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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Augusta Clara de Matos Tão cosmopolitas que eles são
Porque é que as cidades não podem ter bairros antigos com gente lá dentro?
Como é que uma vereação socialista cede à explosão da especulação imobiliária que está aí outra vez sem ter nada a ver com isso? Só pelo turismo? Não acredito.
As cidades têm de preservar a sua história e essa opção, por si só, potencia o turismo, regula-o e educa-o não permitindo que, a pretexto da entrada de divisas, hordas invadam desenfreadamente as ruelas e os bairros mais antigos cuja população, na sua maioria, envelhecida e pobre merece viver em paz os anos tardios das suas vidas.
Eu sei que os cosmopolitas de pacotilha que por aí abundam consideram quem tem esta opinião um careta que “não tem mundo”, não está aberto ao futuro, etc., etc. etc. Mas cosmopolitismo, na minha opinião, exige inteligência e gosto estético.
Ninguém nega que as cidades têm de evoluir, como tudo na vida e Lisboa já tem uma cidade nova na zona oriental. É pena que seja mais um amontoado de arranha-céus, muitos só ao alcance de detentores de vistos gold, e não se tenha aproveitado para praticar uma arquitectura arrojada mas bela como Óscar Niemeyer fez com Brasília,
Voltando aos bairros antigos do centro: para que serve uma autarquia que, em vez de recuperar as casas, interior e exteriormente, deixando em paz os seus habitantes, tratar dos pavimentos das ruas e preservar as características desses bairros também protegendo o seu património comercial e cultural – em Lisboa, têm desaparecido muitas lojas de qualidade, os cafés, os cinemas, as livrarias - aceita com toda a desfaçatez que “vem aí uma epidemia de despejos” como se fatalmente não tivesse nenhum poder na cidade?
Tenho ouvido dizer a alguns arquitectos que a sua arte tem muito a ver com o bem-estar das pessoas. Pois, por aqui, tudo se está a passar ao contrário.
Amigos cosmopolitas, olhem lá para isto com olhos de ver, sem preconceitos de “p’ra frentex”.
Jorge Silva Melo No futuro dos mortos
Público, 26 de Janeiro de 2002
Há quem tema trovoadas, dentistas, gatos pretos. Eu receio é arquitectos (excepto o Pedro Borges, meu amigo)!
Passo pela Gare do Oriente e só penso em como, daqui a 30 anos, haverá gigantesco surto de pneumonia, desço a horrenda escada branca do auditório de Serralves e só penso nas pernas e braços a engessar (com gesso marca Siza?) Vejo como destruíram o palco excepcional do Tivoli e penso no que farão ao Trindade, ao São Luiz, mal seja dada a municipal ordem de restauro. Vejo um futuro desabrigado, exposto a correntes de ar, inseguro, frágil, entre monumentos sem acústica possível. O papel selado, símbolo esquecido do poder, passou à marca do arquitecto, nova mercadoria.
Vivo por entre o que quiseram os arquitectos do salazarismo, moro num daqueles Cassiano Branco de risco-ao-meio (o meu é melhorzinho porque de gaveto e em terreno muito acidentado, o que obrigou o Mestre do Pré-Arquitectado a corrigir o modelo), num bairro (ao pé do Jardim das Amoreiras) que desenhou o que sonhavam os jacobinos do que seria a vida operária e acabou por ser, nos anos 30, a Nova Judiaria, fazendo cruzar pelas ruas os estrangeirados sotaques dos que fugiam a Berlim ou Varsóvia.... Setenta anos depois, a sociedade para que foi construído este primeiro-direito, arrumada em quartos interiores, marquises, uma sala de visitas e outra de jantar, dispensa, copa — nada disso existe. E aqueço a carne assada desobedecendo à sua ordem. Porque a vida não fica presa pelas paredes imaginadas para uma sociedade que logo a seguir se desfez.
É essa a maldição que pesa sobre os arquitectos: obedecer à encomenda é necessariamente condicionar o futuro (prendê-lo ao passado).
Um dos mais estrepitosos exemplos será o do Cine-teatro Crisfal em Portalegre, faustoso edifício inaugurado por Amélia Rey Colaço para cimentar uma cidade burguesa depois do sangrento esmagamento das revoltas operárias dos anos 50. É um feíssimo casarão que supunha que o cinema continuaria a ser com Charleton Heston, que o teatro seria sempre a Laura, que as famílias salazaristas não iriam água abaixo
Vivemos no futuro que esses mortos nos ditaram, os malandros que não queriam que mudássemos de vida nem de cinema nem de esposa. Mas mudámos.
Por isso, hoje, que páro na rua de S. Francisco Xavier e me sento num dos modestos cafés deste Centro Comercial do Restelo, não posso deixar de, realmente recolhido, me comover. Em 1956 — e foi de cinza e bréu esse antes-Delgado —-, um arquitecto sensível, dotado, culto, exigente e inteligente (Raúl Chorão Ramalho que morreu a 9 de Janeiro, com 88 anos) deixou-me uma rua doce, pensada em que habitação, passeios e lojas se conjugam, em que ventos se acalmam, num suave deslizar que não chega mas vai em direcção ao rio. Está deteriorado o centro, alguns dos andares abandonados, há vidros partidos, as drogarias e mercearias estendem os seus bens passeio fora naquela terna miséria de tanta loja desta cidade. Mas era uma cidade assim desempoeirada, luminosa, não imponente, discreta, a cidade em que eu gostava de viver. Desta aposta maravilhosa de Chorão Ramalho nada transbordou para o resto de Lisboa nos cinquenta anos que se lhe seguiram. Mas hoje, em que aqui vejo uma bátega de água através da vidraça, agradeço ao arquitecto a “hipótese de cidade" que nesta ruazinha me deixou.
