pela comunicação social dominante, não se cinge às malfeitorias do Daesh, nem sequer ao universo do radicalismo islâmico.
A menção ao terrorismo incomodou algumas pessoas, que logo a catalogaram na imensa pasta da «teoria da conspiração», onde afinal cabe tudo o que não corresponde às medidas autorizadas e padronizadas de análise político-militar-económica-financeira.
Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.
Figuras governamentais como o secretário de Estado da Administração Interna, mas principalmente os testemunhos doridos dos bombeiros e de serviços de protecção civil, dão-nos a certeza de que muitos dos focos de incêndio foram provocados por mãos humanas.
Nem poderia ser de outra maneira: milhares de fogos acumulados em quatro dias (grosso modo) – mais de 700 só no passado domingo – e tocando desordenadamente grande parte do território nacional, tornando insuficientes as desmultiplicações possíveis dos serviços e meios de socorro existentes, só podem ser fruto de uma estratégia coordenada movendo centenas de piões; ou então Portugal é um perigoso ninho de pirómanos adormecidos os quais, movidos por um misterioso surto epidémico, e cada um por si, decidem atear e reacender fogos praticamente ao mesmo tempo e em sítios diferentes. Só acredita nesta delirante saga hollywoodesca quem quiser.
Além disso, não há circunstâncias climáticas, por muito duras que sejam e alteradas que estejam, susceptíveis de se combinarem de forma nociva e convergente para provocarem os efeitos trágicos registados, porque se fazem sentir de maneiras diferentes em zonas distantes e diversificadas como as que foram atingidas pelos incêndios, principalmente na vaga mais recente.
«(...) o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.»
Quando se escuta o primeiro-ministro de Portugal, porém, verifica-se que não existe intenção de abordar a hecatombe dos incêndios deste ano de acordo com particularidades específicas que saltam à vista – a menos relevante das quais não é, por certo, a matança de uma centenas de cidadãos portugueses.
Para o governo, tudo continua a acontecer devido às insuficiências do ordenamento florestal, em circunstâncias que são «estruturais e não conjunturais». Isto é, a «época de incêndios» deste ano foi igual às de há cinco, dez ou vinte anos, resultante das mesmas causas, ainda que as consequências tenham sido muito diferentes e mais graves. Assim sendo, apenas conseguimos observar o Estado a fugir da definição e da denúncia de um inimigo que não olha a meios, que manipula e liquida a vida de cidadãos portugueses desde que isso sirva os seus fins.
Num país onde os serviços de espionagem se entretêm a espiolhar os cidadãos porque cada um de nós pode ser um terrorista islâmico em potência, quiçá um perigoso anti-neoliberalista, ou em que os detidos por atear incêndios são olhados como «lobos solitários», e depois quase sempre libertados, parece não haver condições para investigar o que poderá existir por detrás de cada alegado pirómano.
Ou será que os serviços de segurança e de investigação criminal não terão disponibilidade para se ocuparem de todas as possíveis pistas que possam esclarecer a morte de uma centena de portugueses? Mortes que foram assassínios, pois, segundo tantos testemunhos, houve fogos desencadeados de modo a dificultar ao máximo, ou até tornar impossíveis as operações de salvamento.
Este quadro deixa-nos a sensação de que a palavra «terrorismo» aplicada aos incendiários queima os sofisticados circuitos dos gadgets dos agentes de espionagem. Ora basta que alguém dê um piparote num bobby no Hide Park de Londres ou um sopapo num flic à entrada do Jardim das Tulherias, em Paris, para que estejamos perante atentados terroristas que dão instantaneamente a volta ao mundo e suscitam novas e cada vez mais apertadas medidas de segurança afectando comunidades inteiras; em Portugal, eventuais teias incendiárias assassinam cem pessoas e parece não haver interesse da comunidade de investigação, ou vontade política para esquadrinhar todas as circunstâncias até à mais recôndita hipótese.
As medidas de reordenamento florestal são essenciais, os pareceres científicos de uma laureada Comissão Técnica Independente serão valiosos; esses resultados, porém, seriam mais úteis e de efeito geral maximizado se acompanhados pelo despiste de todas as eventualidades criminosas, incluindo a hipótese terrorista, associadas aos incêndios em Portugal.
Se, por um acaso tão frequente por essa Europa afora, um qualquer indivíduo fizesse um telefonema reivindicando para o Daesh a autoria da vaga de fogos no território português, não faltaria quem gritasse «terrorismo, terrorismo!».
