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Jardim das Delícias


Segunda-feira, 15.11.21

A pobreza - Adão Cruz

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Adão Cruz  A pobreza

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(Adão Cruz)

   A pobreza transformou-se em bandeira eleitoral de muitos daqueles que por ela são responsáveis. Descarada hipocrisia. Em nome da competitividade e da convergência cometeram-se e cometem-se as maiores barbaridades. A competitividade e a convergência, a globalização, a modernidade, a flexibilização, o liberalismo e a privatização, são palavras inquestionáveis das estratégias de dominação por parte daqueles que sabem quem tudo ganha à custa de quem tudo perde. Tais fórmulas transformaram-se numa ideologia sem sentido que leva à destruição sistemática do Homem, através do desemprego, do baixo salário, da pobreza, da toxicodependência, do crescimento dos sem-abrigo, do desespero, da delinquência, da apatia e iliteracia da juventude. O assalto às economias pelas mãos de luva branca, hoje quase institucionalizado entre muitos políticos e muitos manipuladores do dinheiro, que mais não são do que homens sem qualquer honra, vergonha ou dignidade, levou à perversão dos conceitos, à aniquilação da resistência e da vontade dos homens dignos, à inoperância e colaboracionismo da Justiça. Todos estes fenómenos se acentuaram quando se desenvolveram políticas doentias de saque e destruição, destinadas a reforçar o poder do capital de forma profundamente criminosa, através de absurdos superlucros e mais-valias, e do escandaloso roubo e desvio do nosso dinheiro para obscenas e obscuras transacções, salários e reformas de ninhadas de parasitas, à custa do esmagamento da qualidade de vida da maior parte do povo. Circulam no mundo triliões de dólares avidamente à procura do sítio onde se lucra mais, nem que esse sítio seja o imenso cemitério para onde resvalam milhões de vítimas. Não basta os políticos tidos por sérios dizerem que a solidariedade é um factor fundamental e o princípio mais importante do nosso século. Não basta dizerem que continua a haver países mais ricos e outros mais pobres e, dentro dos mais ricos, cada vez maior abismo entre ricos e pobres. Não basta lamentarem a pobreza e dizerem que a pobreza e a exclusão geram guerras intermináveis. Tudo isto é sabido e não é cantarolando a Paz e a Cooperação, de mão dada com os corruptos, os ladrões e os senhores da guerra que se ganha o título de vencedor. Muitos destes políticos pregadores da paz e da liberdade foram e são co-responsáveis pelo engrossamento do exército de famintos, refugiados, oprimidos e condenados da terra. Co-responsáveis no abrir de portas e no estender de tapetes às chancelarias do crime organizado. Por mais que preguem, por mais debates e conferências que façam, não anulam o descrédito em que caíram ao pretenderem convencer-nos de que as expectativas de paz, liberdade e justiça são possíveis com o aperto de mão dos verdadeiros terroristas do mundo ou com as orações a Deus, as quais, pelos vistos, só são ouvidas quando saem da boca dos afortunados e não quando tomam a forma de gemidos. Nós andamos distraídos com os fumos de incenso que os responsáveis vão espargindo pelos quatro canais da estupidez institucionalizada. E tudo isto porque muitos dos importantes grupos económicos, células de um cancro universal, tomaram conta do poder político, transformaram os governantes em lacaios e limparam os pés à soberania. Arrepanharam toda a informação global, e com ela o poder de mudar e moldar os comportamentos e as mentalidades até à anulação da verdade, da razão e do pensamento. De forma humilhante e perversa criaram uma maquiavélica desinformação, com a qual inundaram de publicidade enganosa e de ignominiosas mentiras as cabeças de um povo cada vez mais roubado, massificado, ridicularizado e estupidificado.

 

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por Augusta Clara às 20:56

Sábado, 15.05.21

Palestina - Adão Cruz

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Adão Cruz  Palestina

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(Adão Cruz)

 

