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Jardim das Delícias


Sexta-feira, 15.07.22

Ontem à noite…quem diria - Adão Cruz

ao cair da tarde 5b.jpg

 

Adão Cruz  Ontem à noite…quem diria

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(Manel Cruz)

A poesia era o espaço entre a inocência e o dia
uma espécie de alforria
redimindo à boca da sorte
o silêncio de mil noites.
Vago sentimento de uma consciência acordada
pelo gemido do vento
poesia real fundida e refundida
sensual e nua.
A vítima que há dentro de nós
procura sempre o amor
na densidade dos processos
na empatia do sofrimento.
Nada mais relativo-magnético do que o sofrimento
movimento de tudo
senhor do silêncio vivo que arde dentro do poeta.
A poesia distorce a relação com a vida
e abraça o sonho parasita do amor verdadeiro
e cada um tem dos restos de si próprio
a elegante ideia de uma identidade interior.
A poesia é assim…ontem à noite... quem diria.

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por Augusta Clara às 19:22

Sábado, 26.06.21

Preso à cidade - Adão Cruz

a noite fez-se para amar 1a.jpg

 

Adão Cruz  Preso à cidade

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(fotografia de Manel Cruz)

 

Preso à cidade
nesta inquietante angústia das sombras
ao redor de um tudo-nada que nos prende e constrange
cai dos telhados o pó cinzento de uma neblina estranha
que definha as ruas e arrasta as horas na lentidão dos passos.
Lá atrás
uma réstia de luz presa ao vidro de um candeeiro partido
sob as janelas podres
lembra que se alma houvesse
seria fácil presa de um qualquer rígido corpo
enjoado de farsas e falácias amontoadas no lixo.
A noite caiu de forma estranha sobre a cidade sem corpo
definhada de luz e consciência
deixando atrás de si os últimos passos de uma existência
presa a todas as obscurantistas ordens estabelecidas.
Até o vento se foi
para não arrastar a neblina estranha
e para não calar o pesado silêncio que se prende ao corpo
como mortalha do tempo que desfaz a réstia de luz
presa ao vidro de um qualquer candeeiro partido.
Ainda ontem era dia nos braços do trabalho
e nas carnes que não conheciam o exílio
recusando morrer fora dos sonhos e da vida
e o vento varria o silêncio
para libertar o corpo e a mente
da neblina das noites pegajosas.
Havia certezas por entre os tremores da indecisão
havia sorrisos verdades e ilusões
e havia brisas sonâmbulas calando os medos
e havia rios arrastando as paredes negras
e todas as sombras dos candeeiros partidos.
Preso à cidade
na tristeza que nos envolve e nos liberta o pensamento
cai dos telhados a poeira do tempo
que cala as ruas e prende as horas na lentidão dos passos
e abre no chão quadriculado um espelho negro
com um menino tocando o céu azul
rodeado de pássaros e flores e rios cristalinos
e nos estende a mão num gesto de paz que nos acalma e nos perdoa
e carinhosamente
e sigilosamente
nos devolve ao nada por um caminho oculto
irreversível.

 

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por Augusta Clara às 23:38

Quarta-feira, 29.04.20

Já não entendo este mundo - Adão Cruz

o balanço das folhas3.jpg

 

Adão Cruz  Já não entendo este mundo

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(MANEL CRUZ)

 

Não entendo este mundo moribundo
este mundo escuro
nascido sem sol e sem luar
já não entendo esta onda de sismos e cifrões
esta dor de milhões de cabeças rolando como esferas
para o fundo dos abismos.
Não entendo este mundo dilacerado e sem vida
já não aguento este frio de quatro paredes
este jogo no vazio cemitério da história
este profundo alarido
este diabólico mistério de morte concebido
esta vida sem sentido a que chama mercado
e “democracia”
a argentária escória.
Não entendo este mundo de olhos vendados
com barras de ferro
este silêncio absorto e abstracto
no assalto impune a soberanas nações
este mundo de vidas e almas sem direitos nem justiça
este mar de sangue escorrendo
pelas garras dos algozes
este rasgar de corações
este martírio dolorosamente tatuado na pele dos inocentes
por tanques e aviões
este mundo ameaçado por mísseis e canhões.
já não entendo tantas metástases
deste cancro da guerra
este perigo sistémico diariamente arquitectado
esta inelutável evolução para a desordem suprema.
Já não sou capaz de aguentar
o peso do crime chamado superlucro
brilhando como a luz do inferno na ponta dos punhais.
Não entendo este mundo
escorraçado para as bermas da fome
por esta infame corrida para um podium inglório
por entre as malhas da ganância enlouquecida
neste imparável caminho do caos e da fatalidade
na ensanguentada bandeira erguida para o nada
no constante apunhalar da liberdade.
Já não entendo este mundo apodrecido
na secura do grande rio da esperança.
Já não acredito no sonho do poeta
quando subiu a colina
para admirar o céu povoado de estrelas.