Porém, tal não aconteceu, e ainda bem: a tragédia é um acontecimento entre portugueses e qualquer manobra desse tipo criaria um ruído que nos deixaria ainda mais longe da realidade. Já é suficientemente gravoso que o Estado se exima de fazer aquilo que o mais comum dos sensos aconselharia para segurança dos portugueses: uma exaustiva investigação criminal.
A ausência de uma acção enérgica de investigação e a insistência numa gestão comum de circunstâncias recorrentes fragilizam o governo, transformam-no em bombo da festa que se põe a jeito, à mercê dos políticos sem escrúpulos que se movimentam na oposição, dos pescadores de águas turvas que medram no lodo da instabilidade, e, sem dúvida, dos que estão por detrás da estratégia incendiária.
É fartar vilanagem, com a comunicação social na dianteira, tocando a rebate, usando os mortos para disseminar recados exigindo demissões ministeriais, ou até de todo o governo. O terror, o boato e a mentira sempre foram pilares da desestabilização. Existe, porém, um facto dispensando apresentação de prova: o agravamento do fenómeno incendiário que se regista em Portugal coincide com a vigência de um governo que, além de ser uma lufada política de ar fresco, quebrou tabus, pôs em causa doutrinas manipuladoras que apodreciam a democracia portuguesa.
Um governo que, apesar das suas enormes limitações e das flagrantes tibiezas, como a situação presente demonstra, inquieta sistemas e poderes instalados, inventores de normas arbitrárias que lhes garantem privilégios por uma espécie de usucapião.
Porém, encolhido e defensivo quando teria tudo a seu favor, incluindo o apoio das populações, se optasse por uma estratégia determinada e enérgica que conduzisse ao levantamento da realidade incendiária até às últimas consequências, o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.
Vulneráveis a campanhas de propaganda sem escrúpulos, enredados numa teia de insegurança e até de terror, os portugueses poderão não perdoar ao governo os efeitos da gestão burocrática de uma situação que adquiriu uma gravidade excepcional. Entretanto, moções de censura contra o executivo entram no Parlamento; algures, por detrás da teia de «lobos solitários», os verdadeiros pirómanos terroristas agradecem as hesitações de uns, o descaramento de outros, enquanto esfregam as mãos. E continuarão a matança, até que se sintam recompensados e satisfeitos.
Ninguém o diz e menos ainda os políticos e os bombeiros, mas a verdade verdadinha é que é impossível apagar incêndios florestais. Repito em maiúsculas para dar nas vistas: É IMPOSSÍVEL APAGAR INCÊNDIOS FLORESTAIS.
Há algum exagero? Há, porque esta é a verdade em versão curta.
É evidente que se for um incendiozinho pequenino, num bosque pequenino, bem delimitado por largos aceiros, povoado de carvalhos verdes e frondosos, sem casas de habitação que exijam protecção especial, se houver um bom acesso para os carros dos bombeiros, se estes estiverem sido avisados precocemente, se houver água de acesso fácil nas imediações, o incêndio pode ser controlado e, eventualmente, até extinto.
Só que isto nunca acontece. A "floresta" em Portugal não é floresta nenhuma (com a biodiversidade que o conceito implica) mas sim uma plantação de postes de eucalipto combustíveis como paus de fósforo, plantados para benefício das celuloses e sem os cuidados mínimos para salvaguardar as pessoas, os bens ou o ambiente, não há acessos, não há aceiros, não há água, não há avisos precoces.
O que fazem os bombeiros? Rezam para que o vento amaine e não sopre daqui e sim dali, tentam proteger as casas envoltas no arvoredo em chamas, evacuam aldeias em risco, fecham estradas. De facto, tentam deixar arder com o mínimo de risco (e fazem bem) mas nem sequer há condições para fazer isto em condições, porque falta o cumprimento das consabidas regras de segurança para que o fogo não se propague excessivamente: faltam os aceiros, o perímetro de segurança em volta das casas, a margem de segurança nas estradas, etc.
Quando os jornalistas perguntam se os meios para combater o fogo foram suficientes, se são suficientes, se vão ser suficientes a única resposta possível é que não, não são e nunca podiam ser. Teríamos de ter 500 CanadAir a despejar água num só incêndio para que aquilo fizesse alguma diferença. Porque É IMPOSSÍVEL APAGAR INCÊNDIOS FLORESTAIS nestas condições. Seria preciso não uma esquadrilha de CanadAir mas um tsunami. Alguém já viu o que acontece à água lançada de um helicóptero ou de um avião? Se se tratar de uma zona de rescaldo o efeito pode ser visível, mas apenas aí. Deitar água nas fornalhas que temos visto na televisão é como borrifar uma lareira.