Não há sol nos céus da Palestina
não há luz nos olhos da Palestina
roubaram o sorriso à Palestina.
São de sangue as gotas de orvalho da madrugada
e o vento só é vento quando as balas assobiam
roubaram as manhãs à Palestina.
O céu de chumbo esmaga as almas e os ossos
e é de lágrimas a chuva quando cai
não há sol nos céus da Palestina.
Do ventre da lua cheia de aço e de amargura
nasce a cada hora um menino com bombas à cintura
mataram a infância na Palestina.
Rasgam as mães os seios com arroubos de ternura
para alimentar a raiva
por cada filho que perdem outro nasce da sepultura
semearam a dor na Palestina.
Nas casas esventradas
rompem por entre as pedras leitos de sofrimento
onde à noite se acoitam os amantes
queimando a dor na paixão de um momento
fizeram em pedaços o amor na Palestina.
Cada instante é uma vida na vida da Palestina
cada momento uma taça de vingança clandestina
cada gesto um vulcão de raiva que nem a morte amansa
roubaram a paz à Palestina.
Na sombra do dia ou na calada da noite
cravam os vampiros nazis seus dentes de ferro
no coração da Palestina
não há sangue que farte a fúria assassina
sangraram cobardemente a Palestina.
Para atirar contra os tanques uma pedra
agiganta-se o ódio a cada bater do coração
por não haver sangue de tanto sangue vertido
outra força não há para erguer a mão...
e dar à Palestina algum sentido.

 

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por Augusta Clara às 21:16

Quinta-feira, 18.02.21

Marcelino da Mata - Adão Cruz

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Adão Cruz  Marcelino da Mata

   Gostaria de ser o mais sucinto possível. Ninguém me fale da guerra se a não viveu. Todos sabemos que uma boa parte dos enviados para o dito Ultramar foram passar um período de férias, conhecendo a guerra apenas pelo que ouviam. Mesmo na Guiné. Quem, como eu, esteve sempre na frente e no coração dos conflitos, apesar de correr menos riscos pelo facto de ser médico, tem direito a uma palavra sobre esta polémica dificilmente tragável.
Nas terras onde estive, tornei-me amigo de toda a gente, desde os militares às milícias nativas agregadas ao exército português e às populações locais. Eu amava aquela gente e sei que me amavam. Quem me conhece sabe, através da minha escrita e dos meus testemunhos públicos e privados que isso é verdade. Eu amava aquela gente e aquele povo, que não era a minha gente nem o meu povo, mas a gente e o povo de Marcelino da Mata. Não vou aqui relatar as provas por muitos amigos conhecidas, do afecto com que aquele povo me retribuiu o amor que lhe dei e que ainda hoje é uma força vital que me enche o peito e nunca morreu.
As milícias negras locais, como todos sabem, faziam parte das nossas Companhias e lutavam ao lado do exército português, como Marcelino da Mata. Fui amigo de muitos deles, tratei-os e tratei as suas mulheres e filhos com todo o carinho. Um deles, que me lavava a roupa e limpava o quarto, foi sem dúvida um dos meus maiores amigos da Guiné. Muitos deles eram soldados intrépidos e corajosos, mas eu não os admirava. Tinha pena deles, pela sua incapacidade de reconhecerem quem era o seu verdadeiro inimigo, tinha pena deles por não os ver ao lado de Amílcar Cabral, Titina Silá, Nino Vieira e tantos outros que lutavam pela mais justa das causas que era a libertação do seu povo. E tinha pena dos nossos militares, não só dos que nada sentiam de patriótico ao saberem que foram para ali empurrados para defenderem uma coutada da Cuf e da Casa Gouveia, mas também daqueles que cometiam atrocidades e andavam com colares de orelhas ao pescoço, e ainda daqueles que arriscavam corajosamente a vida por um dever que lhes fora inculcado na cabeça, a defesa da soberania.
Eu não queria que os nossos homens morressem. Sofri muito com as perdas dos nossos soldados e oficiais, alguns meus grandes amigos, incluindo o meu colega de quarto, mas nunca fui capaz de culpar os guerrilheiros. Sempre culpei Salazar e o Estado Português. E confesso que também sofria e ficava muito triste quando havia perdas do lado do “inimigo”. Ansiando sempre que não houvesse mortos e feridos nas diversas operações, quer de um lado quer de outro, o meu coração triste lá ia sorrindo à medida que eu me ia convencendo de que a guerra estava mais do que perdida.
Eu amei muito e ainda amo a gente e o povo que não era a minha gente e o meu povo, era a gente e o povo de Marcelino da Mata, a gente e o povo que Marcelino da Mata matou e atraiçoou. Nem mesmo retirando-lhe, se possível fosse, as chacinas e atrocidades que cometeu, mais monstruosas do que as de muitos brancos, se poderia pensar em chamar-lhe herói. Deixo à vossa consciência as conclusões que quiserem retirar desta minha pura e sincera confissão.

