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Delícias são tudo o que nos faz felizes: um livro, a magia dum poema ou duma música, as cores duma paleta ... No jardim o sol não raia sempre mas pulsa a vida, premente.
Adão Cruz Marcelino da Mata
Adão Cruz Memórias, saudades, alegrias e tristezas
Este é o meu velho consultório de há quase cinquenta anos, fechado desde o início da pandemia. Entro lá de vez em quando, sento-me no sofá, e os meus olhos enchem-se de vazio. Não admira. Por aqui passaram milhares de pacientes, de Vale de Cambra, S. João da Madeira, Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis, Sever do Vouga, Arouca, Alvarenga, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães do Douro, Amarante, Gondomar, Porto, Matosinhos, Espinho, Ovar, Estarreja, Aveiro, Albergaria e mesmo de mais longe, como S. Pedro do Sul, Viseu, Carregal do Sal, Guarda e até de Lisboa. Por aqui passaram também neste meio século muitos emigrantes, sobretudo em tempo de férias, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Suíça, do Luxemburgo, da Venezuela, do Brasil e até dos Estados Unidos.
A quarta fotografia mostra dois aparelhos, ecocardiógrafos. O mais pequeno, do lado esquerdo, um Alloka SSD 110 S (peça de museu), foi o primeiro ecocardiógrafo bidimensional que entrou no país, importado directamente do Japão. O da segunda foto foi o último que adquiri e que funciona correctamente. Tive ao todo oito ecocardiógrafos, três neste consultório e mais cinco no Gabinete de Ecocardiografia, em colaboração com os meus grandes e inesquecíveis amigos Dr. Duarte Correia e Professor Cassiano Abreu Lima. Entre eles, o primeiro Eco-Doppler a cor. Havia apenas dois laboratórios de Ecocardiografia no Porto que serviam todo o norte de Portugal.
A quinta foto a contar do fim mostra a velha secretária da minha empregada Aldina, mulher carinhosa e simpática que os doentes adoravam, conhecida por todas as redondezas e que sempre me acompanhou em quase sessenta anos, desde o início da clínica geral em Vale de cambra, antes e depois da guerra da Guiné.
A quarta fotografia a contar do fim mostra o soneto que dediquei ao meu pai e que ainda se encontra na parede da primitiva sala de espera. As três seguintes são algumas das minhas primeiras pinturas que ainda por lá se encontram penduradas.
A despeito da idade, tudo poderia acabar de forma menos dura e menos triste, se não fosse a maldita pandemia. Mas a vida é assim e não há volta a dar-lhe.
BEGENE
Esta velhota, fumadora de cachimbo, veio um dia ter comigo porque tinha o “Verme-da-Guiné”. Chamávamos a este verme “Dracontia”. Embora Dracontia seja o nome de uma das vinte e cinco mil espécies de orquídeas, aqui é um parasita denominado “Dracunculus Medinensis” o qual produz uma doença chamada “Dracunculíase”. Pertence ao grupo das “Filarias” e é um parasita que é transmitido pela água infectada com larvas de Dracunculus. No intestino acasala-se com os machos, que depois morrem, e em seguida infiltra-se na pele, no tecido celular subcutâneo ( gordura debaixo da pele), onde cresce e se desenvolve, podendo atingir o tamanho de um metro. Aloja-se em qualquer parte do corpo, mas aparece sobretudo nas pernas e abdómen. Não tem tratamento, podendo causar graves infecções e processos inflamatórios. Vi alguns casos, e felizmente todos bem sucedidos, graças a uma técnica que alguém inventou, e quem a inventou, não há dúvida que “tinha esperto no cabeça”. Reparem bem na maravilha desta invenção. O parasita vem pôr os ovos (um a três milhões) quando está dentro de água. Para isso abre um pequeno orifício ulceroso e muito doloroso, onde enfia uma espécie de cabeça, semelhante ao escolex da ténia. Nesta mulher, essa úlcera estava na parte interna da perna, logo acima do tornozelo. Então, com uma pinça, agarra-se a cabeça, puxa-se suavemente para fora alguns centímetros (nunca por nunca partir ou romper, pois dessa forma fica o caldo entornado e nunca mais o conseguimos tirar), e enrola-se num palito, fixando-o à perna com adesivo. Ao outro dia, como o verme se sente preso, sai um pouco mais para o exterior e enrolamos mais uns centímetros, fixando de novo com adesivo. E assim sucessivamente, todos os dias, até sair por completo, o que pode levar semanas. Associamos alguma medicação analgésica, anti-infecciosa e anti-inflamatória.