 

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por Augusta Clara às 22:16

Quinta-feira, 16.04.20

A morte do poeta - Adão Cruz

ao cair da tarde 5b.jpg

 

Adão Cruz  A morte do poeta

entre merda e mara vilha.jpg

(desenho de Manel Cruz)

O dilema entre o silêncio e a palavra

invade a lógica discursiva

que há no ridículo do poema.

Quem tudo vê e nada sabe

ou é poeta

ou patético peregrino

da teatral mentira que emoldura a poesia

mascarada nos buracos negros das palavras.

Morre a razão e a mente

no espaço vazio do poeta

engolido nas areias movediças

da estupidez do verso. 

Nasce a poesia

na semântica farsa das palavras

escondida nos simbolísticos restos do dilema

entre o silêncio do mundo

caído em pedaços

ou erguido nos absurdos de um poema.

Ninguém conhece a metáfora

da verdade e da mentira

só o poeta

na sua indomável vertigem da ilusão

descobrindo a poesia

nos avessos da razão.

Morre o poeta em suas manhãs de pedra e gelo

entre a verdade da mentira e a mentira da verdade

e todos lhe cobrem o corpo

com lençóis de sedução

no primeiro e último poema

do silêncio e da razão.

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por Augusta Clara às 15:25

Segunda-feira, 24.07.17

Não ando muito de escritas,... - Marcos Cruz

ao cair da tarde 5b.jpg

 

Marcos Cruz  Não ando muito de escritas,...

 

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(actuação de Manel Cruz em Amarante, 23 Julho 2017)

   Não ando muito de escritas, há fases assim, mas até por me ser improvável gostava de rasgar este interregno com um testemunho sobre o momento artístico do meu irmão, Manel Cruz. Durante 16 anos, mais coisa menos coisa, cobri a cultura aqui a Norte pelo Diário de Notícias, tendo o início desse ciclo coincidido com o aparecimento dos Ornatos, a que nunca pude, como parte interessada que me reconhecia, dar atenção jornalística. Atravessei então toda a vida dessa primeira banda na qualidade de irmão, um privilégio, julgo eu, em face do que senti. Foram muitos momentos de arrepio, entre concertos incríveis, muito bons, bons, menos bons e até maus, foi um curso de emoções. Aquilo acabou, não interessa agora revisitar os porquês, e cada um deles, mais cedo ou mais tarde, se fez ao caminho. O Manel criou os Pluto, os Supernada, o Foge Foge Bandido e, após ter-se experimentado de forma diversa em todos esses projectos, assumiu-se finalmente em nome próprio. Não que andasse à procura de um novo registo onde pudesse fincar bandeira, isso não é, nunca foi e arrisco dizer que nunca será a cara do Manel. Tenho algum pudor neste tipo de discurso quando falo do meu mano, mas porque o amor é forte e ontem me emocionei vou deixar sair: o Manel é um artista. Um puto dum artista. Um gajo corajoso, bom, verdadeiro, que não desiste de lutar por aquilo em que acredita. Há poucos assim – eu, como ele, não conheço.

Para que não descambe aqui em lamechices, fico-me pela partilha de um texto que lhe enviei há uns meses e de que me lembrei ontem, com um sorriso na cara, a ver o concerto. E desculpem o tom de tudo isto.