 

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por Augusta Clara às 13:48

Sábado, 30.01.21

Memórias, saudades, alegrias e tristezas - Adão Cruz

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Adão Cruz  Memórias, saudades, alegrias e tristezas

   Este é o meu velho consultório de há quase cinquenta anos, fechado desde o início da pandemia. Entro lá de vez em quando, sento-me no sofá, e os meus olhos enchem-se de vazio. Não admira. Por aqui passaram milhares de pacientes, de Vale de Cambra, S. João da Madeira, Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis, Sever do Vouga, Arouca, Alvarenga, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães do Douro, Amarante, Gondomar, Porto, Matosinhos, Espinho, Ovar, Estarreja, Aveiro, Albergaria e mesmo de mais longe, como S. Pedro do Sul, Viseu, Carregal do Sal, Guarda e até de Lisboa. Por aqui passaram também neste meio século muitos emigrantes, sobretudo em tempo de férias, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Suíça, do Luxemburgo, da Venezuela, do Brasil e até dos Estados Unidos.

A quarta fotografia mostra dois aparelhos, ecocardiógrafos. O mais pequeno, do lado esquerdo, um Alloka SSD 110 S (peça de museu), foi o primeiro ecocardiógrafo bidimensional que entrou no país, importado directamente do Japão. O da segunda foto foi o último que adquiri e que funciona correctamente. Tive ao todo oito ecocardiógrafos, três neste consultório e mais cinco no Gabinete de Ecocardiografia, em colaboração com os meus grandes e inesquecíveis amigos Dr. Duarte Correia e Professor Cassiano Abreu Lima. Entre eles, o primeiro Eco-Doppler a cor. Havia apenas dois laboratórios de Ecocardiografia no Porto que serviam todo o norte de Portugal.

A quinta foto a contar do fim mostra a velha secretária da minha empregada Aldina, mulher carinhosa e simpática que os doentes adoravam, conhecida por todas as redondezas e que sempre me acompanhou em quase sessenta anos, desde o início da clínica geral em Vale de cambra, antes e depois da guerra da Guiné.

A quarta fotografia a contar do fim mostra o soneto que dediquei ao meu pai e que ainda se encontra na parede da primitiva sala de espera. As três seguintes são algumas das minhas primeiras pinturas que ainda por lá se encontram penduradas.

A despeito da idade, tudo poderia acabar de forma menos dura e menos triste, se não fosse a maldita pandemia. Mas a vida é assim e não há volta a dar-lhe.

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por Augusta Clara às 19:16

Sexta-feira, 18.09.20

GUERRA DA GUINÉ -1967 BEGENE

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BEGENE

 

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   Esta velhota, fumadora de cachimbo, veio um dia ter comigo porque tinha o “Verme-da-Guiné”. Chamávamos a este verme “Dracontia”. Embora Dracontia seja o nome de uma das vinte e cinco mil espécies de orquídeas,  aqui  é  um parasita denominado “Dracunculus Medinensis” o qual produz uma doença chamada “Dracunculíase”. Pertence ao grupo das “Filarias” e é um parasita que é transmitido pela água infectada com larvas de Dracunculus. No intestino acasala-se com os machos, que depois morrem, e em seguida infiltra-se na pele, no tecido celular subcutâneo ( gordura debaixo da pele), onde cresce e se desenvolve, podendo atingir o tamanho  de um metro. Aloja-se em qualquer parte do corpo, mas aparece sobretudo nas pernas e abdómen. Não tem tratamento, podendo  causar graves infecções e processos inflamatórios. Vi alguns casos, e felizmente todos bem sucedidos, graças a uma técnica que alguém inventou, e quem a inventou, não há dúvida que “tinha esperto no cabeça”. Reparem bem na maravilha desta invenção. O parasita vem pôr os ovos (um a três milhões) quando está dentro de água. Para isso abre um pequeno orifício ulceroso e muito doloroso, onde enfia uma espécie de cabeça, semelhante ao escolex da ténia. Nesta mulher, essa úlcera estava na parte interna da perna, logo acima do tornozelo. Então, com uma pinça, agarra-se a cabeça, puxa-se suavemente para fora alguns centímetros (nunca por nunca partir ou romper, pois dessa forma fica o caldo entornado e nunca mais o conseguimos tirar), e enrola-se num palito, fixando-o à perna com adesivo. Ao outro dia, como o verme se sente preso, sai um pouco mais para o exterior e enrolamos mais uns centímetros, fixando de novo com adesivo. E assim sucessivamente, todos os dias, até sair por completo, o que pode levar semanas. Associamos alguma medicação analgésica, anti-infecciosa e anti-inflamatória.

Em 1986 havia cerca de 3,6 milhões de casos. Nesta altura, o Verme-da Guiné, existente em muitos outros países, está praticamente erradicado.