Em 1986 havia cerca de 3,6 milhões de casos. Nesta altura, o Verme-da Guiné, existente em muitos outros países, está praticamente erradicado.
CANQUELIFÁ
Eu estou à direita na foto. À minha direita o filho do Régulo, a seguir o alferes Duarte e depois o Anso, chefe da milícia negra, que segundo constou foi fuzilado após a independência.
A Meswuit
A Sé Catedral
O sino era uma jante de carro
Os dois gémeos, filhos do Anso, duas perolazinhas negras com quem eu, por vezes, me entretinha.
À entrada da palhota do Régulo, que muitas vezes me convidava para beber qualquer coisa com ele.
O Régulo, de óculos. Régulo do Pachisse ou Pachisi, não sei bem, uma região do Gabu Sara que nunca consegui definir ao certo.
Adão Cruz GUERRA DA GUINÉ – 1967. BEGENE - O nosso corpo clínico
Adão Cruz GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS). A Minha Chegada e os Primeiros Três Meses
Um velho Dakota levou-me até Bafatá. Dentro do avião, além de mim, ia o piloto, o co-piloto que tinha meia cara feita numa cicatriz, uma mulher negra sentada sobre o caixão do filho e um capitão que eu não conhecia de lado nenhum. Este capitão desembarcara momentos antes no aeroporto de Bissalanca, vindo do Porto, e seguia directamente para o mato. Confessou-me que transportava consigo alguma angústia, pois deixara para trás mulher e nove filhos. Três meses depois encontrámo-nos em Begene, no norte. Reconhecemo-nos e tornámo-nos muito amigos. Era o capitão Brito e Faro.
Como sempre gostei muito de crianças, deixo aqui apenas três momentos como referência das coisas boas dessa minha estadia, e que são três pequeninos poemas dentre os muitos que em mim floriram nesse tempo.
Fátima Demba, a minha companheira de todos os dias.
Este miúdo, cujo nome já se me escondeu no fundo da memória, percorria semanalmente cerca de vinte quilómetros pelo meio do mato, para me vir consultar, trazendo-me sempre uma velha lata com meio litro de leite. Tinha um fígado do tamanho da barriga.
Os dois gémeos filhos do Anso, dois enternecedores bebés que me preencheram alguns momentos de solidão. O Anso era chefe da milícia integrada na nossa companhia. Emprestava-me, muitas vezes, uma velha espingarda de carregar pela boca, para eu caçar uns patos na bolanha. Constou-me que fora fuzilado após a independência.
Adão Cruz Já não entendo este mundo
(MANEL CRUZ)
Não entendo este mundo moribundo
este mundo escuro
nascido sem sol e sem luar
já não entendo esta onda de sismos e cifrões
esta dor de milhões de cabeças rolando como esferas
para o fundo dos abismos.
Não entendo este mundo dilacerado e sem vida
já não aguento este frio de quatro paredes
este jogo no vazio cemitério da história
este profundo alarido
este diabólico mistério de morte concebido
esta vida sem sentido a que chama mercado
e “democracia”
a argentária escória.
Não entendo este mundo de olhos vendados
com barras de ferro
este silêncio absorto e abstracto
no assalto impune a soberanas nações
este mundo de vidas e almas sem direitos nem justiça
este mar de sangue escorrendo
pelas garras dos algozes
este rasgar de corações
este martírio dolorosamente tatuado na pele dos inocentes
por tanques e aviões
este mundo ameaçado por mísseis e canhões.
já não entendo tantas metástases
deste cancro da guerra
este perigo sistémico diariamente arquitectado
esta inelutável evolução para a desordem suprema.
Já não sou capaz de aguentar
o peso do crime chamado superlucro
brilhando como a luz do inferno na ponta dos punhais.