"Pediu-me o Manel para escrever umas linhas sobre ele, por ser esse um palco a que não gosta de subir. O pudor da autorreferência sempre caracterizou o meu irmão, o que encerra um paradoxo interessante, na medida em que se há música reveladora da pessoa que a faz é a dele. Se recuar à nossa infância consigo vê-lo outra vez a brincar com os bonecos, empreendendo lutas, diálogos, celebrações e sonhos como quem constrói o seu próprio mundo. O desenho, que apareceu mais tarde, e a música, depois ainda, obedeceram à mesma pulsão: criar ilusões. Acontece que quando se é criança nos legitimam o espaço ilusório e, assim, mesmo brincando sozinhos estamos com os outros, somos o que é suposto sermos. Crescer implica, de certo modo, aceitar que há uma realidade, um planeta, mas a violência desse processo depende do que cada um de nós vai deixando em planetas anteriores. Ora, eu acredito que o Manel, tendo comprovadamente crescido e sustentado a sua residência neste chão, sente muitas vezes saudades das migalhas que de si foram voando pelo “existido”, como ele dizia quando era pequeno. Talvez, então, a arte seja para ele, entre os modelos de actividade que o planeta compreende, mais do que uma escolha, uma inevitabilidade. A nave onde rasga o universo à procura dos bonecos perdidos, dos desenhos perdidos, dos versos perdidos, das melodias perdidas, na esperança que não se lhe apaga de os poder vir a reunir, outra vez, lá mais à frente, e acabar a vida como a começou: brincando sozinho, com todos."

 

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por Augusta Clara às 15:49

Sexta-feira, 25.09.15

"Maravilhosa lição de filosofia de vida do Manel Cruz" - Adão Cruz

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 Porto Olhos nos Olhos (facebook), 23 de Setembro de 2015

 

[Manel Cruz - Músico e artista plástico] © Por Manuel Roberto (fotografia) e Mariana Correia Pinto (texto) Portugal, Porto, 23 de Setembro de 2015

 

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 (Foto de Porto Olhos nos Olhos)

 