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por Augusta Clara às 08:00

Terça-feira, 15.09.20

GUERRA DA GUINÉ – 1966 CANQUELIFÁ

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CANQUELIFÁ

Eu estou à direita na foto. À minha direita o fi

Eu estou à direita na foto. À minha direita o filho do Régulo, a seguir o alferes Duarte e depois o Anso, chefe da milícia negra, que segundo constou foi fuzilado após a independência.

 

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A Meswuit

 

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A Sé Catedral

 

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O sino era uma jante de carro

 

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Os dois gémeos, filhos  do Anso, duas perolazinhas negras com quem eu, por vezes, me entretinha.

 

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À entrada da palhota do Régulo, que muitas vezes me convidava para beber qualquer coisa com ele.

 

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O Régulo, de óculos. Régulo do Pachisse ou Pachisi, não sei bem, uma região do Gabu Sara que nunca consegui definir ao certo.

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por Augusta Clara às 13:42

Quinta-feira, 10.09.20

GUERRA DA GUINÉ – 1967. BEGENE - O nosso corpo clínico - Adão Cruz

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Adão Cruz  GUERRA DA GUINÉ – 1967. BEGENE - O nosso corpo clínico

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   O que está do meu lado esquerdo, de barbas, é o furriel Pimentinha, meu furriel enfermeiro, que ainda hoje me telefona uma a duas vezes por ano. A sua profissão, antes de vir para a guerra, era electricista, electricista do Hotel Estoril-Sol. Pois, meus amigos, transformou-se num excelente parteiro e melhor puericultor. Leu e releu a minha sebenta de obstetrícia e deixava os bébés todos perfumadinhos e polvilhados de pó de talco, o que fazia a delícia das mães.
 
Duas histórias sobre o Pimentinha:
 
Primeira:
Um dia de madrugada, apareceu uma parturiente com uma apresentação de pelve, isto é, com o bébé a nascer de rabito em vez da cabeça. É um parto difícil e perigoso. Tentei, quanto sabia, algumas manobras, o mais suaves possível, mas não fui bem sucedido. Virei-me para o Pimentinha e disse: - meu caro Pimentinha, logo que comece a raiar a manhã, peça uma evacuação “Y” (urgente) de helicóptero, para levar esta mulher para Bissau, e fui-me deitar. Algum tempo depois, entra o Pimentinha no meu quarto, dizendo cheio de entusiasmo: - sr. Dr. o catraio já está cá fora. Com muito jeitinho lá consegui tirá-lo.
 
Segunda:
O Pimentinha ia de avioneta a Bissau, acompanhar um soldado que tinha um enorme hidrocelo (líquido nos testículos). Logo pela manhã, a avioneta, uma Dornier levantou voo e meio minuto depois estatelou-se no solo. Felizmente não morreu ninguém, apenas o piloto fracturou uma vértebra. A carlinga da avioneta passou a ser a casota do nosso macaco.

 

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por Augusta Clara às 17:08

Sexta-feira, 28.08.20

GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS) A Minha Chegada e os Primeiros Três Meses - Adão Cruz

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Adão Cruz  GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS). A Minha Chegada e os Primeiros Três Meses

   O velho Uíge atracou em Bissau no dia 13 de Maio de 1966. Entrámos dentro do forno da cidade. Aí aguardei um mês até ao meu destacamento para o mato. Eu e o meu colega e amigo Gomes Pedro, hoje professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa e Director do Serviço de Pediatria do hospital de Santa Maria. Ele seguiu para Cuntima, no norte da Guiné, perto da fronteira do Senegal, e eu embarquei para Canquelifá, no leste, próximo da fronteira com a Guiné-Conackry.

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Um velho Dakota levou-me até Bafatá. Dentro do avião, além de mim, ia o piloto, o co-piloto que tinha meia cara feita numa cicatriz, uma mulher negra sentada sobre o caixão do filho e um capitão que eu não conhecia de lado nenhum. Este capitão desembarcara momentos antes no aeroporto de Bissalanca, vindo do Porto, e seguia directamente para o mato. Confessou-me que transportava consigo alguma angústia, pois deixara para trás mulher e nove filhos. Três meses depois encontrámo-nos em Begene, no norte. Reconhecemo-nos e tornámo-nos muito amigos. Era o capitão Brito e Faro.

De Bafatá segui numa Dornier (foto) até Canquelifá, fazendo uma curta escala no Gabu-Sara, pequena povoação chamada cidade de Nova Lamego.
Permaneci em Canquelifá durante o terceiro trimestre de 1966. Muitas coisas boas e más aconteceram durante esse tempo. Relatá-las levava um livro. Na foto o “corpo clínico”. Eu, o meu furriel enfermeiro Alvim e maqueiros.