Não entendo este mundo
escorraçado para as bermas da fome
por esta infame corrida para um podium inglório
por entre as malhas da ganância enlouquecida
neste imparável caminho do caos e da fatalidade
na ensanguentada bandeira erguida para o nada
no constante apunhalar da liberdade.
Já não entendo este mundo apodrecido
na secura do grande rio da esperança.
Já não acredito no sonho do poeta
quando subiu a colina
para admirar o céu povoado de estrelas.
Augusta Clara de Matos Vamos aceitar?!
Enquanto andamos por aqui a discutir saias e outras futilidades equivalentes e a confundir a tralha semântica dos ianques com a nossa língua, quando o asséptico "politicamente correcto" se confunde com o que é verdadeiramente incorrecto e deplorável, no Parlamento Europeu, eleito por nós, votou-se a recusa ao auxílio a quem se afoga no Mediterrâneo. E não só se votou como se aplaudiu.
E, ao chegar aqui, fico gaga. Não por qualquer atmosfera natural inibidora do meu aparelho vocal, o que me atacou foi a gaguez do entendimento pela nuvem escura que me tolhe a respiração.
De que terra, de que gente, de que pais, de que ética, de que moral, de que deus, de que réstia de empatia e de bondade vêm aqueles vermes todos que, em Estrasburgo, decidiram votar pela transformação de um mar em cemitério?
A quem entregámos os destinos daquilo que nos disseram ser a Casa Comum dos Povos deste continente? Eu não pertenço a nenhum bando de malfeitores nem de salteadores que usam armas para destruir as casas dos outros e depois se mascaram de personagens cultas e respeitáveis que criam estruturas onde graves deficiências mentais, consideradas a nata da inteligência criadora, delineiam as estratégias a que nos obrigam a obedecer.
Não quero pertencer a uma “União” Europeia que acaba de adoptar o lema “VIVA A MORTE!”.
Pedro Ferré Um adeus catalão
Público, 22 de Outubro de 2019
Num momento de paixão e de dor profunda – para não falar de revolta –, onde os mais vivos sentimentos vêm à flor da pele, exijo-me a mim próprio um mínimo de serenidade. Pretendo também advertir o leitor que, pese embora o meu discurso remeta para factos, não me conseguirei furtar às minhas posições ideológicas, o que inevitavelmente sempre acontece a todos os cronistas, ainda que muitos o pretendam escamotear. Acresce que neste momento se vive sob uma enorme pressão internacional do Estado do Reino de Espanha que, através das suas embaixadas, compele os meios de opinião pública a que seja veiculado o ponto de vista oficial de tudo quanto está a ocorrer, tentando abafar as razões profundas do sentimento de desprezo ou mesmo de repressão sentido pela nação catalã. Mas, porque o espaço não é muito e da paciência do leitor não se deve abusar, tentarei ser minimalista nas razões que pretendo expor nas seguintes linhas.
1. Em primeiro lugar, principalmente a partir da brutal repressão sobre o referendo de 1 de Outubro de 2017, ordenada pelo Estado e aceite sem reservas pelo nacionalismo espanhol (não esqueçamos como as forças da Guardia Civil eram aplaudidas à saída de certos quartéis com palavras de ordem como “A por ellos”, isto é, “Vamos a eles”), a Espanha mais profunda, incluindo muitos militantes e políticos do PSOE, sustentava as suas razões baseando-se em questões históricas, civilizacionais e políticas. Historicamente esquecia-se que a formação do Reino de Espanha fora sempre uma questão muito complexa. Pela força das armas, Castela foi-se sobrepondo aos restantes territórios peninsulares, criando-se, durante séculos, a ideia de uma mítica Espanha (que nação sem profundas questões identitárias sente a necessidade de constantemente se afirmar como nação ou mesmo afirmar, como o próprio presidente do Governo Mariano Rajoy, que “Espanha era a nação mais antiga da Europa"?). Ao mesmo tempo era forjado um dos mais chamativos argumentos, afirmando-se que a Catalunha nunca fora independente. Será que alguém de boa-fé pode esquecer que a Catalunha nasceu, ao contrário das restantes nações peninsulares, por uma actuação estrangeira, constituindo-se como a Marca Hispânica carolíngia (séc. VIII) e que dela derivaram os condados catalães subordinados ao Conde de Barcelona? Será que alguém de boa-fé pode esquecer que, quando a Catalunha se juntou ao reino de Aragão, o fez mediante o casamento de uma infanta aragonesa e do Conde de Barcelona, em 1150, e que desde essa data até 1410 a dinastia da casa de Barcelona reinou sobre Aragão, Valência, Maiorca, Perpinhão, Rossilhão, Córsega, etc.?