   “As primeiras memórias que tenho são coladas pelos filmes Super-8 que o meu pai tinha. Nasci em 74, em São João da Madeira, e as lembranças que tenho de lá são reconstruídas assim, porque vim para o Porto muito cedo. Tinha dois anos. Fui o último de três filhos. O meu pai é médico, a minha mãe professora. Ele começou por praticar medicina na aldeia, onde os recursos eram muito limitados e onde, também pela profissão, era uma pessoa muito querida. Sempre gostou de poesia. Esteve na Guiné e documentava muito as vivências dele através da escrita. Pelos 30 anos, começou também a pintar. Teve sempre muita ligação às artes e quando sentiu que eu também tinha puxou-me muito para aí. A minha mãe, sendo professora, tinha também relações sociais fortes e um lado pedagógico muito premente. Havia uma abertura considerável para esse mundo — apesar de serem tempos de ressaca de ditadura. Os meus irmãos tinham boas notas, eu andava sempre na lua, só tinha boas notas a educação visual e educação física. Também por ter sido o terceiro e ter, por isso, mais liberdade. Puseram-me no piano quando era puto e detestei. Tinha de estudar e só queria fazer as coisas de ouvido. A professora batia-me nas mãos. Para mim, música eram os discos dos meus pais e dos meus irmãos — desde Jacques Brel passando pelos Beatles e Sérgio Godinho. Havia muita música portuguesa em casa e, talvez por isso, nunca tenha sequer pensado em escrever e cantar em inglês. De resto, estava sempre a desenhar. Até aos 15 anos, os meus cadernos de escola eram essencialmente desenhos. A música surge já na Soares dos Reis, quando conheci os meus amigos. Talvez por isso a música continue ainda hoje a ser um bocadinho esse sítio onde se brinca com os amigos. Profissionalizei-me, mas continuo a sentir alguma luta em relação à profissionalização. Isso no desenho não me é tão difícil porque desde puto que me pediam coisas. Aos 15 anos já trabalhava e já fazia livros para crianças. Era uma coisa muito natural vender aquele produto. Com a música isso custou mais. Na escola, mostraram-me os Violent Femmes e fiquei louco com aquilo! Depois foi aquela coisa do ‘também temos de ter uma banda’. Todas começam assim: a brincar às bandas. Discutíamos sobre quem ia fazer o quê. E eu nem ia cantar. Era guitarra ritmo. Decidimos que o Kinörm ia tocar bateria, porque o Peixe já sabia tocar guitarra e o Nuno já dava uns toques de baixo. E eu não sabia fazer nada. Aprendi uns acordes e fiquei maluco. Fiz logo duas ou três músicas com os acordes das Dunas e então fiquei o guitarra ritmo. Aí comecei a dedicar mais tempo à música, o que foi um sacrilégio na família. O meu pai apoiava-me muito no desenho e tinha um orgulho imenso — e a música era uma vontade meio irresponsável de puto. Foi um choque para ele. Fiz o secundário todo na Soares dos Reis e foi ainda lá que iniciámos os Ornatos Violeta. Em 1991. Tínhamos o nosso clube de namoradas e amigos que nos aturava e éramos nós que fazíamos o nosso sucesso: éramos uma banda incrível que ninguém conhecia. Tínhamos uma data de músicas, depois deitávamos tudo fora, fazíamos outras... Fomos num intercâmbio para Montpellier, onde conhecemos os Red Wings Mosquito Stings, uma banda de lá, incrível. Conheci o Nico, que veio viver para Portugal e agora está a tocar comigo. Mais uma vez, deitamos tudo fora porque olhávamos para o trabalho deles e era incrível. Eles ensaiavam todos os dias, eram super dedicados. Nós, pelo contrário, éramos uns baldas. Fomos para a Carvoeira, para a casa do meu pai. Para um sítio onde quase não nos podíamos mexer e não tinha ar: de 40 em 40 minutos tínhamos de abrir a porta. Mas ensaiávamos todos os dias para fazer o ‘Cão’. O disco saiu em 97. E foi aí que os Ornatos se tornaram mais conhecidos. No Porto, já havia algum pessoal que nos curtia antes, mas só depois a coisa se alastrou. Começamos a ter produtor, a olhar para certos aspectos mais profissionais que nos fizeram dar novos passos. A parte má é que se perdeu alguma da inocência que se tinha e de que gostava muito. O ‘Cão’ marca esse momento de mediatização. Mas mesmo assim acho que só ficamos mesmo mesmo conhecidos depois de acabarmos. Tivemos o grande ano imediatamente antes disso. Foram uns 60 concertos só nesse ano — e podiam ter sido mais. Mas sentia-me um ácido ambulante de andar sempre na estrada e não gostava da repetição. Às vezes, entrava em palco e não me apetecia estar lá. Paralelamente ao nosso crescimento como pessoas, foram acontecendo discussões sobre as autorias das músicas e outras que colocavam muita coisa em jogo. Coisas que rapidamente se resolviam, mas que, no momento, eram complicadas. O que me inspira é um pouco de tudo. Sentimentos que tenho em determinados momentos e depois reciclo. O próprio processo é, para mim, muito inspirador. Uma parte grande das ideias que tive apareceram quando estava a fazer trabalhos mais técnicos, como ilustrações para livros infantis. Uma coisa que sempre fui é um questionador. Não consigo ver a minha identidade marcada. Sou inconstante, insatisfeito, inquieto. Qualquer coisa que faço, passado uma semana parece-me completamente afastada do que quero fazer. Portanto, a inspiração surge sobretudo dessa inquietação. O Hugo, irmão da minha mulher, disse-me uma vez que o disco ‘O Monstro precisa de amigos’ era Porto Porto Porto. Fiquei super contente, porque adoro esta cidade e adoro que uma coisa minha faça lembrar o Porto. Não escrevo letras sobre. Mas a melancolia e a maneira de pensar do Porto — que não é uma cidade grande mas é uma grande cidade —, a forma como as pessoas se relacionam, o facto de os sítios serem mais nossos do que do mapa: acho que isso está inevitavelmente presente nas minhas músicas. Para mim, o fim dos Ornatos foi um alívio muito grande. As coisas já não estavam a ser