E penso na Violeta que segunda-feira fará nove anos: em que Lisboa viverá? Para que Violeta estarão os arquitectos a condicionar a vida? Que fará ela da pala do Siza, do novo estádio de Braga? Terá casas para amar ou para ela só deixamos propaganda, imponência, arquitectura de aparato tão ligada ao poder terreno como acusamos a Igreja de ter estado sempre?
(in Século Passado, Cotovia)
(fotografia de Jorge Azevedo)
(Outras fotografias de "Lisboa é poesia" e autor desconhecido)
Eu era pequeno quando vivia numa aldeia do Norte. E admirava-me com o incompreensível esmero posto pela minha tia-avó nas encomendas que periodicamente enviava para Lisboa, para uma tal Exma. Senhora Dona Angela. Não existia retrato desta senhora que os mais idosos diziam ser tão distinta quanto velha. Mas lembro-me que a tia escolhia para ela as inesperadas maçãs de São João. Os figos temporãos. As primeiras uvas. Os melhores enchidos. Para a minha imaginação infantil, aquela Senhora, que preenchia os envelopes com elegante e avantajada caligrafia à pena e persistia em indicar no endereço o caminho do correio via Corgo, há décadas substituído por outro curso, era a imagem de Lisboa. Imaginava-a vivendo na Torre de Belém ou no Castelo de São Jorge e o aqueduto das Águas Livres, que vinha no livro da escola, levava, com certeza, a água à sua fonte. Ela era certamente a irmã ou a mulher de Salazar.
Recebida, em Lisboa, a encomenda, logo respondia a Dona Angela retribuindo com revistas brasileiras, números atrasados do Cruzeiro ou da Manchete, alguns jornais e pequenos objectos cuja utilidade se ignorava, deixando, por isso, perplexa a minha velha tia, enquanto os miúdos iam folheando, cuidadosamente, as revistas brasileiras, mirando as coxas do carnaval e acabando por saber pelos ultrapassados jornais que o homem tinha descido na Lua. Os tempos mudam muito?
Em Lisboa sabemos muito pouco das terras que nos rodeiam, contentes que andamos por termos um rio largo com manias de mar, com um Governo que ordena à nossa beira. Com altas torres que não param de crescer. Com o imbricado de ruas que desaguam em outras ruas e estas em praças que abrem para novas ruas. E nós, que não vemos o fim desta teia, julgamo-nos inconscientemente num mundo infindável, esclarecido por uma televisão, jornais e rádios que também estão logo aqui, ao nosso lado. Tudo nos parece fácil e acessível e, por isso, o lisboeta ganhou a sua pequena sobranceria e o mando de quem guarda ainda a sobrepeliz do império. Para muitos alfacinhas há um país de cócoras à sua volta, ligados pelos fios por onde circulam a voz e o ditame da capital. Não foi assim em Outubro de 1910?
Agora, digo-te eu, Lisboa é indiscutivelmente uma cidade bela. Mais de um mês fora e morre-se de saudades. Mas esta cidade, perdido o Cais da Ribeira, vai perdendo o seu Rossio. O seu Centro. Os seus jardins. O seu «cheira bem», levando com a maior desfaçatez os seus filhos do Passeio Público e dos cafés para as bafientas caves dos centros comerciais. É uma tristeza! E assistimos indiferentes, impotentes e revoltados à destruição da cidade. O destino de Lisboa é ser cada vez mais uma cidade internacional, menor entre as maiores, vendida que vai sendo aos estrangeiros.
Lisboa precisa, mais do que nunca, de estímulo e de ligação ao restante país. Os lisboetas que não têm alguém por esse Portugal fora, sofrem de desenraizamento. Os bairros de Lisboa são bonitos como o são as suas casas. Mas o lisboeta não apaga a nostalgia dos velhos soalhos de castanho. Dos móveis sucessivamente herdados. A luz de interior das clarabóias do Norte. As longas tardes de Verão presas à cal dos montes do Sul. O verde e o azul das Ilhas rodeadas de vozes marinhas. E nas casas? As velhas fotografias dos antepassados barbudos, de chapéu e gravata mal amanhada e olhar firme, em cima das cómodas ou das cristaleiras, ao lado de Cristos a quem o tempo apagou as chagas, relicários, flores secas com o perfume antigo batido pelo interminável tique-tique de grandes relógios de pêndulo, vindos desde o princípio do tempo...
O lisboeta tem remorsos por sentir que a natureza e o tempo circular pertencem à província e, por eles, uma grande parte do Universo. Ele sabe que agora, nos fins do Verão, abóboras grandes e amarelas brilham nos telhados. Cheira a alfazema e a feno. E os fumos que se levantam nos lameiros misturados de neblinas dizem pelos campos que o Verão se vai... E então o lisboeta corre a ler Cesário e Caeiro enquanto o sol escorre baço pelos vidros das Amoreiras. Mas se te escrevo é porque nos falta uma outra parte. Falta-nos a tua voz. Se não escreveres, nunca mais digas que Lisboa tem a mania que sabe, que manda e te abafa a expressão.
(in K, n.° I, Outubro 1990)
Mário de Carvalho A velha Lisboa, que bom percorrê-la
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Texto e foto deliciosos, parabéns!
Palavras como dinamite.E passados 50 anos sobre os...
Lindo!
Um testemunho enternecedor.Eva
Grande texto que nos faz refletir... Muito!