2. Acresce que, a propósito do chamado Procés, isto é, o recente processo de autodeterminação catalã, se tentou passar a ideia de que este sentimento era fruto de um conjunto de ideólogos contemporâneos que, aproveitando-se da recente crise da Europa, apelava de forma egoísta à separação, esquecendo por ignorância ou má-fé que, desde o último monarca da dinastia catalã, no reino de Aragão, o partido ‘catalanista’ procurou sempre retomar o poder – preocupado, primeiro, com o apogeu bélico e, mais tarde, económico – de Castela. Assim, e seguramente muito portugueses não o saberão, um príncipe português, o Condestável D. Pedro, filho do infante D. Pedro e de uma catalã (Isabel de Urgell), morreu em Granollers (Barcelona) a 29 de Julho de 1466, por ter sido chamado pelas instituições barcelonesas para defender a monarquia de linhagem catalã, no reino de Aragão, contra a dinastia castelhana dos Trastámaras. Mesmo quando os reinos de Aragão e de Castela se aproximaram politicamente, com o casamento de D. Fernando de Aragão e de D. Isabel de Castela, em 1469, as leis e a moeda, por exemplo, continuaram separadas (a conquista da América, por exemplo, era empresa exclusivamente castelhana) até que, em 1714, Felipe V arrasa Barcelona e, de facto, cria, pela força das armas, uma Espanha com as fronteiras que de certo modo corresponderão às dos nossos dias. Pelo exposto, a “nação mais antiga da Europa” vê, deste modo, drasticamente reduzido o período da sua existência. Cabe, por fim, destacar que, desde o século XV até aos nossos dias, o sentimento de autodeterminação catalã foi uma constante: a chamada “Guerra dos Segadores”, contemporânea dos sucessos ocorridos em Portugal, em 1640 (que conduziram este país à sua definitiva independência, recordo), chegou a proclamar, em 1641, a República da Catalunha; ou ainda a guerra de Sucessão (1710-1714), cujo fim, como já disse, correspondeu a uma das mais dramáticas repressões sobre a sociedade catalã; sem esquecer, também, um sentimento secessionista ao longo dos séculos XIX e XX que culmina, na segunda República Espanhola (1931-1936), com uma brevíssima independência de horas em 1934, por Lluís Companys, anulada pelas tropas fiéis ao unionismo.
3. Após breves tópicos de História, na qual, como se viu, este sentimento identitário tem profundas raízes, comecemos a centrar-nos em questões mais recentes. De facto, após uma pacificação alcançada após a morte de Franco e de certa forma reforçada pela Constituição de 1978 (redigida em condições muito especiais e com limitações contextuais óbvias), a Catalunha recupera uma importante autonomia que fazia supor anos, senão séculos de profunda acalmia e quase desaparecimento dos ideários independentistas. Mas eis que, uma vez mais, a Espanha ultranacionalista desequilibrará os pratos da balança. Um novo Estatuto da Catalunha, aprovado pelo Parlamento catalão, retocado pelo Parlamento de Espanha, mas ratificado finalmente pelo povo catalão em 2006 por uma maioria que rondava os 75%, foi submetido a fiscalização sucessiva pelo Partido Popular (PP) através do Tribunal Constitucional. Desse pedido formulado pelo PP, contra a votação das Cortes de Espanha e do povo catalão, em 2010 (após numerosas delongas provocadas por interferências políticas da direita espanhola), num momento em que as forças mais conservadoras constituíam maioria no Tribunal Constitucional, foram declarados inconstitucionais 14 artigos, várias disposições adicionais, para além de outros artigos submetidos a interpretação.