vividas com o prazer que deve existir. E aquele fim abriu-me a porta para fazer novas coisas, inclusive com as pessoas com quem fazia os Ornatos e com as quais tenho uma química tremenda que dificilmente se ganha com outras, porque está associado à virgindade da cassete. As coisas que foram impressas com eles são muito fortes. Portanto, com aquela saída pude partir do zero. Uma das coisas mais difíceis das bandas é a expectativa que os outros criam em relação ao que fazemos e, acima de tudo, a expectativa que projectámos sobre aquilo que as pessoas pensam de nós. Quando os Ornatos acabaram, pude também ver o outro lado: pessoas que me davam palmadinhas nas costas e diziam que era muito bom, de repente já não gostavam assim tanto. Um dia, tive uma conversa com o Kiko Serrano, o produtor, no Hard Club por causa da minha depressão à conta do fim da banda. Sentia nas minhas costas um grande peso, porque muita gente achava que era eu o complicado que queria terminar. Sentia-me um respigador com o casaco cheio de tralha que não conseguia dispensar. Nessa conversa, estava eu a lamentar-me quando o Kiko me diz: ‘Caga nisso, isto foi a melhor coisa que te aconteceu. Parte para coisas novas.’ Finalmente tudo o que queria ouvir. Comecei, nessa fase, a mexer no computador. Já tinha tido um gravador de pistas, mas poder gravar tudo era magia absoluta. E não havia aquela coisa de expectativa. Foi aí o começo do Bandido. Ainda tive os Pluto e os SuperNada, os dois iniciados em 2002, e foram casos tão fixes que muita gente me pergunta porque acabaram. É precisamente porque acontece um fenómeno de as pessoas gravarem um disco, irem tocar e depois ficarem um período enorme sem fazer música. Não gosto disso. O pessoal gosta muito de tocar ao vivo — coisa que eu gosto muito de fazer mas não gosto de fazer muito. O que me move é a parte de criar. Isso desmotivou-me um pouco para as bandas. E depois o ciclo normal: um gajo cresce, começa a ter casa, família, filhos. Comecei a sentir que, quer quisesse quer não, influenciava a vida de outros. E essa pressão é desconfortável. Preferia o descompromisso. Como o que existe neste projecto Estação de Serviço, onde tenho músicas minhas e algumas dos SuperNada e dos Pluto, feitas sozinho ou com outros. Estava há uns tempos sem tocar — depois do disco dos SuperNada, parido com ventosas — quando se dá o regresso dos Ornatos, em 2012. Era uma coisa muito irreal para mim no início, mas acabou por ser fantástica. Depois desse ano intenso, voltei ao silêncio. O Jorge Guerra e Paz — que tem um dom de me convencer incompreensível—, falou-me de um projecto no Silo-Auto e convidou-me para ir lá tocar. No fim de 2014 lá fomos. Ficou aquele trabalho todo que tinha soado bem. Então, decidimos continuar e fazer uma coisa. Mas com princípio, meio e fim. O fim é Setembro. Fiz a música do Ovo e agradou-me muito aquela ideia de fazer a música, gravá-la num sítio e aquilo ficar editado assim. Fazer e disponibilizar, sem necessidade de fazer um disco. Foi um tubo de ensaio para novas maneiras de fazer as coisas. Acima de tudo, o que pus de novo nesse concerto e no projecto Estação de Serviço foram coisas com uma estética um bocadinho diferente, muito mais minimal, a ir beber à portugalidade. Aquela coisa das rezinhas e das mnemónicas, pelas quais ando muito apaixonado. Não numa perspectiva de investigação de raízes de música popular, mas numa de deixar que saia essa inspiração. O que se segue não é uma banda. Duvido que algum dia venha a ter outra banda — pelo menos naquele sentido de ‘casa’ e ‘família’. As bandas têm coisas muito boas e, às vezes, ainda sonho: e se fizesse uma agora? Mas percebo que é quase um vício infantil. A minha vontade agora, sinceramente, é inverter as coisas: ganhar dinheiro com o desenho e ver a música noutra perspectiva. Se calhar, fazer bandas sonoras ou spots. Pegar em valências e fazer coisas para clientes. Esta ideia de ser vendido é um equívoco tremendo na cabeça de muita gente e ninguém sabe explicar muito bem o que significa. Sempre me senti um vendido, porque sempre vendi o que faço — e isso não me faz confusão nenhuma. Só nos vendemos a nós quando contrariamos a nossa essência e vendemos a nossa dignidade. Agora que tenho filhos penso bastante mais no futuro. Tendo sido sempre um irresponsável do caraças, agora começo mesmo a pensar. Provavelmente, vou continuar a fazer música — umas vinte num ano ou dois — e depois, como as tenho, farei outra fornada de concertos... Sei lá. Se tivesse de apostar, acho que diria que a minha vida vai ser sempre igual ao que foi. Em Portugal, é urgente as pessoas pensarem que votar é a primeira oportunidade que temos de mudar as coisas. E não deixar que o facto de o voto não resolver tudo nos leve a desistir. Votar é um direito. Mais do que um dever — porque acho que ninguém tem deveres. E não acredito que os partidos sejam todos iguais. Apesar de ser um bocado bicho do buraco, de não ter Facebook e ter imensa dificuldade em gerir o e-mail, tenho consciência de que, culturalmente, tem acontecido muita coisa no Porto. E que muita me passa ao lado. A sensação que tenho é a de que vivemos um bom momento criativo, de grande consciência do que se passa lá fora, com grande comunicação com o mundo. O tempo de absorção é muito rápido, mas antes a mais do que a menos. Um sinal de futuro pode ser precisamente o de as pessoas deixarem de ter a angustia de não apanharem tudo. O facto de acontecer muita coisa é sinal de que há meios para tal. As pessoas podem gravar e editar sem uma editora, um produtor ou um orçamento de uma multi-nacional. Há muito espaço para a criatividade. No fundo, está a cumprir-se um pouco uma crença que tinha de que a arte não é exclusiva dos profissionais da arte e das elites. E essa é uma democracia que me agrada.”