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Como sempre gostei muito de crianças, deixo aqui apenas três momentos como referência das coisas boas dessa minha estadia, e que são três pequeninos poemas dentre os muitos que em mim floriram nesse tempo.

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Fátima Demba, a minha companheira de todos os dias.

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Este miúdo, cujo nome já se me escondeu no fundo da memória, percorria semanalmente cerca de vinte quilómetros pelo meio do mato, para me vir consultar, trazendo-me sempre uma velha lata com meio litro de leite. Tinha um fígado do tamanho da barriga.

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Os dois gémeos filhos do Anso, dois enternecedores bebés que me preencheram alguns momentos de solidão. O Anso era chefe da milícia integrada na nossa companhia. Emprestava-me, muitas vezes, uma velha espingarda de carregar pela boca, para eu caçar uns patos na bolanha. Constou-me que fora fuzilado após a independência.

 

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por Augusta Clara às 17:19

Quarta-feira, 29.04.20

Já não entendo este mundo - Adão Cruz

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Adão Cruz  Já não entendo este mundo

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(MANEL CRUZ)

 

Não entendo este mundo moribundo
este mundo escuro
nascido sem sol e sem luar
já não entendo esta onda de sismos e cifrões
esta dor de milhões de cabeças rolando como esferas
para o fundo dos abismos.
Não entendo este mundo dilacerado e sem vida
já não aguento este frio de quatro paredes
este jogo no vazio cemitério da história
este profundo alarido
este diabólico mistério de morte concebido
esta vida sem sentido a que chama mercado
e “democracia”
a argentária escória.
Não entendo este mundo de olhos vendados
com barras de ferro
este silêncio absorto e abstracto
no assalto impune a soberanas nações
este mundo de vidas e almas sem direitos nem justiça
este mar de sangue escorrendo
pelas garras dos algozes
este rasgar de corações
este martírio dolorosamente tatuado na pele dos inocentes
por tanques e aviões
este mundo ameaçado por mísseis e canhões.
já não entendo tantas metástases
deste cancro da guerra
este perigo sistémico diariamente arquitectado
esta inelutável evolução para a desordem suprema.
Já não sou capaz de aguentar
o peso do crime chamado superlucro
brilhando como a luz do inferno na ponta dos punhais.
Não entendo este mundo
escorraçado para as bermas da fome
por esta infame corrida para um podium inglório
por entre as malhas da ganância enlouquecida
neste imparável caminho do caos e da fatalidade
na ensanguentada bandeira erguida para o nada
no constante apunhalar da liberdade.
Já não entendo este mundo apodrecido
na secura do grande rio da esperança.
Já não acredito no sonho do poeta
quando subiu a colina
para admirar o céu povoado de estrelas.

 

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por Augusta Clara às 22:16

Terça-feira, 29.10.19

Vamos aceitar?! - Augusta Clara de Matos

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Augusta Clara de Matos  Vamos aceitar?! 

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   Enquanto andamos por aqui a discutir saias e outras futilidades equivalentes e a confundir a tralha semântica dos ianques com a nossa língua, quando o asséptico "politicamente correcto" se confunde com o que é verdadeiramente incorrecto e deplorável, no Parlamento Europeu, eleito por nós, votou-se a recusa ao auxílio a quem se afoga no Mediterrâneo. E não só se votou como se aplaudiu.

E, ao chegar aqui, fico gaga. Não por qualquer atmosfera natural inibidora do meu aparelho vocal, o que me atacou foi a gaguez do entendimento pela nuvem escura que me tolhe a respiração.

De que terra, de que gente, de que pais, de que ética, de que moral, de que deus, de que réstia de empatia e de bondade vêm aqueles vermes todos que, em Estrasburgo, decidiram votar pela transformação de um mar em cemitério?

A quem entregámos os destinos daquilo que nos disseram ser a Casa Comum dos Povos deste continente? Eu não pertenço a nenhum bando de malfeitores nem de salteadores que usam armas para destruir as casas dos outros e depois se mascaram de personagens cultas e respeitáveis que criam estruturas onde graves deficiências mentais, consideradas a nata da inteligência criadora, delineiam as estratégias a que nos obrigam a obedecer.

Não quero pertencer a uma “União” Europeia que acaba de adoptar o lema “VIVA A MORTE!”.

 

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por Augusta Clara às 13:20



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