Eis a génese da crise actual. Sentindo-se a Catalunha minimizada e desautorizada pelo Estado, que procurou (como sempre) que a Justiça se encarregasse de uma questão política, boa parte do catalanismo federalista e até unionista começou a engrossar as fileiras dos partidários da independência. Note-se que nesta primeira ‘judicialização’ da política, feita em 2006, o Estatut é drasticamente reescrito e que as propostas de Rajoy pretendiam proibir para a Catalunha artigos já aprovados em estatutos de outras regiões autónomas. Porque esta afirmação é tão grave, remeto o leitor mais interessado, ou incrédulo, a comprovar o que agora aqui escrevi em https://www.publico.es/…/rajoy-da-otros-territorios-niega.h….
Porque não posso entrar em minúcias, destacarei apenas dois pontos rejeitados pelo TC. Um deles, desrespeitando a meu ver a própria Constituição de 1978, nega à Catalunha o direito de ser nação dentro de um Estado. Ora, a Constituição clarifica, no seu artigo 2.º, que “garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. Pergunto: será que pode haver nacionalidades sem nações? Outro dos artigos retocados (o 6.º) retira o vocábulo preferente da primitiva redacção “A língua própria da Catalunha é o catalão. Desse modo, o catalão é a língua de uso normal e preferente das Administrações públicas e dos meios de comunicação públicos da Catalunha”. Sendo a questão linguística um dos elementos mais estruturantes e simbólicos da sociedade catalã, o fogo estava ateado. Se nem na sua terra a língua veicular deveria ser preferentemente (e sublinho o preferentemente pois nem se exigia que figurasse como língua única), qual o destino da língua catalã? Recordo, a quantos ainda considerem, por mentalidades essencialmente economicistas e baseadas em métricas, que a dimensão de falantes de catalão não merece atenção, que existem mais falantes de catalão do que de croatas, dinamarqueses, albaneses, finlandeses, eslovacos, noruegueses, letões, etc.
4. Pelo exposto, se os desejos de autodeterminação são históricos, sendo a inserção da Catalunha em Espanha uma questão de difícil solução, a violência policial, totalmente desproporcionada, exercida a 1 de Outubro de 2017 e a sentença do Supremo Tribunal a nove políticos catalães encarregaram-se de fracturar ainda mais drasticamente a relação entre a Catalunha e Espanha. O diálogo, base de qualquer sociedade democrática, nunca foi desejado (especialmente pelo lado espanhol), cerrando fileiras com a justificação da defesa da Constituição. E eis que chegamos ao cerne de um problema que fragiliza a unidade da Espanha (ao contrário do que os partidos ‘constitucionalistas’ afirmam). A Constituição de 1978, como já aflorei, foi a mais virtuosa das constituições possíveis naquele momento. Ainda o franquismo estava vivo (mas será que chegou a morrer?), as forças armadas não davam suficientes garantias de se submeterem ao poder político (e dará a Guardia Civil, neste momento, essas garantias? Depois de ouvir o discurso profundamente político do general Garrido, intolerável em qualquer democracia avançada, como não se cansa de afirmar a propaganda oficial do Reino de Espanha, fiquei com muitos receios); os comunistas e até os socialistas eram vistos com enorme desconfiança e as nações espanholas continuavam a suscitar os discursos mais acalorados. Como seria possível ir mais longe? Por essa razão, a aprovação dessa Constituição foi um feito memorável, sendo, sem dúvida, um marco na história da civilização europeia do último quartel do século XX.
Onde reside então a minha reserva quando, hoje, não faço parte dos grupos que a sacralizam? A própria Bíblia ensina que há um tempo para tudo e que a jurisprudência foi feita para servir o bem público e regular uma sociedade enquanto objecto funcional: a partir de certo momento poderá ser uma peça perniciosa e causa motora dos maiores problemas políticos. Repare-se como, por razões de política interna e eleitoralista, o PSOE não pretende provocar alterações na Constituição, tendo-se até esquecido dos seus fundamentos ("valores") republicanos e federalistas. A Monarquia tornou-se inquestionável e o federalismo foi metido na gaveta. Se é certo que para alterar a Constituição são necessárias maiorias qualificadas, certo é também que não se tem visto este partido batalhar pelos seus próprios princípios sendo, deste modo, uma das forças com papel mais conservador na preservação do espírito e da letra do texto constitucional. Pois bem, a hora exige mudanças. E o que poderia não ter passado de um aprofundamento da autonomia mediante a criação de estados federados, hoje terá de ir mais longe: permitir constitucionalmente o recurso ao referendo.