 

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por Augusta Clara às 08:00

Quinta-feira, 16.10.14

Capitão Romance - Ornatos Violeta

a noite fez-se para amar 1a.jpg

 

Ornatos Violeta  Capitão Romance

(e Parabéns ao Manel Cruz)

 

 

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por Augusta Clara às 21:00

Quarta-feira, 25.06.14

Preso à cidade - Adão Cruz

 

Adão Cruz  Preso à cidade

 

(fotografia de Manel Cruz)

 

 

 

Preso à cidade nesta inquietante angústia das sombras ao redor de um tudo-nada que nos prende e constrange cai dos telhados o pó cinzento de uma neblina estranha que definha as ruas e arrasta as horas na lentidão dos passos.

 

Lá atrás uma réstia de luz presa ao vidro de um candeeiro partido sob as janelas podres lembra que se alma houvesse seria presa fácil de um qualquer rígido corpo enjoado de farsas e falácias amontoadas no lixo ao longo das ruas.

 

A noite caiu de forma estranha sobre a cidade sem corpo definhada de luz e consciência deixando atrás de si os últimos passos de uma existência presa a todas as obscurantistas ordens estabelecidas.

 

Até o vento se foi para não arrastar a neblina estranha e para não incomodar o pesado silêncio que se prende ao corpo e às paredes como mortalha do tempo e pegajoso crude que desfaz essa réstia de luz presa ao vidro de um qualquer candeeiro partido.

 

Ainda ontem era dia nos braços repartidos do trabalho e nas carnes que não conheciam o exílio recusando morrer fora dos sonhos e da vida no meio da tempestade e o vento varria o silêncio para libertar o corpo e a mente da neblina estranha das noites pegajosas.

 

Havia certezas por entre os tremores da indecisão havia sorrisos verdades e ilusões e havia brisas sonâmbulas calando os medos e no fundo do silêncio corriam rios arrastando as paredes negras e todas as sombras dos candeeiros partidos.

 

Preso à cidade na tristeza das sombras que nos envolvem e nos libertam por momentos o pensamento cai dos telhados a poeira do tempo que cala as ruas e prende as horas na lentidão dos passos e abre no chão quadriculado um espelho negro com um menino tocando o céu azul rodeado de pássaros e flores e rios cristalinos e nos estende a mão num gesto de paz que nos acalma e nos perdoa e carinhosamente e sigilosamente nos devolve ao nada por um caminho celular oculto irrepetível.

 

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por Augusta Clara às 18:00

Terça-feira, 22.04.14

Ovo - Manel Cruz

 

Manel Cruz  Ovo

 

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por Augusta Clara às 20:05

Quarta-feira, 21.08.13

Quando o Sol espreitar de novo - Ana Moura

 

Ana Moura  Quando o Sol espreitar de novo

(letra e música de Manel Cruz)

 

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por Augusta Clara às 21:00



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