A única coisa possível é ordenar a floresta de forma
- que não possua tanto material combustível disponível para o primeiro raio que caia (limpeza de matas, seja qual for a técnica e a táctica)
- que arda com menos intensidade quando há um fogo (biodiversidade das florestas, outras espécies de árvores)
- que o fogo não se propague a áreas muito extensas e fique limitado (aceiros)
- que existam corpos profissionais que conheçam CADA floresta e saibam o que fazer em cada caso para controlar o fogo e onde colocar a ênfase do combate.
Continuar a vender a ideia de que o fogo se evita e se combate com mais bombeiros e mais aviões é uma tolice (se não um crime).
Júlio Machado Vaz publicou ... só.
Faleceu nesta terça-feira mais um bombeiro que ficou gravemente ferido em Tondela, no combate ao incêndio que lavrou na semana passada na serra do Caramulo.
O bombeiro estava internado no Hospital da Prelada, no Porto, desde quinta-feira. Este é o sexto bombeiro a falecer este ano no combate aos incêndios.
Segundo a agência Lusa, que cita fonte do Hospital da Prelada, Bernardo Cardoso, de 18 anos, da corporação de Carregal do Sal, morreu ao início da noite desta terça-feira, depois de ter sofrido graves queimaduras, falência multiorgânica e “danos irreversíveis na via aérea".
O jovem, que ficou com queimaduras em 55% do corpo, estava em estado muito grave desde quinta-feira passada (29 de Agosto), dia em que, no mesmo incêndio (em São Marcos/Muna, na Serra do Caramulo), morreu a bombeira Cátia Pereira Dias, de 21 anos, e um terceiro bombeiro ficou ferido com gravidade.
A notícia da morte de Cátia Pereira Dias foi conhecida enquanto se realizava o funeral de Bernardo Figueiredo, de 23 anos, da corporação do Estoril (Cascais,) que não resistiu a ferimentos graves resultantes de outro incêndio também no concelho de Tondela.
Na Serra do Caramulo morreu ainda, no dia 22 de agosto, a jovem Ana Rita Pereira, de 24 anos, pertencente à corporação de Alcabideche (Cascais).
No mês passado morreram também António Nuno Ferreira, de 45 anos, operador de central no quartel dos bombeiros de Miranda do Douro, e Pedro Rodrigues, de 40 anos, que combatia um incêndio no concelho da Covilhã.
Na segunda-feira, fonte do Hospital da Prelada referiu que o prognóstico do outro bombeiro internado na unidade – Daniel Falcão, de 25 anos, operacional de Miranda do Douro – evoluiu de muito reservado para reservado. O homem mantém-se, no entanto, numa “situação grave”, depois de ter dado entrada com 70% a 80% do corpo queimado.
Também na segunda-feira, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra informou que o estado clínico dos cinco bombeiros ali internados se mantém complicado para três deles – um, com 50 anos e transferido do Hospital de Braga, com prognóstico “muito reservado”, e os outros dois com prognóstico “reservado”.
Nesta condição estão um operacional de 45 anos, proveniente de Bragança, e outro de 62 anos, oriundo da Figueira da Foz.
Só em Agosto, arderam 72.284 hectares de floresta e mato, uma área mais de três vezes superior à que ardeu nos restantes meses deste ano. E as últimas duas semanas foram as mais negras: de 16 a 31 de Agosto, arderam cerca de 63 mil hectares, mais do que o dobro da área ardida até 15 de Agosto.
Até à segunda quinzena de Agosto os incêndios florestais tinham consumido cerca de 31 mil hectares.
Segundo o mais recente relatório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) sobre os incêndios, desde o início do ano até 31 de Agosto, arderam 94.155 hectares, mais 25% do que em igual período de 2012. Mais de três quartos desta área (77%) arderam em Agosto, mês em que se registaram 7283 ocorrências (cerca de 52% do total até à data), um valor bastante acima da média dos últimos dez anos para este mês: 5467.
Público
Declarações de Rafael Rodrigues, ex-comandante de bombeiros, sobre a morte de bombeiros no combate aos incêndios florestais dos últimos dias
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Porto é melhor que Benfica, isto é uma prova clara
Magnífica verdade,"[...] que viver dos outros impl...
Obrigada! Texto maravilhoso a ler e reler! Desde p...
Muito interessante este texto do Raul Brandão. Que...
Desculpe, mas isto é demasiado grande para ser o c...