5. As contradições do PSOE e do Partido dos Socialistas da Catalunha têm tido um papel extremamente negativo na problemática relação entre Espanha e Catalunha. Se do PP e do Cidadãos (para já não falar do Vox), pela sua posição ideológica contra a nação catalã, a sua língua e a sua cultura, ainda que profundamente nociva e irresponsável para a unidade de Espanha, nada haverá a dizer, pois é um comportamento coerente com as suas convicções, o volte face do PSOE, que a 1 de Outubro de 2017 condenou a brutalidade das forças da ordem vindas de Espanha para a Catalunha (ver, por exemplo, o título de caixa alta do periódico eldiario.es: “Pedro Sánchez critica las cargas policiales en Catalunya y emplaza a Rajoy al diálogo como solución"), contrasta com a total falta de diálogo com as forças independentistas (neste preciso momento em que escrevo, nega-se até a falar, telefonicamente, com Quim Torra, segundo a imprensa insuspeita).
Contudo, estas contradições já vêm de longe e, exceptuando o efeito antecipador de Zapatero e Maragall nas questões catalãs, se os políticos espanhóis têm uma característica é a de andar sempre atrás dos acontecimentos para, em momentos mais extremos, perder a arte da política e, ou magnificar a repressão, ou judicializar os problemas. Lamentavelmente, chegam sempre atrasados. E se o PP agravou esta já tão inquinada situação, infelizmente, o PSOE, ou melhor, Pedro Sánchez, não quis ou não pôde (intervenções dos barões do partido?) resolvê-la. Porque se a sentença emanada do Supremo resulta da irresponsabilidade dos políticos, que passaram a este Tribunal o ónus da decisão, por outro, a pressão sobre o Poder Judicial para castigar os presos (os cidadãos, intoxicados por uma imprensa profundamente unionista, exigiam um castigo exemplar), ao não conseguir encontrar razões para a mais alta das penas (rebelião), procuraram os juízes fundamentar, de forma muito forçada e perigosa (para a democracia de toda a Espanha e não só da Catalunha), uma sedição (transformando em manifestações com tumultos aquilo que eram simples manifestações). Deste modo, não se aplicaram as penas mínimas, correspondentes às de desobediência (que, de facto, existiu). Numa palavra, os políticos eximiram-se das suas responsabilidades; os juízes, por pressões e por convicções ideológicas, penalizaram escandalosamente presos políticos (expressão censurada em Espanha nos órgãos de comunicação social oficiais, sim, disse bem, censurada, mesmo antes da sentença). Espanha ficou jurídica e politicamente mais pobre e ainda mais dividida.
6. Dizia que, no momento em que escrevo, Sánchez não atende o telefone a Torra; o PP e Cidadãos juntam-se a Vox e vai-se exigindo ao Governo de Espanha a Lei de Segurança Nacional ou a aplicação, mais uma vez, do 155 (os mais radicais), com a consequente abolição da autonomia catalã. Por outro lado, a campanha eleitoral espanhola, com os mais vis interesses partidários, é seriamente responsável por não se tentar resolver, ou pelo menos mitigar, a crise que se vive na Catalunha. Os meios de comunicação extremam com alarmismo as manifestações dos jovens anti-sistema (alguns também independentistas), escamoteando as centenas de milhares de pessoas que se movimentam em manifestações pacíficas. O governo catalão entra em contradições, perturbado pelos excessos de certas cargas policiais dos próprios Mossos d'Esquadra (a polícia catalã): alguns do consellers consideram a actuação da Polícia Autonómica excessiva, outros calam por razões políticas esta evidência, outros ainda são incapazes de distinguir o trigo do joio e condenar abertamente os desordeiros e, mais preocupante, muitos jovens já se perguntam o que fazer, pois se com manifestações pacíficas a Catalunha não é ouvida (e até é condenada) por Espanha, será que terão de ir mais longe?
7. Espanha, convertendo-se cada vez mais na Sérvia do Ocidente, não conseguiu ainda perceber o problema. O seu nacionalismo cego faz com que esconda a cabeça, qual avestruz, e diga que o nacionalismo é propriedade privada dos outros: os que não querem ser nacionalistas espanhóis. Mas, na realidade, o problema espanhol, o seu nacionalismo radical, é bem simples: só a sua insegurança faz com que odeie a diversidade, imponha aos diversos territórios a cultura e a língua castelhanas como traço identitário e abomine a diversidade hispânica, reduzindo-a ao nível do folclore. E por essa razão, Espanha gostaria de acabar com o que chamam a escola catalã e encerrar o canal de televisão autonómico TV3, fonte da pretensa e falsa xenofobia da Catalunha, que é uma das regiões mais internacionalistas e cosmopolitas da Península. Seriam, assim, esta “escola” e este canal os responsáveis pela criação de seres “abduzidos” (esta é a expressão usada pelo pensamento dominante espanhol) por uma ideologia catalanista, bem como pela “fractura” da sociedade catalã (curiosa preocupação que só incide sobre os que se sentem espanhóis, não sendo capaz de se colocar nunca na pele dos que se sentem “fracturados” pelo facto de não quererem ser espanhóis). Curiosamente, eu, que sou o produto de uma escola espanhola, na qual a cultura catalã, a língua catalã e a literatura catalã eram uma página em branco, e que fui criado sob o espírito das glórias do espanhol D. Pelágio, do Cid Campeador, do Império de Carlos V, dos Terços de Flandres e da Armada Invencível, “abduzido” pela grandeza de uma Espanha una e não plural, no entanto aqui escrevo constatando, tarde demais, a grandiosidade de uma Península Ibérica, diversa, tão peculiar, que poderia ter sido imensa. Portugal saiu a tempo, pois hoje corria o risco de se ver protelado no uso da sua língua, entre muitas outras coisas. Quanto tempo se manterá a Catalunha subjugada?
Como palavras finais, defino-me como independentista à força, principalmente depois do 1 de Outubro e desta sentença. Explico: foi a Espanha que me expulsou, não fui eu que me quis ir embora.(Pedro Ferré)
Augusta Clara de Matos O QUE EU QUERIA VER (E DEVIA SER) DISCUTIDO NA CAMPANHA PARA AS ELEIÇÕES EUROPEIAS (independentemente das questões económicas e financeiras de que toda a gente fala)
- O combate intenso e coordenado ao avanço da extrema-direita na Europa e uma campanha de esclarecimento às populações sobre as consequências do retorno de governos fascistas;
- A expulsão da União de países onde se instalem governos com políticas e práticas fascistas e que permitam a livre expressão de grupos que defendem a ideologia nazi e cometem crimes com base nesta ideologia;
- O acolhimento e integração de refugiados e suas famílias como cidadãos europeus de iguais direitos, desmontando a ideia ainda reinante em muitas cabeças de que são todos terroristas;
- O fim da venda de armas por países da EU a países, grupos e coligações que as têm utilizado para destruir países através de guerras que tiveram unicamente como fim roubar-lhes as matérias primas, sabendo nós que foram essas guerras a origem da fuga em massa dos seus habitantes em direcção à Europa nas trágicas condições que levaram a milhares de afogamentos;
- A uniformização de leis em todo o espaço da UE que penalizem sem condescendência a corrupção e as grandes fraudes financeiras que enfraquecem e deterioram a economia dos países;
- Como consequência do afirmado no parágrafo anterior, a luta por uma Justiça igual para todos os cidadãos e não diferenciada entre os que têm dinheiro para se defender e os outros;
- O combate sério e generalizado a todo o tipo de descriminação com base na opção sexual, política, de credo religioso ou outra;
- Exigência da protecção dos mais frágeis como as crianças, os deficientes e os idosos;
- Combate à violência doméstica e, especificamente, que seja dada maior atenção à violência contra as mulheres que tem assumido contornos escabrosos em vários países europeus;
- Acérrima exigência pela liberdade de opinião e de expressão.
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Um testemunho enternecedor.Eva
Grande texto que nos faz refletir... Muito!
Excelente reflexão! É escandaloso , mas apetece di...
Fui alferes de justiça em Moçambique. Marcelino te...
Infelizmente, agora, é assim e não percebo porquê....